Um funcionário

Agora que voltei ao escritório, voltarei também ao lirismo?
Dobrar-me-ão de passagem para a copa
as vergas
d'O Cântico dos Cânticos, As Mil e Uma Noites,
certa nota de jornal enfiada à carteira

a versar sobre a infinita divisibilidade de Homero
agora com postulados algébricos?
Ora, merda.
A quem cantarei agora estas maravilhas?
pergunto-me
fixando abobado um glossário de termos petrolíferos
uma fotocópia
largada sobre minha mesa, encarquilhada de manuseio
 
(falando-me do manuseio, falando-me a muitas mãos. Quase tomando-a por algo belo)
gongo à garganta da ascensorista
“desce”
uma malha de corredores vazios, espalha-se a ordem por
lajotas de mármore
maravilhas?
Coisas tão miscíveis em seu próprio tempo,

que tipo de operação as dissociaria de tão entramada geral?
Eu tratava o divórcio entre as coisas.
Eu tinha tempo.
Estava ainda por topar a palavra Absoluto
em meio a uma interminável lista de aromatizantes...

(Era embasbacá-la –, era um dever moral).
A quem cantarei agora
                                    Óleo absoluto de rosa damascena

                                    Óleo absoluto de rosa damascena?                                   
Bem que me disseram que esta era a cidade das coincidências,
que não havia meios de escapar,
que, como toda a gente, eu ainda reencontraria no metrô algum velho conhecido dos tempos de colégio
abotoado dos pés à cabeça,
que eu seria levado a pensar, forçosamente, na fraternidade dos homens,
nestas partilhas ásperas,
minuciosas,
levadas a cabo no mais entalado silêncio.
Eu sabia destas coisas,
julgava-me – em alguma medida – preparado,
inclinava as pupilas com a luz branca,
recebia dócil, alegre até, o beco trabalhado em minha testa.
Mas eu olho para baixo e o que vejo, ao fim do dia, são os sapatos de um outro.
O verniz de um outro.

Resultados Milagrosos

“Meu filho adolescente anda a ler os estoicos”, ele disse
uma janela domina
(não há outra palavra para)
relutância em admitir que a luz é âmbar
(sendo as velas um perigo para o edifício inteiro)
então escrevi a meu pai o médico
não excluía de todo a possibilidade de uma hérnia
era Lídia
quem me respondia agora era o olho direito
ou seja, a cirurgia
vou perguntar mais uma vez  “de quem é essa letra?”
meus irmãos, bem entendido, não disseram nada
tiveram outra criação
não pude me conter quando ele se confessou triste por estar ausente do consultório há mais de uma semana
(estranho, não? a vida fora contemplando um bocado monasticamente
a ideia do suicídio
para ser acometido tão logo divisasse a curva dos trinta por esse – como se diz? – “insuportável desejo de viver”)
não, talvez não
lançou um olhar um depois do outro sobre eles e disse quero a sua idade
“será possível sem o recurso às cifras?”
não eu não vou descansar
não eu não vou descansar até que
não vou aceitar não como não vou aceitar como não como não como resposta
não consigo cogitar dos fatores que levam um Indivíduo a optar pela Medicina
(ele pretende, de fato, reembolsar o atual amante de sua esposa pela passagem?)
e afinal quando eles chegam não configura exatamente distensão
pelo contrário
resta sempre engatilhado o medo de folhear aquele antigo volume e reencontrar-lhe uma mesma inflamação nas amígdalas
não comigo só (o caso de tão brandos reencontros)
a caminho do cinema, vejo-me obrigado a explicar para minha mãe que nossa última entrevista não foi triste e sim
construtiva
“é bom que a casa fica mais arrumada” sim
que mais que ela faz?
ela domina (não há outra palavra para) certo configuro de muros e telhas
e as cheíssimas sombras da vizinha bromélia
concordo –, isto não é vida
sente-se nos quadris a troca de estação
retiro o casaco de seus referentes
esta planta é de mau tom
minha família inteira resolve colocar as diferenças de lado e reunir-se num armazém do cais do porto
no intuito de me alertar para

Onde cair morta

Fui uma criança feliz, possuidora de suas solidões -, assim dizem os leks quando entram a pensar em voz alta sob os toldos dos bares. 

Agora, no entanto, e o senhor certamente convirá, minha situação é deplorável. Decresço talvez da espessura de um tule, um barbantinho deveras penitenciado, e todos concordarão já não sou a mesma tipa que… 

contudo 

onde os meios de aplacá-los? 

Dão-me a entender continuamente que o pouco que peço da vida não é absolutamente razoável. Dizem também que não sofro, que não há razão, que se não o admito é por volúpia e perversidade. Então, não sofro. Não sofro. Mas também não sei mais o que fazer. 

Passo os dias pateando com a barriga. Assim não se vai muito longe, mas insisto – não reconhecerei essa cidade. De resto, já fiz concessões demais. Há limites para tudo. 

Não bastou um só marinheiro. Houve um mar rebocado de branco, pensei, e fui abaixo. Quando voltei para a minha mesa, contava com certa ancestralidade que antes não tinha. Os da casa, naturalmente, não souberam como reagir. 

Toquei para o quarto me lustrar.

Há sempre graves consequências para portas e janelas, e o senhor meu pai certamente convirá, meu trabalho tem que ver em sua essência com descuido.

Eis a única concessão que não me disponho a fazer – não reconhecerei os seus parques, os seus cães, os seus espelhos – não os reconhecerei. O meu trabalho talvez não interesse a ninguém – é uma hipótese, aliás, bastante cabível –, mas eles... ora, eles...

temo que não se deixem aplacar nem mesmo pela minha ausência

Sei que breve darão por encerrada a minha estadia aqui – impossível prever que pretextos, que perjúrios, ocupo-me disso com todas as fibras do meu ser mas continuo sem compreender o que exatamente se espera de mim.

O que posso dizer é que a atmosfera torna-se cada dia mais rebarbativa. Dentro em breve encontrarão algum motivo para me desalojar; minhas economias acabaram; não tenho maisninguém no mundo a quem recorrer. O senhor não me receberia em sua casa, talvez em junho, julho, o senhor não me faria a caridade de um cantinho para organizar os pensamentos?

penso que 

Prometo ajudar nas pequenas tarefas da casa, acompanhar os seus meninos até o colégio, se é que já não estão na universidade, os meninos. Eu não sei. Tentarei, tentarei me envolver, naturalmente, dentro dos limites que o senhor achar por bem colocar. 

Além do mais, parece-me que há muito postergamos um íntimo acerto de contas.

Eis, portanto, uma bela oportunidade que o senhor me daria de conhecê-lo um pouco melhor, uma oportunidade talvez de trocarmos raízes, apesar de todos esses anos que passamos alheados um do outro.

Sou a primeira a reconhecer que fiz um casamento infeliz, que desperdicei os melhores anos de minha vida com empreitadas absurdas, irreais. Tenho presente o tanto de desgosto que dei àqueles que só queriam o meu bem, e que minha reputação neste Eixo não é das melhores. Não serei merecedora, contudo, de uma segunda chance? 

O senhor certamente convirá em que trilhou caminhos os mais tortuosos até encontrar a felicidade doméstica. 

Não serei merecedora, contudo, de uma segunda chance?

Mas o senhor me recusaria

Mas o senhor não me recusaria a caridade de um canto para passar o inverno.

Ah, o campo

I.

 

Não sinto a menor falta do campo. Com morar lá tantos e tantos anos (uma eternidade aproximada), acabei por me render a toda espécie de dualismo fácil. Envergonha-me dizer que houve para mim, em algum momento, o campo – e para lá da rodovia, uma cidade, o seu plural, acidentes (as estradas que nos cintavam). Rapidamente se impôs a necessidade de rarefazer um pouco as coisas, sutilizá-las – afinal, era uma vida que não se colocava, dava-se ao fim e ao cabo em qualquer canto. Suavizada a luz a que me apareciam de costume estas questões, pude finalmente concluir que toda terra é estrangeira para alguém. Reconheço, não é difícil atinar com este raciocínio; há mesmo nele certo ranço a lugar-comum; torná-lo uma segunda natureza – não precisar remontá-lo a cada vez, por exemplo, que pego numa câmera – isto sim me custou um bocado. 

II. 

Não sei se entendi a sua pergunta. Você quer dizer estes retratos? Não, não sei de quem são, são meus irmãos, foram passar o ano-bom no sítio de um amigo. Sim, parecem muito felizes.