Saint-John Perse, «Amers», Estrofe-III-2

Saint-John Perse, Amers, Estrofe-III-2

Tradução: João Moita

«Mas erguemos ainda os braços em honra do Mar. Na axila açafroada toda a especiaria e o sal da terra! – alto relevo da carne, modelado como uma virilha, e ainda essa oferenda da argila humana de onde irrompe a face inacabada de deus. 
«No hemiciclo da Cidade, onde o mar é o palco, o arco tensoda multidão ainda nos sustém na sua corda. E tu que danças a dança da multidão, elevada fala dos nossos pais, ó Mar tribal na tua charneca, serás tu para nós mar sem resposta e sonho mais longínquo que o sonho da Sarmácia?
«A roda do drama gira na mó das Águas, esmagando a violeta negra e o heléboro nos sulcos ensanguentados da tarde. Cada vaga ergue para nós a sua máscara de acólito. E nós, erguendo os nossos braços ilustres, e voltando-nos ainda para o Mar, na nossa axila alimentando os focinhos ensanguentados da tarde,
«Por entre a multidão, em direcção ao Mar, nós nos movemos em multidão, com esse amplo movimento que emprestam à ondulação as nossas amplas ancas de camponesas – ah! mais telúricas que a plebe e que o trigo dos Reis!
«E também os nossos tornozelos estão pintados de açafrão, de múrice as nossas mãos em honra do Mar!» 

Poesia e Solidão

A poesia não se faz de correntes nem de contra-correntes[1]: a poesia faz-se de solidão. É em solidão que a escrevemos e em solidão que a habitamos. Ou melhor, investirmo-nos da sensibilidade poética é investirmo-nos da nossa solidão, inundarmos a mudez do mundo com o halo de uma autenticidade que nos pertence e que a ele reclamamos, por vezes, quando o que é excessivo em nós não encontra eco no silêncio fechado do que nos rodeia.

É comum, e talvez não despicienda, a noção de que a origem da poesia está historicamente associada ao aparecimento do culto religioso, esse elemento unificador das sociedades, mas também de confronto com as forças incoercíveis da natureza e com a inelutabilidade da vida. Creio, sobretudo, que o dado consumado de que morremos não é alheio à intrínseca necessidade que o ser humano experimenta de fazer a sua vida confluir para situações em que o sentimento estético actua como elemento redefinidor da existência, dando-lhe consciência da exiguidade e incomunicabilidade dos seus domínios, que no entanto se distendem e proporcionam algo semelhante a um alívio nessa distensão. Como disse a propósito da poesia de Antonio Gamoneda, a poesia dá-nos consciência da dimensão daquilo que entregamos à morte, ou seja, o nosso eu, opondo-o ao que sabemos que o extravasa porque, inacessível e inabitável, ainda assim se nos apresenta, mesmo que o não consigamos representar. Falo de Deus, o mais verdadeiro e mais vago dos conceitos.

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Sentado ao fogo, junto de minha mulher...

Rembrandt, Tobias e a sua mulher (1659)

Sentado ao fogo, junto de minha mulher, inquilina da minha solidão, recordo os anos da juventude. Nessa altura, o mosto fermentava nas caves da idade e nós aguardávamos o vinho maduro com a impaciência dos sóbrios. Tudo foi preparação. Os enforcados amavam as nossas travessias, as mães rezavam com as mãos postas sobre o linho corrompido pelo sal. Onde as aves desertavam, erguíamos um templo de suspeita e sedução. Eram os dias do amor e do arrependimento. Hoje sei que a embriaguez é só esta indiferença com que pressinto o sangue nos dedos da minha mulher que borda, e que a sabedoria nos abandona no fim. Ainda esta noite comungarei com Deus. Amanhã serei as uvas frescas na videira.

De Fome (inédito)

Poucas vezes mais farei esta viagem

Poucas vezes mais farei esta viagem. A erva cresce com o trigo, as flores despontam, as árvores segregam resina e dão sombra à terra ressequida. Os campos estão lavrados, o gado pasta ordeiramente, o rio segue amordaçado. Há pássaros invisíveis no horizonte e outros escondidos em ramos longínquos. Feras ocultas em recantos sombrios, a lentidão da seiva sob a descarnação do sol. O pó repousa nas covas abandonadas pelo vento ou soergue-se desamparado no topo das colinas onde o tojo se inclina para os precipícios. Na povoação, desmoronam-se as pedras sob a cal, o sustento dos homens. Há frutos que se arredondam segundo geometrias bárbaras, apurando o gosto. E os insectos com a sua azáfama insone, divididos entre beleza e deslumbramento. E a areia dos caminhos, mais batida que o dorso de um cavalo, é a crina desta paisagem. Em breve deixarei de passar por aqui. Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.

 

De Fome (inédito)

É o tempo da abundância e da paz sobre os campos

É o tempo da abundância e da paz sobre os campos. Vejo-os ao olhar nítido da minha fome. As sombras estendem-se sobre eles como os rios no seu leito e eles são à superfície a agonia da paisagem. É o último dia de agosto, a tarde desce com o verão. Ainda se ouvem nas árvores os últimos pássaros e a agitação da folhagem esconde tantas asas quanto aquelas que ainda ferem o meu coração. Estive pronto e não parti.

 

De Fome (inédito)