Para uma geopoética europeia

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Lugar de inspiração: Liberation, 2 de Outubro de 2014, e a brisa de fim de ciclo que regressa à Europa.

Reportagem sobre a exposição “Secession”, no instituto francês de Berlin. Objectivo: explorar novas cartografias europeias, menos geográfico-políticas, mais experimentalistas e espirituais.

Sabemos que o grande projecto colonialista e positivista europeu de século XIX desenhou mapas cada vez mais precisos, geometrizados, sobretudo em África (esse “continente ainda por civilizar”). Mas os mapas são muito mais do que reduções proporcionais e objectivas do mundo em imagens, eles resultam sempre de gestos culturais, construídos por saberes humanos datados, são, numa palavra, o produto das interpretações dominantes. Ora, em Berlin propõe-se descontruir esse statu quo, invertendo, ou subvertendo, as narrativas geográfico-políticas.

Das propostas da exposição, gosto da do escritor Camille de Toledo (comissário de “Secession”, juntamente com a historiadora Leyla Dakhli), centrada numa pan-tradução, comunidade poética europeia que viveria “entre-as-línguas”, como se a língua franca fosse a tradução, ou melhor, o espaço que se constitui no vaivém entre os idiomas. Camille quer uma alternativa à utopia literária de Goethe (o desenvolvimento do bom entendimento entre os povos através de uma literatura mundial) e à da MittelEuropa, Europa central do XIX/XX, que parece, mutatis mutandis, ressurgir (assente numa pluralidade das línguas e sistemas filosóficos, mitigada na cosmovisão comum acerca do valor dos conceitos e da sagração tecnológica). O que se procura em Berlin é reinscrever o espaço europeu num lugar de futuro (daí o utopos), “escapar à saturação memorial, ao assombramento do passado europeu” (feito de glória e de trágico). Acelerar um pouco a história (hoje parecemos medusados pelos notáveis feitos do Estado Social e da pujança económica pretéritas), reactivando o projecto crítico europeu (talvez o maior de todos os legados civilizacionais, haverá maior virtude do que investigar as ilusões?), voltar a ver claro nesta crise devastadora, estéril e já profundamente dogmatizada. Revogar a prevalência da face de Janus que olha imóvel para o passado (também o mau, ainda não totalmente redimido), apostar na que mira o futuro.

Mais afastada de qualquer compromisso, ainda no contexto da exposição, a 23 de Setembro, uma assembleia de artistas, filósofos, tradutores... propôs uma ficção colectiva, alimentada num movimento popular, que fizesse emergir o “povo fantasma”, capaz de exonerar as velhas instituições da Europa burocrática. Essa ficção seria o produto, sempre inacabado, dos palimpsestos das ficções nacionais, que depois de confrontadas e articuladas com o horizonte pós-nacionalista seriam exauridas da sua potência mitológica nacional, podendo finalmente alcançar um europeísmo feito do neo-povo fantasma, apátrida e sem deveres de adoração às velhas instituições,  símbolos e narrativas identitárias.

No fundo, pretende-se dar outro sentido ao projecto europeu através da ficção, reinterpretar o nosso continente a partir de “geografias errantes e polifónicas”.