Paul Valéry: Aforismos
/Selecção e tradução: João Moita
Saborear a injustiça.
A injustiça é uma amargura que restitui o sabor à solidão, aguça o desejo de separação e singularidade, abre o espírito às vias profundas que conduzem ao único e ao inacessível.
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No fim de contas, esta vida miserável não merece que sacrifiquemos a existência à aparência, quando sabemos aos olhos de quem, diante de que olhos vamos aparecer.
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Sinceridade.
A sinceridade desejada leva à reflexão, que leva à dúvida, que não leva a lado nenhum.
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Si.
De nós não sabemos mais do que aquilo que as circunstâncias nos deram a conhecer (ignoro tanto de mim).
O resto é indução, probabilidade: Robespierre jamais imaginou que guilhotinaria daquela maneira; nem um outro que amaria até à loucura.
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O crime não se encontra no momento do crime, nem mesmo um pouco antes. – Mas numa disposição bem anterior e que se desenvolveu à rédea solta, longe das acções, como fantasia sem consequências, como remédio para impulsos passageiros – ou para o tédio; – frequentemente pelo hábito intelectual de considerar todas as possibilidades e de as formular indistintamente.
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As «razões» que nos levam a abster-nos dos crimes são mais embaraçosas, mais secretas do que os crimes.
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O castigo enfraquece a moralidade porque dá ao crime uma compensação acabada. Ele reduz o horror do crime ao horror da pena; – ele absolve, em suma; e faz do crime uma coisa negociável, comensurável: podemos negociá-lo.
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Tudo aquilo no qual e pelo qual nós temos necessidade imediata de outrem é «ig-nóbil» – não nobre.
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Mentira.
O que nos força a mentir é frequentemente o sentimento que temos da impossibilidade de os outros compreenderem inteiramente os nossos actos. Jamais conseguirão conceber a sua necessidade (que a nós mesmos se impõe sem se esclarecer).
– Dir-te-ei o que podes compreender. Não podes compreender o verdadeiro. Não posso mesmo tentar explicar-to. Dir-te-ei, pois, o falso.
– É assim que nasce a mentira daquele que desespera do espírito de outrem, e que lhe mente, porque o falso é mais simples que o verdadeiro. Mesmo a mentira mais complicada é mais simples que a Verdade. A palavra não pode pretender patentear toda a complexidade do indivíduo.
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Deus criou o homem, e não o achando suficientemente só, deu-lhe uma companheira para melhor lhe fazer sentir a solidão.
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A maioria das pessoas têm uma ideia tão vaga da poesia que o próprio vago da sua ideia é para elas a definição de poesia.
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O pensamento deve estar tão escondido dentro dos versos como a propriedade nutritiva dentro de um fruto. Um fruto é alimento, mas não o experimentamos senão como deleite. Apenas sentimos o prazer, mas recebemos uma substância. O encantamento esconde esse alimento insensível que ele transmite.
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«E os meus versos, bem ou MAL, dizem SEMPRE alguma coisa.»
Eis o princípio e o embrião de uma infinidade de horrores.
Bem ou mal, – que indiferença!
Alguma coisa, – que presunção!
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Acho curiosa esta ideia da religião: que uma falta cometida retire a mercê da pureza anterior – como se o mérito da «alma» tivesse sofrido uma «transformação irreversível». E, pelo contrário, que o arrependimento e as suas fórmulas obrigatórias apaguem todo um passado detestável não é menos espantoso.
De onde vem o poder de tal dia numa vida sobre todos os outros dias? Aquele que está fora do tempo, porque dá ele este preeminência, para o mal ou para o bem, ao mais recente sobre o mais distante?... De dois mortais, um é salvo, o outro condenado. Mas a vida de um é idêntica à do outro, tomada em sentido contrário.
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Sei que a juventude chegou ao fim quando o meu pensamento se repercute naquilo que faço - ao mesmo tempo que aquilo que faço se incrusta naquilo que penso.
Paul Valéry, aforismos de Tel Quel I, 1941.