CAMINHAR PARA DELFOS
/Há um poema datado de Maio de 1970 que Sophia incluiu em Dual onde se lê:
Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro
Este poema é parte do ciclo que abre o livro e é dominado pela figura de Antínoo, isto é, pela estátua de Antínoo que ainda hoje se pode ver no museu de Delfos. Da primeira vez que vi a estátua de Antínoo em Delfos não pensei em Sophia, de todo. Acho, no entanto, em retrospectiva, que o que experimentei ao ver essa estátua talvez tenha mais a ver com o sentimento que o soldado inglês Norman Lewis descreveu, no livro Nápoles ’44, com mais simplicidade e menos metafísica do que Sophia ao avistar os três monumentais templos de Paestum, à data do seu desembarque, em 1944, com as tropas aliadas na baía de Nápoles. A meio da descrição do terror de desembarcar em Itália, debaixo de fogo inimigo, Norman Lewis diz o seguinte:
À medida que o sol começou a descer esplendidamente sobre o mar nas nossas costas caminhámos aleatoriamente por um bosque cheio de pássaros e, de súbito, demos por nós nos limites desse bosque. Olhámos e no espaço aberto diante dos nossos olhos havia uma cena de um encanto que não é deste mundo. À distância de alguns metros podíamos ver, alinhados, os três perfeitos templos de Paestum, cor-de-rosa e cintilando gloriosamente nos últimos raios de sol. Chegou como uma iluminação, uma das grandes experiências da vida.
Quando subimos pela encosta das ruínas em Delfos vai-se ganhando uma perspectiva sobre o vale que, sempre achei, tem qualquer coisa a ver com o modo como a poesia funciona, ou pelo menos com o modo como ela para mim funciona. Há qualquer coisa de uma lenta revelação que confina com o reconhecimento de uma geografia muito particular, e, ao mesmo tempo, a alegria de a ter entendido, de ter sido, ainda que efemeramente, parte dela, recompensa suficiente mesmo quando isso nada tem que ver com promessas de felicidade. Os lugares dos dois santuários de Apolo na Grécia, Delos e Delfos, são, com Paestum, de todas as ruínas do mundo antigo em que estive, aquelas que mais amo. Apolo não é, no entanto, para mim, um deus benigno e reconheço nele qualquer coisa de uma força caótica e dionisíaca, é o deus que traz a cura, mas na Ilíada é também ele o responsável pela peste que castiga o exército grego no início do poema, porque é um seu sacerdote que Agamémnon ofende. Há depois o dom envenenado da profecia, com que ele aflige Cassandra, e a sua própria aflição violenta e desastrada, perante o terror de Dafne ao tentar fugir-lhe e de como quando ele lhe toca ela se transforma em loureiro, aquele momento que se vê agora imortalizado na estátua de Bernini em Galleria Borghese. O rosto de Apolo, tem, de resto, alcances inesperados. Da última vez que um homem pisou a lua, os americanos estamparam a efígie de Apolo Belvedere na insígnia da missão Apollo XVII, ao lado da águia americana e de alguns planetas, para significar a ambição humana de chegar a outros mundos. Há qualquer coisa na história do nascimento de Apolo, tal como contada no Hino Homérico a Apolo, que o coloca fora da escala humana. Sempre me pareceu o deus mais lírico e menos humano de todos, a começar pelo facto de que a terra não o quer. Leto erra de ilha em ilha, já afligida pelas dores do parto, e todas as ilhas se recusam a recebê-la, porque têm medo do deus mesmo antes de ele nascer. É, justamente, nesses termos que Delos se queixa a Leto, quando ela lhe implora que lhe permita dar à luz no seu solo. Delos, que se tornaria, por uma enorme extensão de tempo até à época romana, um dos santuários mais prósperos da antiguidade, invoca o terror que sente de que o deus a calque com os pés mal nasça e a lance para o fundo do mar, onde os polvos e os peixes fariam dela sua casa. Desesperada a deusa persuade a ilha, prometendo-lhe que Apolo teria para sempre ali o seu templo, e que isso garantiria a sua fama e a sua opulência entre as outras ilhas. O último argumento de Leto, o argumento com que ela convence Delos, é pragmático e bastante pouco lisonjeiro. A deusa recorda à ilha a pobreza aflitiva do seu solo, o quanto ela é inóspita e inabitável, o quanto ninguém a quer, o que continua a ser verdade hoje como no século VII ou VI a.C., quando este hino foi composto. Ainda hoje, quase nunca ninguém dorme em Delos. A ilha, com as suas ruínas que atravessam diferentes séculos, que vão do período em que Naxos floresceu como potência das Cíclades até quase à decadência do império romano, é de uma esterilidade austera, pontuada de promontórios e ervas daninhas que se estendem por um solo pedregoso. É também profundamente caminhável e é possível percorrê-la a pé num só dia, qualquer coisa nela faz pensar na beleza violenta de Apolo, torna lógico o pensamento de que, quase imediatamente depois de nascer, o deus parte de Delos para matar Píton e instituir o seu outro santuário, em Delfos, de onde as pessoas receberiam dele esse dom ambíguo e angustiante da profecia, que não pertence ao mundo de um entendimento aberto, essas frases que uma sibila proferia em delírio, sondando em quem a escutava a perfeita intersecção entre uma profunda angústia e uma esperança irracional. Por alguma coincidência difícil de explicar, o Hino Homérico a Apolo é o único texto homérico que encerra uma descrição vagamente física e biográfica da voz a que chamamos Homero. Pedindo a um grupo de raparigas que não se esqueçam de mencionar a quem por elas passasse quem era o melhor aedo que elas alguma vez tinham escutado, ele pede-lhes que elas digam que é ele, o cantor cego da ilha de Quios. É para mim um momento de uma intensa emoção, esse breve acidente do registo da voz muito remota de um poeta muito arcaico, que foi passando de sopro em sopro até chegar a nós. O motivo pelo qual eu amo os clássicos, penso, tem menos que ver com a sua eventual sabedoria, amo-os às vezes mais nos seus erros e nos seus acidentes, nas suas intricadas encruzilhadas cómicas, como aquelas que vêm narradas por exemplo no Hino Homérico a Hermes, nas trocas entre Apolo e esse outro deus, bem diferente dele e para mim mais benigno, o motivo por que amo os clássicos, dizia, tem qualquer coisa a ver com o espanto perante esse cuidado de tentar cuidar e preservar essa memória de mortos muito longínquos. Os gregos, que se preocupavam tanto com a memória, apreciaram isso. Esse cuidado é uma das poucas coisas que está entre nós e a história da destruição que parece em nós por vezes obscenamente natural de escrever. E, já agora, também esse amor cego da destruição vem dos gregos, basta pensar na trajectória de Aquiles.
O que me leva de novo a Delfos. Da última vez que lá estive, há cerca de duas semanas, observei como as temperaturas se têm mantido tão altas que as folhas das árvores de folha caduca mal chegaram a mudar de cor. De alguma forma, a angústia da terra sente-se, respira connosco até no ar em Delfos. Haveria a perguntar o que é que a relação dos gregos antigos com Apolo, para eles ao mesmo tempo o deus da poesia e da profecia, nos diz da nossa relação com a linguagem e com o modo como ela pode construir ou destruir o mundo. Muito haveria a dizer sobre isso, eu queria apenas acrescentar que, pensando sobre Delfos e sobre a dádiva mais ambígua de Apolo, a da profecia, essa voz interior que vinha, para os gregos, de um lugar anterior à inteligência, me ocorre que ela na verdade servia, ou parece-me que servia, para pelo menos tentar rejeitar o lado absurdo do mundo, fixar na escuridão desesperada do que ignoramos, a rota de um caminho, a sua visão mais ou menos desajeitada. E que isso talvez fosse uma tentativa de não acrescentar mais absurdo ao mundo.
Da mesma forma que continuo sem poder dizer se o mundo é sagrado e tem um centro, e se esse centro será Delfos – talvez o mundo tenha vários centros, de que Delfos seja apenas um – posso, no entanto, confirmar que o complexo arqueológico continua a conter uma próspera família de gato cinzentos, de alucinantes olhos amarelos, da qual se distinguem claramente pelo menos três gerações. Porque são gatos de Delfos, pode deles ser dito, com a aprovação do deus, que há neles qualquer coisa de sibilino, oracular. Essa qualquer coisa de sibilino e oracular pode, ou não, apontar para alguns versos que Sophia escreveu, de resto num livro preocupado com as relações entre nomes e coisas, O nome das coisas, em que num poema intitulado “A forma justa” encontramos os seguintes versos. São talvez os meus versos favoritos de Sophia:
Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo