O mal académico

 

Segundo um estudo publicado em finais do ano passado pela mais reputada universidade siberiana actual, a massificação da atribuição de bolsas e de títulos de doutoramento tem vindo a contribuir para uma inelutável decadência do povo português, espécie já não muito abonada no que concerne ao intelecto. Essa decadência tem-se feito sentir de tal maneira que um dos mais renomados professores da dita instituição, o Professor Doutor Fiódor Dostoiévski, autor de O Idiota, incontornável trabalho sobre este flagelo chamado doutoramento, sublinha a importância da leitura para o combate  contra a bestificação provocada pela longa exposição aos pútridos ares académicos. Também vítima de uma pequena dose de estupidez, amenizada pela escrita e por um vício revitalizante pelo livro enquanto objecto transmissor de conhecimento, o doutor Dostoiévski confessa que um dos momentos mais deprimentes da sua vida aconteceu pouco antes de entregar a sua tese de doutoramento, quando o seu orientador o aconselhou a ler menos se quisesse vir a ser um bom universitário.

Se a universidade tem funcionado como sugadoiro cerebral, o que fazer para pôr um fim a esta epidemia? Como terminar com este surto de idiotice? Estas questões conduzem-me ao escritório de uma doutorada portuguesa, exilada permanente num apartamento à beira de uma praia de Tânger. “Os meus problemas surgiram no dia em que o meu orientador me encostou à parede, perguntando-me com uma fúria imensa por que motivo não o procurava tanto quanto os seus outros orientandos.” O que aconteceu após este encontro furtivo com um dos líderes da animalização humana é indescritível mas, para bem da ciência, atrevo-me a prosseguir: “Vivi um martírio: fui obrigada a assistir a todos os colóquios e seminários do orientador, compraram-me um relógio igual ao dele, não me deixaram dormir enquanto não lesse toda a sua obra (por obra entenda-se: tese de doutoramento remastigada ao longo de décadas, de forma a ampliar um curriculum vitae com trabalhos versando sempre o mesmo tema, mas de diferentes perspectivas).” Pergunta-se o leitor: quem obrigava esta doutorada a tão árduas tarefas? “Ameaças veladas, comentários que me feriam de morte. Chegaram a insinuar que não acabaria a tese se não me tornasse amiga pessoal e admiradora dos meus professores.” Depois destas vivências, a doutorada fugiu de Portugal, disse até nunca mais à Universidade de Lisboa, e apanhou um navio para Marrocos, onde hoje se dedica a vender chá de hortelã a turistas. Tendo conseguido sobreviver, dedica-se igualmente a sessões de terapia via telefónica com estudantes de doutoramento em vias de se tornarem macacos. “O que lhes digo é isto: da mesma maneira que as vossas mães vos ensinaram a não falar com estranhos, eu ensino-vos a enxotar assassinos disfarçados de cavalheiros”, sentencia e conclui: “Para acabar com esta praga dos doutoramentos, estou convencida de que o método mais eficaz consistiria na leitura massiva da obra de Shakespeare em todas as faculdades. Despejar toneladas de obras clássicas em cima das faculdades, mediante o auxílio de aviões, poderia de igual modo auxiliar a expurgar estes vermes.

 A solução passa por ler. A doutorada e Dostoiévski coincidem neste ponto. Decidida a pôr à prova este método, iniciei-me na leitura de Platão. Li a obra completa de Platão. Ou da obra publicada em português. Li ao lado de professores, de alunos, de funcionários. Só a visão do livro derrubava professores, mesmo os mais anafados, os instalados num sistema que lhes permitiu acumular carnes e ranço e ignorância. Experimentei recitar Shakespeare e foi vê-los tombar, pálidos, clamando por palha para a desidratação. O método da leitura funciona. Há uma salvação para a humanidade. Acabar com os idiotas académicos não é, no entanto, tarefa a que se possa dedicar o simples mortal. Apenas gente experimentada sobrevive a estas batalhas. Reproduzindo um excerto de O fechar da mente, memória da autoria do mais premiado escritor da comunidade esquimó: “A universidade tem destruído pessoas muito dotadas. Sente-se primeiramente uma leve presunção, uma vaidade enganadora, sintomática de uma doença muito profunda. O esvaziamento cerebral processa-se em pouco mais de um ano. Exposto a seis, sete anos de estupidez, como pode um aluno sobreviver sem mazelas? Não pode. Perdi um filho para a universidade. É o meu desgosto. Refugiei-me num iglu. Não aguentava assistir à derrocada do meu filho, um ser incapaz de enfrentar o mundo real, sempre obcecado com colóquios e papers e notas de rodapé. Comia na cama, rabiscando bibliografias e olhando para papel inútil, papel morto. Um pesadelo.” O objectivo deste texto passava por descobrir e fornecer pistas para a cura de uma doença para qual ainda não existe diagnóstico preciso. Essas pistas foram dadas, agora vou ali fazer um resumo de cem palavras em inglês para enviar para uma publicação com. Peers. Pares. Ai. Também eu?

Estrela pura

O poeta, romancista, escritor e pensador António Carlos António é um homem ocupadíssimo. Desde o ano passado que ficara de me conceder uma entrevista. António Carlos António é a pérola que mais cintila dentro de uma gaveta de pérolas que ainda não chegaram a ver a luz do dia. O seu momento chegará. Acredito eu, acredita quem o lê, quem o ouve, quem o vê. António Carlos é bonito, é inteligente, ginga sem tocar no solo com a sola dos sapatos. Com alguma agressividade, pede-me para que publique a entrevista sem revisões. Deseja a coisa em bruto, como tudo que faz. Com brutalidade. 

O que anda a escrever?
 

Um ensaio sobre um romance da minha autoria ainda não publicado. Trata-se, talvez,  do ensaio que melhor analisa a minha obra ficcional. É algo muito abrangente. Quem quiser perceber minha ficção, necessitará certamente de ler este trabalho mental nunca vertido para o papel. Agora perguntar-me-ia como se pode ler algo não escrito. Ouvindo-me.

Quando teremos acesso aos seus escritos? Não sei se tem noção de que ainda não publicou nada.
 

(Sorrisos) Eu não procuro editoras. As editoras que me procurem. Os meus manuscritos estão disponíveis, quando tiver paciência transponho-os para o papel. Basta virem ter comigo. Apanhem o metro para o Intendente, perguntem pelo António Carlos António, ou então pelo “Bonito”, e não haverá quem não saiba dizer onde moro. (Cofia a barbicha) Modestamente, muito modestamente, tenho vindo a construir uma fama que transcende o Intendente. Sou o escritor mais famoso de Lisboa. E nunca publiquei nada. Quem se pode gabar disso? Até lhe posso dizer que preferiria nunca publicar em papel e andar de casa em casa a declamar a minha obra. 

Gostaria de ser um Pynchon ou um Salinger, alguém que não aparece?
 

Sou o António Carlos António, não me confundam com outros. Não conheço esses autores. São bons? Sabe, sou puro em tudo o que faço. Não leio outros autores para que a minha escrita não sofra distorções. Quero escrever sem influências. Posso aparecer. Gostaria de aparecer. No entanto, reflectindo sobre o assunto, tenho alguma dificuldade com algumas questões. O que é aparecer? Ser influenciado. Ser um animal social. Rejeito. Não uso telemóveis para que a tecnologia não me influencie. Não escrevo no computador com receio da influência. Não quero ser influenciado. Sabe como escrevo? Com o cérebro. Nem o papel merece o esforço da minha mão. 

Diz-se puro. Não lê enquanto escreve “mentalmente”? 
 

Eu inverteria a questão. Pode um autor ler enquanto escreve? Se eu lesse esse tal Pynchon enquanto escrevo, escreveria como Pynchon. Não posso dar-me a esse luxo. Estaria a contribuir para a alienação de que o mundo padece.

Alienação no sentido de Marcuse?
 

No sentido de António Carlos António. Posso gabar-me de nunca ter lido um livro. Não preciso de ler para escrever. Possuo pensamento próprio. Como poderia ler se estou sempre a escrever? Não se pode ser duas coisas ao mesmo tempo. Escolhi a escrita, é da escrita que me alimento. O meu cérebro está cheio de António Carlos António. 

Consulta dicionários?
 

Claro que não. As palavras chegam-me quando devem chegar. O que não aparece é porque não estava destinado a aparecer. 

Qual o tema do seu romance?
 

O meu ensaio é sobre isso. O romance é sobre mim próprio. Sobre o facto de eu ser alguém que não precisou de ter mãe, nem pai, que não passou por licenciaturas, que não leu. Fiz-me a mim mesmo e continuo a ser eu, imune a tudo o que me rodeia. 

Tem preocupações sociais?
 

Podemos dizer que sim. Escrevo para combater essa corja de analfabetos que para aí anda, saltando de bar em bar, gabando-se da sua própria genialidade. Sou o representante do povo. O povo nas letras. Vomito quando penso nessa praga de escribas que se arrasta pelas ruas de Lisboa. Maltrapilhos que enchem o Intendente, os Anjos, o Bairro Alto. Essa malta mete-me nojo. Com o seu estilinho provinciano. Aldeões mascarados de citadinos. Com as roupinhas rasgadas e as malhas e sei lá o quê. Um ror de pulhas. 

A inveja é uma preocupação social?

Inveja? Eu. Ai que desmaio. Desfaleço. Vejo escuro. Ceguei. (De apalpadela em apalpadela chega-me ao peito) Onde estou? Inveja? Ai que me feriram. Pior do que Lear. (Conhece Shakespeare apesar de afirmar nunca ter lido nada) Mulher desalmada.

Preocupa-se com alguma questão importante?

Preocupo-me com a morte, com a minha morte, não quero morrer. Depois de mim, que tipo de artista haverá? Esta ralé? (Apruma a gola da camisa) Vamos esclarecer uma coisa. Não sinto inveja. Sou um altruísta. Sou mundo. Os meus braços são divinos, podem ser repartidos pelos pobres. O meu corpo é como um livro infinito, passível de múltiplas leituras e interpretações. O meu corpo nu repartido pelos pobres, como pão e vinho. O tema da minha obra resume-se a eu ser mais do que o planeta. Não posso ler nada para além daquilo que é meu, daquilo que penso, pois nada é maior do que eu. Eu sou o planeta. Os pobres que venham a mim e se alimentem dos meus pensamentos. (Emociona-se, a voz treme-lhe) Fossem todos como eu e não haveria fome.

Qual a sua opinião sobre Herberto Helder?

Não sei quem é e, sublinhe-se, prefiro não saber.

E Oliveira?

O meu tio ardina. Um homem assaz respeitável. Casou-se com uma brasileira e fez fortuna lá para o Minho. Foi pioneiro no ofício do proxenetismo lá para aquelas bandas.

A entrevistadora fecha, amargurada, o caderno. Ainda não apanhou escritor que não lhe enchesse as medidas. Todos touros bravios, todos homens vigorosos. Este portento entristece-a. O sexo entristece-a. Será isso a alienação? O momento depois do prazer. A morte de Bataille?

 

Entrevista a Hugo Milhanas Machado

Salamanca, seis e três da tarde, crepúsculo. O poeta encontra-se três minutos atrasado. Nunca se deu o caso de entrevistar um poeta e pergunto-me se haverá alguma especificidade em relação a outro tipo de escritores. De acordo com as informações de que disponho, os poetas tendencialmente vestem-se como hipsters e são pessoas muito interessantes. Têm também fama de ser gente difícil: Byron dormia com a irmã, Fernando Pessoa gostava bastante a atirar para o demasiado de bagaço e aguardente, Manuel António Pina tinha gatos. Enquanto pondero estas questões, um ciclista em equipamento completo passa pela montra do café. O seu meio de locomoção: a bicicleta, evidentemente. Cinco minutos passados a prender o veículo com três cadeados (bicicleta de corrida, investimento considerável), o indivíduo aproxima-se. Apresenta-se como sendo o poeta que devo entrevistar, Hugo Milhanas Machado. Duvido dele, mas não há sinais de hipsters neste tranquilo café de Salamanca. O poeta senta-se e a entrevista começa.

 

Podia-nos falar um pouco da sua poesia? Tem consciência de que este livro não é muito fácil de ler? Confesso que gostei de quase tudo o que entendi, mas não podia ser um pouco mais lírico?

 Agradeço-lhe, em primeiro lugar, ter vindo aqui ao meu encontro e por ter lido este livro. Mas vai desculpar-me, não poderei dizer muito mais. Julgo que não me cabe defender como são ou como poderiam ser estes poemas, e muito menos ambiciono que o leitor os entenda como eu os entendo. São poemas, encontros de linguagem, jogos, diversões, pontos quentes na fala. Sim, reconheço que aquelas palavras também querem dizer qualquer coisa, mas julgo que essa preocupação é bem capaz de me sobrar. Nem sei se gostar das coisas tem realmente a ver com o entendimento delas. Gostar de uma pessoa, por exemplo: quando entendemos porque gostamos começamos a deixar de gostar, ou a perder o sentido do gosto, não acha?    

 

Quando começou a escrever poesia? De acordo com uma fonte anónima[1], partiu a cabeça na fonte da escola. Há alguma relação?

Sim, é verdade, estaria talvez na segunda ou terceira classe. Nunca tinha pensado no assunto nesses termos e há muito tempo que não me lembrava disso, mas pode guardar certa relação. Se me coloca a pergunta é porque alguma coisa terá que ver. Recordo o impacto contra a pedra, o impacto, a minha professora a mexer-me na cabeça e os dedos cobertos de sangue. Mas realmente só escrevi o primeiro poema uns anos depois, no sexto ou no sétimo ano do básico, e para impressionar uma colega de turma. A conquista falhou, mas comecei a interessar-me pela brincadeira.

 

A sua poesia é bastante original no contexto da poesia Portuguesa contemporânea, uma verdadeira experiência de estranhamento da linguagem. Como é que descobriu que esta era a forma de expressão que era mais adequada para escrever os seus poemas? 

Não sei se será muito original ou não, mas simpatizo com a formulação. Como disse há pouco não vejo grande pertinência em explicar ou defender como escrevo os poemas ou como armo os livros que depois publico. Posso sim recomendar algumas leituras ou resenhas muito atentas a partir de livros meus que de certo modo me permitem ver tudo isto desde fora, perspectivar as leis de construção que se vão intuindo nos livros. Refiro-me a textos de Nuno Dempster, Manuel Margarido, Rui Alberto Costa ou Henrique Manuel Bento Fialho, que aproveito para agradecer.

 

Este livro intitula-se Onde Fingimos Dormir como nos Campismos. Fale-nos um pouco da sua relação com o campismo. De acordo com a mesma fonte, com dezasseis anos foi acampar sozinho para Vila Praia de Âncora devido a questões amorosas. Agustina Bessa-Luís tem um livro intitulado Canção diante de uma Porta Fechada mas você montou, por assim dizer, a tenda à porta dela. Descreveria isto como um comportamento relacionado com o modo como entende a poesia?

 Tempos giros, esses. Recordo bem essa aventura, e lembro-me que tinha um caderno comigo onde ia apontando umas coisas. Mas a minha experiência campista tem sobretudo que ver com Peniche, com o mar de Peniche, com as praias, as noites de vento e estrelas a céu aberto, a malta de lá. O meu livro anterior, Uma Pedra Parecida, junta poemas quase todos eles escritos no Parque Municipal de Campismo de Peniche, suponho que para começar a dar nome às coisas, às magias de um tempo de miúdo que se ia apagando.

Recordo bem essa aventura, e lembro-me que tinha um caderno comigo onde ia apontando umas coisas. Mas a minha experiência campista tem sobretudo que ver com Peniche, com o mar de Peniche, com as praias, as noites de vento e estrelas a céu aberto, a malta de lá. O meu livro anterior, Uma Pedra Parecida, junta poemas quase todos eles escritos no Parque Municipal de Campismo de Peniche, suponho que para começar a dar nome às coisas, às magias de um tempo de miúdo que se ia apagando.

Desde que chegou que lhe quero fazer esta pergunta. Não pude deixar de reparar que depila as pernas. Porque é que os atletas depilam as pernas? Não nos quer convencer de que pedala mais rápido por causa disso, pois não?

 Não, é mesmo pelo estilo. Já viu o bronze? É um creme bom que a malta utiliza para melhorar a exsudação das pernas. Mas agora fora de brincadeiras, a depilação permite uma melhora transpiração dos tecidos, não duvide, e portanto um comportamento muscular mais fresco, movimentos mais definidos. Mas não deixa de ser engraçado que numa ou noutra situação me distingam num grupo de poetas como o das pernas depiladas.

mas agora fora de brincadeiras, a depilação permite uma melhora transpiração dos tecidos, não duvide, e portanto um comportamento muscular mais fresco, movimentos mais definidos. Mas não deixa de ser engraçado que numa ou noutra situação me distingam num grupo de poetas como o das pernas depiladas.

 

O facto de depilar as pernas influencia a sua poesia?

 Sim, sem dúvida. Da mesma forma que lavar a louça depois das refeições. Tenho muitas ideias pequeninas enquanto cumpro estas tarefas. Quando faço a barba, por exemplo, ou quando engomo a roupa pela manhã.

 

Quais os escritores que mais o influenciam?

 À cabeça, Roberto Bolaño. Li tudo, uma e outra vez, estive três anos a ler a obra de uma ponta a outra, a procurar textos dispersos, publicações antigas. Agora em Fevereiro inaugura em Madrid o “Archivo Bolaño”, uma exposição que esteve no ano passado em Barcelona. Bolaño é uma verdadeira escola, mas a gente lê e não se apercebe que está na sala de aula. Os ritmos de narração, os tons, a intensidade do texto, é tudo brutal, contundente, rigoroso. Além de Bolaño, e por motivos muito particulares em cada caso, uma equipa grande e poliédrica: Nuno Bragança, Ruy Belo, António Ramos Rosa, João Cabral de Melo Neto, Jaime Gil de Biedma, Leopoldo María Panero, Javier Cercas, J.D. Salinger, Paul Auster, Haruki Murakami.

 

Vivendo há cerca de uma década em Salamanca, contaria autores contemporâneos espanhóis entre as suas influências? Miguel Delibes também tinha uma coisa com bicicletas.

 Sim, Miguel Delibes era um apaixonado pela bicicleta. Curiosamente, e talvez esteja a par, trabalho com uma editora de ciclismo, La Biciteca, dirigida pelo meu amigo Manu Martín, e o primeiro título que publicámos foi justamente um livro de Delibes, Mi Querida Bicicleta, um pequeno tesouro, deveria ler. Cheguei a Salamanca com 21 anos, de modo que muitas das leituras mais sérias que tenho feito nestes últimos tempos são em língua castelhana, não necessariamente autores espanhóis. Temos uma colecção admirável de poetas novos: Ben Clark, Luna Miguel, Fernando de las Heras, Andrés Catalán, Elena Medel, Carmen Camacho, entre outros, todos muito jovens. E quanto a narradores contemporâneos a lista é poderosíssima: Enrique Vila-Matas, Alberto Méndez, Javier Cercas, Javier Tomeo, Ana María Matute, Rafael Chirbes, muitos.

 

Mantém um programa de rádio na Rádio Universidad de Salamanca “Historias de la Musica Portuguesa”. A música é importante para o seu trabalho de poeta? Que músicos portugueses destacaria? Não podia escrever poemas com um estilo mais directo, ao género de António Variações?

Sim, julgo que a música é fala muito vizinha dos meus poemas. Sabia que um escritor e crítico português de que lhe falei há pouco, Henrique Manuel Bento Fialho, escreveu em tempos numa nota sobre uma plaquette minha, Plato chico, que me via como uma espécie de DJ frustrado? Algo assim, não recordo com precisão, mas parece-me em todo o caso uma observação pertinente. O ritmo, o convite para a dança, o movimento, o compromisso entre paisagem acústica e corpo, recordo que sincronizava tudo isto, e só posso estar de acordo. E sim, gosto de meter música, de “pinchar”, como aqui dizemos. Falando em António Variações, é dele uma das minhas canções favoritas, a “Sempre Ausente”.   

 

Contaria outras formas de arte que não a literatura entre as suas influências?

 Com certeza, julgo que o poema trabalha contra tudo aquilo que o ensinou a ser linguagem, ou a ser em linguagem. Veja bem, contra e contra, encostado e em estado de oposição, temos estas coisas boas na nossa língua. Filmes ou certa sequência fílmica, fotografias, determinado retrato, uma canção, um achado sonoro, um elemento gráfico, qualquer coisa que mexeu de tal forma nas minhas palavras que depois permitiu o seu reencontro em forma de poema. Mas não penso só em discursos artísticos, creio mesmo que qualquer evento que nos é dado experimentar se pode converter num elemento gerador de inquietação, de estranhamento, de fecundação. O deporto, por exemplo. Agora só ando de bicicleta, mas sabia que em tempos joguei andebol e cheguei a treinar a equipa cá da terra? Devo umas quantas frases ou versos a muitos daqueles treinos na pista, enquanto imaginava com os meus colegas movimentos e fantasias dentro do 40x20, o perímetro em que as coisas do andebol devem acontecer, do mesmo modo que as dos poemas acontecem dentro das palavras que o compõem. Ou quando escrevo um poema de catorze versos e o penso ao lado de um jogo a ser disputado em duas partes de trinta minutos.    

Com certeza, julgo que o poema trabalha contra tudo aquilo que o ensinou a ser linguagem, ou a ser em linguagem. Veja bem, contra e contra, encostado e em estado de oposição, temos estas coisas boas na nossa língua. Filmes ou certa sequência fílmica, fotografias, determinado retrato, uma canção, um achado sonoro, um elemento gráfico, qualquer coisa que mexeu de tal forma nas minhas palavras que depois permitiu o seu reencontro em forma de poema.

 

Neste livro tem um poema intitulado “O Benfica”. Parece-lhe bem mencionar esse clube num poema? Não podia ter optado por uma influência explícita de José Miguel Silva (Bayern de Munique 1 X Porto 2 – Artur Jorge 1987)?

  Podia mesmo, até porque em Abril do ano passado escrevi um poema em Lisboa que levava um “33” no título, mas talvez fique para outro livro. Gostava de ler?


Nota: O último livro de Hugo Milhanas Machado, Onde fingimos dormir como nos campismos, está disponível aqui.

[1] Obrigada, Isabel!

Entrevista a Paulo Rodrigues Ferreira

Tendo lançado recentemente Sonhos de Lobo, Paulo Rodrigues Ferreira, co-editor da Enfermaria 6, é hoje um homem mais confiante. Poder-se-ia até dizer mais maduro. Encontrei-o numa tasca que tresandava a refogado a ler uma biografia de Napoleão Bonaparte. “Gostaria de ter sido este tipo. Até nascemos no mesmo dia”, confessou com um encolher de ombros que revelava resignação por já não ir a tempo de conquistar a Rússia. Acendi uma cigarrilha, ofereci uma ao autor, que logo recusou dizendo que não era capaz de fumar uma sem fumar duas. O entrevistado é daquelas pessoas que contam piadas sem esboçar um sorriso. Mostra-se sério sem que, no entanto, essa seriedade indicie qualquer tipo de arrogância. Assemelha-se a uma rocha. O mar bate e não se move. Há gente assim. Pergunto-me se terá esta seriedade em todos os aspectos da vida.

 Mal vi o seu livro, fiquei muito curiosa. Adoro gente nascida em Agosto. Leão é dos meus signos preferidos. Muito obrigada por ter arranjado tempo para responder a estas questões. Os seus textos têm muitas vezes um tom de crónica. São textos autobiográficos? Considera-se um escritor confessional?

 Vinha no autocarro a ler uma entrevista de George Steiner em que este cita uma frase de Dostoiévski. A frase era mais ou menos esta: somos livres por podermos dizer não à realidade. Os meus textos têm muito de autobiográfico mas ao mesmo tempo são a negação completa dessa autobiografia. Em The Facts, Philip Roth diz que toda a ficção começa nos factos mas não termina nos factos. Quem conhecer certos acontecimentos da minha infância ou adolescência, reconhecerá muito daquilo que se encontra em Sonhos de Lobo. Mas pensará: isto não é a verdade, as coisas não aconteceram daquela maneira. Os factos são incontornáveis, não podem ser apagados, mas a maneira como decido pegar neles pode transformá-los em algo completamente fantasioso. Sou livre por poder dizer não à realidade, ou melhor, sou livre por poder rescrever uma realidade que foi atroz, modificar uma realidade cruel ao ponto de tornar cómica uma situação que me pode ter trazido um grande sofrimento. Os textos de Sonhos de Lobo são contos da mesma maneira que textos de vinte palavras de Lydia Davis são contos, mas também poderiam ser crónicas ou cartas ou páginas de um diário, mesmo quando se escreve na terceira pessoa e se inventa uma personagem que trabalha na terra e mata os vizinhos. Um dos meus livros preferidos é Cartas a Lucílio, de Séneca. Sempre me pareceu que aquilo era mais do que um conjunto de cartas. Trata-se de uma obra filosófica, de um grande romance sobre nada, sem acontecimentos, sem personagens, só com ensinamentos sobre a vida. Se confessional for algo parecido com aquilo que Séneca fazia, então sou.

 Googlei o seu nome e descobri que este é o seu terceiro livro. Vê alguma relação entre este livro e os anteriores?

 Há uma clara relação entre os três livros: olho para eles e não me vejo a minha imagem. Acabamos os livros e eles desaparecem da nossa vida. Até o estilo com que foram escritos se esfuma. Um foi escrito aos dezoito, outro aos vinte e outro aos vinte e nove. Deve notar-se alguma evolução, tanto em termos de temáticas como de escrita. Quando escrevi os primeiros dois livros, era obcecado pela ideia de suicídio. Tinha até um certo prazer em imaginar situações em que pessoas se matavam. Agora, mesmo continuando com essa atracção pelo suicídio, não tenho tanta necessidade de estar sempre a escrever sobre o assunto. Envergonha-me pensar que publiquei livros numa altura em que nem sabia escrever. Ao mesmo tempo, há algo de fantástico nisto: tentando distanciar-me dos três livros, vejo o esforço de alguém que quer escrever cada vez melhor, o esforço de alguém que é completamente viciado na leitura, que não consegue estar sem ler, que só consegue ler. O caminho de quem lê muito é o da escrita. E a certa altura comecei a escrever. Só não me orgulho de não ter começado a escrever obras-primas com dezoito anos.

 Do que li do livro, dois temas recorrentes parecem ser o ginásio e a literatura. Estas actividades estão relacionadas para si? Lê quando vai ao ginásio? Pensa no acto de escrever como forma de halterofilismo da mente?

 A minha experiência de ginásio é muito curta. Estive uns meses num de bairro chamado “Fábrica do Físico” e assisti a situações hilariantes, como ao desabafo de um pai matulão que já não sabia o que mais fazer para que o filhote melhorasse na escola. Dizia, quase a chorar, que até o tinha espancado e nada, só negativas. Mas lia quando ia ao ginásio, especialmente na passadeira. Agora leio a passear os cães e a exercitar-me no jardim. Ler talvez seja uma forma de halterofilismo da mente. Quanto mais lemos, mais nos habilitamos a ler livros cada vez mais difíceis. Não se começa logo com Wittgenstein. É preciso começar com pesos mais fracos. Pode ser que aconteça o mesmo na escrita, mas parece-me que os processos da escrita são menos conscientes. Não consigo racionalizar. Sei que escrevo cada vez melhor mas não sei se isso se deve a escrever há cada vez mais tempo. O José Rodrigues dos Santos escreve mil páginas por ano e não escreve cada vez melhor. É difícil. O Namora também escrevia muito. E a trampa que aquilo é.

 Num dos textos do livro, duas personagens fogem para os Açores. Porquê os Açores? Não acha que há melhores sítios para onde fugir?

A questão é: haverá sítio algum para onde fugir? A nossa cabeça vai connosco para todo o lado. Os nossos problemas são os nossos problemas, não são os problemas da terra em que vivemos. Os Açores é uma terra pobre o suficiente para personagens que desejam viver longe do mundo civilizado. Fugir é uma palavra central. Talvez una quase todos os textos do livro. O mundo é tão cruel, dói tanto existir em todo o lado, que talvez a solução seja existir num sítio onde não exista nada. As pessoas não fogem para a Jamaica ou para a Tailândia, não vão participar em orgias para o resto da vida: vão fugir para o nada, são campónias e regressam ao campo. É como se não desse para escapar da depressão. Imaginar a vida como um círculo. Fugir, fugir, até regressarmos ao ponto de origem, ao ponto onde se encontram todos os fantasmas.

 Publicou o livro numa editora chamada Enfermaria 6, da qual é também um dos editores. Não acha um nome um bocado triste para uma editora? Não preferia publicar o livro numa editora com um nome mais alegre, como Lua de Papel ou Chiado Editores?

 É preciso respeito pelo nome Enfermaria 6. É só o título de um dos melhores contos de Tchekhov. Quanto à Lua de Papel ou à Chiado Editores, respeito muito as pessoas que lá trabalham mas acho horrível que se pague para editar um livro. Guardo mais carinho por quem paga para ter uma mulher ou por aquele pai que paga para ter a sua cria inscrita num clube de futebol. E Lua de Papel? Como contar isso à família? Já não basta passar a vida a dizer mal da família? Contar à família que se publicou numa editora que lembra origami.

 Um escritor contemporâneo acusou-o de cultivar o humor negro na sua escrita. Como responderia hoje a essa afirmação?

 Primeiro, é preciso esclarecer uma coisa: eu só acho essa pessoa contemporânea. Para ser escritor não basta escrever nem beber vinho nem ser muito famoso no facebook ou ser considerado um guru para meia-dúzia de arrivistas que passaram ao lado de livros fundamentais. A opinião dessa pessoa vale nada. Quanto ao humor negro, isso incomoda-me por considerar que aquilo que faço não é humor nem negro. Dedico-me à escrita. É isto. Vejamos um exemplo: a obra de Samuel Beckett está carregada de humor e de cenas sórdidas. Mas será natural resumirmos o que este génio escreveu ao rótulo “humor negro”? Não. Não faço stand-up. Escrevo. E quando se lê a escrita de alguém é preciso ler com atenção. Não basta pegar em lugares-comuns.

 Para além de escritor é também historiador. Pensa escrever um romance histórico?

 Esse é o maior insulto que já me dirigiram. Eu não sou de todo historiador. Ando há 12 anos a fugir da história. Quando acabar o doutoramento, livrar-me-ei desse fardo. Sou um Papillon. Prendi-me a algo que só me faz sofrer.

 Manteve, ao longo dos anos, vários blogs. Qual o papel do blog no seu processo criativo? Acha que faz sentido escrever literatura em blogs?

  Faz sentido escrever. Os blogs funcionam como cadernos. Nem todos os textos têm a mesma qualidade. Muitos são repetitivos. Não tenho blogs para ser lido. Apago-os, às vezes, passado muito pouco tempo. Sou muito desorganizado. Não tenho paciência para guardar os muitos cadernos que compro. A internet é boa para arquivar material que talvez desejemos posteriormente publicar em papel. Nesse sentido, diria que o blog da Enfermaria segue um pouco essa ideia. É para mim uma espécie de arquivo ao qual, ocasionalmente, se vai buscar bom material para publicar. Os blogs não devem ser levados muito a sério mas são muito úteis.

 Onde costuma escrever? Escreve em cadernos ou no computador? Com que tipo de caneta? De pé, sentado, deitado, a fazer o pino?

 Escrevo em qualquer lado, desde que exista barulho. Se estiver em casa, preciso do ruído da televisão. Gosto de cafés, de restaurantes, de autocarros ou do metro. Gosto de ter muitas pessoas estranhas à minha volta. Sofro de monofobia. Não posso sentir-me sozinho comigo mesmo. Escrevo em cadernos mas depois passo para o computador. Canetas, só pretas e que deslizem bem pelo papel. Canetas rollerbal 0,7 ou 0,8. Gosto de escrever deitado. Gosto de estar sempre deitado. Sou como Oblomov. O ideal seria escrever deitado numa cama plantada no meio de um centro comercial.

 Um reputado crítico português em tempos disse dos seus textos que eram como bombinhas que explodiam nas mãos. Revê-se na descrição? O que acha que o crítico queria dizer com isso?

 Vejo que fez o trabalho de casa.  O  crítico estava a ser literal. Cada texto rebentava-lhe nas mãos e trazia-lhe dores. Provavelmente, não acabou de ler o livro e passou um par de dias no hospital com as mãos enroladas em gaze e a levar colírio nos olhos.

 Escreve muitas vezes sobre cinema. Esta é uma arte que influencia a sua escrita?

 Influencia a minha vida. Não sei se influencia a escrita. Não sei o que influencia a escrita. Nisto sou como aqueles escritores que acham que a mão tem autonomia, que escreve sozinha, independentemente daquilo que a cabeça pensa.

Quais as suas referências cinematográficas?

David Lynch, Clint Eastwood, Kurosawa, Wes Anderson, Paul Thomas Anderson, Kubrick, Scorsese, Soderbergh, Wong Kar-Wai, Steve McQueen. 

 Gostava de ir comigo ao cinema? Podíamos ir ver as Tartarugas Ninja. Por falar nisso, viu os desenhos animados das Tartaruga Ninja?

 Terei de recusar o convite. Sou um fetichista. Reparei que ostenta uma tatuagem no ombro. Custar-me-ia deveras sair com alguém cujo ombro se encontra coberto por um golfinho azul. Para além disso, faltam-lhe os sapatos de salto alto e a saia curta. Nisto sou radical, desculpe. Mas deixe-me que lhe diga que fico feliz por ter feito referência às Tartarugas Ninja. Poucos sabem mas ao longo da minha meninice imaginei que era o Donatello.

 O autor ajeitou o blazer, despediu-se aplicando-me um suave beijo na testa e garantiu-me que, não fosse o maldito golfinho que tatuei com dezassete anos, me levaria ao cinema. Fiquei sozinha a fumar uma cigarrilha e a ler um dos contos de Sonhos de Lobo. 

Entrevista a um estudante de doutoramento

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics

Jorge Chan, The Origin of the Thesis, PhD Comics


Hoje resolvemos olhar de perto uma realidade que afecta muitos dos nossos colaboradores. A sua condição de estudantes de doutoramento/ jovens investigadores. Fomos entrevistar um destes jovens. O estudante combinou encontrar-se connosco num café na esquina da Biblioteca Nacional. Informou-nos que não teria muito tempo para conversar connosco, mas que, ainda assim, tinha aceite porque entendia o interesse documental da entrevista. De ténis all stars, óculos de massa, o estudante exibe o tique nervoso de tamborilar com os dedos na mesa.

É comum os estudantes de doutoramento em Portugal gerirem o seu próprio horário de trabalho. Trabalha muitas horas por dia?

É só quando me começo a sentir como um autómato que sinto que tenho de parar. É raro, mas quando me dá atinge-me como o equivalente metafísico de uma dor de dentes.

Faz parte de um grupo de investigação coeso? Há muito diálogo entre os jovens investigadores?

Diálogo, não muito. As equipas de investigadores são pequenas e agora com os cortes nos orçamentos vai ser cada vez mais cada um por si e deus a olhar por todos. Nas humanidades então cada especialista tende a ser um exemplar único. Também temos uma tradição de não haver muita competição entre especialistas e Portugal é um país de brandos costumes em que se gosta de honrar a tradição. Mas costuma acontecer que por ciclos me sento sempre perto da mesma pessoa aqui na biblioteca. Acontece que estas pessoas por vezes não estão aqui por períodos extensos. Dois, três meses e desaparecem. Eu próprio me esqueço frequentemente do elemento humano. E há alturas em que entretenho conversas de corredor abjectas, com indivíduos que me começam por perguntar qual é o meu orientador, a faculdade e o tema da minha pesquisa, mas cuja maior curiosidade mesmo é saber a quantidade de palavras que sou capaz de debitar por dia no manuscrito da minha tese, na intricada relação tempo/débito de palavras em manuscrito word. Este é o tipo de diálogo intelectual que mais comummente tenho entretido. E esta é sempre a questão que mais ansiedade gera entre os estudantes de doutoramento. Na verdade, não raro mal orientados ou completamente desorientados, esta é, à medida que o financiamento se esgota, a grande questão. A menina está a apontar? Questão com Q grande para se entenda que é conceito. Quer que eu explicite o que entendo por Questão?

Não, deixe estar, não é necessário. Algum motivo em particular para ser essa a questão determinante?

Bom, se escrevemos menos do que o nosso interlocutor, ele poderá adoptar uma atitude paternalista, dar-nos conselhos. Dar-se a intimidades. Pousar-nos a mão no ombro. Se ele próprio for de escrever pouco, as suas outras vulnerabilidades começam a surgir. Dificuldades em fazer o índice. Ater-se ao plano. Publicar artigos. Mas, no fundo, este indivíduo sente-se bem com ele próprio se dermos a entender que estamos pior do que ele. No entanto, se escrevemos mais, mas muito mais, ele poderá sentir-se emasculado. Os sintomas variam. É sempre preciso ter cuidado com o tipo de resposta que se dá, esta é a pergunta crucial, que muitas vezes pode definir toda a estrutura das relações sociais de um estudante de doutoramento. Ao responder é preciso medir o grau de ansiedade ou relaxamento do nosso interlocutor. Às vezes não é tanto o caso de não melindrar a pessoa, quanto o de não a deixar à beira de um ataque de nervos. Há estudantes de doutoramento muito nervosos. A menina sabe, escrever tese em Portugal não é emprego, é maneira de tentar enganar o desemprego, mas a desocupação às vezes sobe à cabeça do jovem investigador lusitano.

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina.

E escreve muito num dia de trabalho normal?

A minha eficácia é da ordem da da personagem de Uma Thurman em Kill Bill. Em média oitocentas palavras em meia hora. Sou capaz de escrever dezasseis horas sem parar, às vezes escondo-me aí nos recantos dos guardas para conseguir ficar 24 horas na biblioteca. Vantagem, vantagem, vantagem. Liberdade? Criatividade? Isso é para meninos. Eu é como os ciclistas num sprint de montanha. Nem para ir à casa de banho paro. Este saquinho com o tubo intravenoso? Cafeína, menina. Directamente na veia. Para que não haja dúvidas do meu amor à produtividade. Em academia que se preze o estudante de doutoramento nunca tem tempo que chegue para fazer todo o trabalho que tem para fazer.  Neste momento tenho um manuscrito de quatro mil e quinhentas páginas. O meu objectivo é debitar mais mil nos próximos dois meses.

Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita ser possível?

A este ritmo acredito ser possível. Quando isto estiver acabado, vou precisar de assaltar um banco para pagar a impressão e de um guindaste para entregar na secretaria. A funcionária estrábica que costuma aceitar a submissão de teses lá na faculdade vai entortar ainda mais os olhos.

E acredita que haverá um júri disposto a ler uma tese com essa extensão?

O júri? Não conseguirá articular uma palavra por causa das cefaleias, causadas por excessiva exposição a tinta impressa em papel. Os únicos arguentes possíveis desta tese serão os que não a leram (em média estima-se que haja sempre uns três ou quatro desses em cada júri de doutoramento).  

É comum os estudantes de doutoramento gerirem bem esse tipo de pressão?

Nem sempre, menina, nem sempre. Nunca me hei-de esquecer deste tipo. Víamo-nos todos os dias, e até chegámos a trocar umas palavras, nos cinco minutos em que os estudantes de doutoramento se permitem ter vida própria (houve uma altura em que o meu intervalo coincidia com o dele). Um dia abriu dois livros à minha frente, abriu um terceiro, fechou-o com estrondo e raiva. Ao contrário da rotina o tipo nem tinha tirado as coisas da mochila. Com o rosto congestionado, começou a soluçar incontrolavelmente, pegou no casaco e desapareceu para nunca mais. Um colega teria refutado a sua hipótese, ou ele tinha descoberto que ela estava errada, ou que a sua tese já teria sido escrita. Eu cá não perco tempo a ler. Até no teclado do multibanco às vezes desato a debitar fragmentos de tese. No piano da minha tia. No ombro da deleitosa esposa a tentar fazer amor. Na toalha de mesa à espera do jantar.

Mas com esse grão de empenho não teme uma crise de nervos? Um esgotamento?

Não. É como eu sempre digo, menina, o truque para ser bem sucedido a escrever uma tese de doutoramento é não parar para pensar. Nunca.