Entrevista a José Pedro Moreira

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Obrigado, José, por teres aceitado este desafio. Em vez de me armar em jornalista cultural, vou, antes, optar por uma coisa menos formal, uma espécie de conversa num café. E, claro, fica já toda a gente a saber que esta entrevista é para pagar o café e a nata que o José teve a simpatia de me pagar da última vez que cá esteve, no Porto. (Isto é tudo uma cambada de promiscuidade! dirá alguém que não sabe se sou gordo ou se sou magro). Como é normal, nestas coisas, “entrevistas literárias”, vamos começar com algo muito profundo: o início. Aquela célebre pergunta: “Quando é que começou a escrever poesia?”, quase tão célebre, ou mais célebre, como aquela “Para que serve a poesia?”. Mas antes de chegar aí (vou rebobinar a cassete) pagaste-me um café com nata ou foi só um café? Duas coisas dão 30 perguntas, uma dá 15.

 Eu é que te agradeço, Vítor.

 Sinceramente não me recordo se foi um café com nata. O que só testemunha em teu favor: apesar da minha avareza, a conversa foi tão interessante que me esqueci de anotar o dano que causaste às minhas finanças.

 Quando comecei a escrever poesia? Não é uma pergunta fácil. Desde a adolescência que escrevo caderninhos que misturam versos, notas diarísticas, observações… Mas sempre foram coisas para consumo próprio e a poesia pressupõe a partilha. Há coisa de dez anos escrevi um livro, que depois decidi não publicar. E a vontade de escrever um livro de poesia só regressou em 2017, quando comecei a trabalhar no Gatos no Quintal. Mas pelo meio fui traduzindo alguma poesia, colaborando com outros na edição de poesia, e escrevendo os meus caderninhos.

 Brincadeira à parte, falemos da tua infância. Pelo que transparece em Gatos no Quintal, publicado pela Enfermaria 6, pareces ter tido uma infância muito feliz. Tendo tu a mesma idade que eu, foi engraçado encontrar no teu livro referências e situações que coincidem com a minha infância. Podes falar um pouco dela?

Foi uma infância normal. Cresci no Feijó, na Margem Sul, próximo de Almada. Vivia numa vivenda azul: os meus avós maternos ocupavam o apartamento do andar de cima, e eu vivia com os meus pais no apartamento do rés-do-chão. Havia um pequeno quintal nas traseiras, onde a minha avó plantava couves e criava galinhas. Era um miúdo tímido e introvertido. Gostava de brincar e jogar à bola com os outros miúdos da rua, jogar computador, ler banda desenhada, desenhar. Como filho único passava bastante tempo sozinho, mas cedo aprendi a ocupar as horas de solidão.

 Em tempos, numa entrevista, creio que deste ano, um poeta “consagrado” dizia que as novas gerações de poetas não têm humor e que aos 20 anos já são todos muito sérios. Não deixou de ter alguma razão, mas quando li a entrevista, constatei de imediato que o poeta “consagrado” não tinha lido o teu primeiro livro: Gatos no Quintal (2018). Não se pode conhecer tudo, sobretudo uns tipos novos que escrevem coisas”, isso toda a gente já sabe. E começo por aqui para te dizer que tu és o poeta, da minha geração, com mais sentido de humor, um humor muito bem feito, inteligente, um sarcasmo refinado. Sei que é difícil explicar isso, mas de onde vem esse teu humor? Sabes explicar? Será que grande parte do teu humor vem diretamente de Catulo, que traduziste com André Simões para a Cotovia?

 Muito obrigado pelo elogio. Os leitores gostam sempre de quando o entrevistado e o entrevistador começam a dar palmadinhas nas costas um do outro. Por outro lado, na Enfermaria não corremos o risco de sermos importunados por leitores. E é normal ser-se mais sisudo aos vinte anos. Queremos muito ser levados a sério. Depois, com alguma sorte, isso passa.

 Como sabes, sou um tipo introvertido, sinto-me sempre desconfortável em ocasiões sociais, ou quando tenho de interagir com grupos de mais de uma pessoa. Acho que o humor começou como um mecanismo de defesa, uma maneira de disfarçar a timidez enquanto mantenho uma distância segura. À medida que envelheço e vou ficando menos idiota tento que seja algo mais generoso, uma estratégia para coabitar no mundo: é mais fácil criar laços com outros quando não temos de disfarçar as nossas limitações e somos capazes de nos rirmos de nós próprios. E uma gargalhada é também uma forma de partilha ou até de generosidade – por exemplo, quando alguém se ri de uma piada nossa para nos deixar mais confortáveis, ainda que não tenha piada nenhuma. Mas desconfio que estou a divagar um pouco.

 O humor na poesia portuguesa recente não é uma coisa só minha. De repente vem-me à cabeça os livros do Miguel Manso e da Golgona Anghel.

 A tradução de Catulo começou como um escape. Eu tinha passado os dois anos anteriores a estudar e traduzir tragédia grega e estava a trabalhar num projecto que não me trazia grande alegria, e o André [Simões] estava a meio de um doutoramento penoso. Sentíamos ambos a necessidade de fazer algo diferente, e há anos que falávamos de traduzir Catulo. Divertimo-nos bastante a fazê-lo. A Tatiana tirou-nos uma fotografia num dos bares da Faculdade de Letras em que estamos ambos com um ar muito sério a olhar para o meu computador. Tínhamos estado a debater a correcta tradução de mentula. “Piça, pila?” “Não”, diz o André, “é mais obsceno do que isso.” “Caralho, então.” “Sim, caralho é a solução filologicamente mais correcta.” O que terão pensado as pessoas à nossa volta? E nos poemas finais do livro, Catulo ataca um apoiante de César, Mamurra, trocando-lhe o nome para Mentula (não é o trocadilho mais feliz ou subtil). Mas Caralho como nome próprio já não tem tanta piada. Sob a influência do Sr. Cogito de Zbigniew Herbert (um poeta que venero), lembrei-me: “E se ficasse o Sr. Caralho?” “Ah, isso é mais engraçado!”

 O primeiro poema que ouvi (pois que o leste na Flâneur) de Gatos no Quintal foi o “Depois de Kaprow”, e, se não me falha a memória, foi o riso total na sala. É, para mim, a par de “Aquiles e a Tartaruga” e “Aula de Filosofia”, o poema mais forte do livro. Nele falas de coisas muito sérias, do happening do Kaprow, de Damien Hirst, da Oresteia, do Rambo, e, no entanto, com um humor muito bem feito, e o mais engraçado, no fim o poema torna-se auto-irónico: “isto é poesia?”. Podes falar um pouco desse teu poema? És um apreciador de selfie stick?

 Alguns dos meus poemas agregam matéria diversa que anda solta na minha cabeça – ideias, frases, factos – em torno de um núcleo. Foi isso que aconteceu com o “Depois de Kaprow”. Ideias sobre definição de arte, limites éticos da arte, paródia a uma conversa entre amigos sobre uma viagem à Grécia, noções sobre como nos relacionamos com a arte, e como a invasão dos social media na nossa intimidade condiciona a relação com a arte, foram encontrado o seu lugar em torno de um núcleo central: a narrativa de uma reacção estética de um amigo a uma instalação. Posso contar a história aqui: em 2010, creio, fui a Madrid com a Tatiana e dois amigos e passámos quatro ou cinco dias a ver museus. No Museu Reina Sofía, a necessitar de descanso do peso de grande arte, decidimos fazer uma pausa para fumar. Descemos até ao pátio central de onde um dos meus amigos (o Manel), olhando para o interior, viu uma pilha de pneus no chão, e comentou “é uma vergonha um museu destes ter as arrecadações à mostra”. “Não me parece que sejam as arrecadações, Manel”, respondeu o André (o meu outro amigo), “eu acho que é uma instalação”. E assim era, o que deixou o Manel mais exaltado do que o que qualquer um de nós ousara esperar. Com o ímpeto desesperado de um homem que acaba de sofrer um desgosto amoroso, o Manel, normalmente uma figura serena, começa a interpelar quem caminhava ali ao pé, apontando para a instalação e perguntando “Está en crer que esto es arte? Neumáticos! Son neumáticos!”, a tal ponto exaltado em que uma segurança se aproxima, pedindo-lhe que se acalmasse. Até que olhou para nós, com lágrimas na cara de tanto rir, e também a senhora se começou a rir.

 Eu não tenho nada contra selfie sticks. A não ser achar que quem fosse apanhado com um devia levar com uma multa pesada, depois de ser espancado com ele. A cultura da selfie faz com que deixemos de estar disponíveis para a arte, nós, a nossa gloriosa vidinha, passa a estar no centro de tudo. E lá estamos nós: a nossa cara sorridente a comer um croquete, nós a beijarmos a mulher amada enquanto olhamos para a câmara, nós ao lado da Mona Lisa com um sorriso aparvalhado. A arte passa a ser um adereço sem outro valor que não aquele que empresta à nossa historiazinha, mesquinha e enfadonha, que insistimos em contar. E o mundo fica mais pobre e a nossa existência perde significado. (Sinto-me a envelhecer enquanto escrevo estas linhas.)

 Ainda sobre “Gatos de Quintal”, surpreendeu-me a tua “Aula de Filosofia”. Para mim, que nasci nos anos 80, ler aquilo foi não só divertido, como me relembrou de uma realidade de que já me tinha esquecido: a tortura que foi, para mim e para os meus colegas, as primeiras leituras de Kant; ouvir a palavra “imperativo” vezes e vezes seguidas atormenta qualquer miúdo. Esse poema lembrou-me um poema muito bonito de João Miguel Fernandes Jorge – “Durante um exercício de filosofia”, mas o teu, ao contrário de João Miguel, dá a versão do aluno numa aula de filosofia nos anos 90. E falo disso porque sinto que recuperas memórias que são de muitos de nós, e reatualizas as pequenas histórias de um mundo sem a parafernália tecnológica em que estamos enfiados. Ao dizer isso, pareço que estou a falar de nostalgia de um tempo que não existe, em parte sim, mas isso não se encontra nos teus poemas, porque neles há sempre um humor, mas não deixa de ser um humor agridoce. Faz sentido o que estou a dizer?

 Sim, acho que sim. Eu prefiro não condicionar a leitura do poema. Mas posso partilhar o substracto autobiográfico que o informa: tive a sorte de ter uma excelente professora de Filosofia no 12º ano, a Fernanda Melo, de quem hoje ainda sou amigo. No primeiro trimestre lemos o Górgias de Platão, no segundo a Fundamentação da Metafísica de Costumes, de Kant, e no terceiro O Nascimento da Tragédia, de Nietzsche. Tudo grandes livros, que influenciaram a minha decisão de estudar Clássicas. Mas quando somos adolescentes, temos outras preocupações que imperativos categóricos e preposições analíticas. Foi bastante difícil de entrar em Kant, mas quando consegui furar através do estilo professoral e enfadonho, descobri um mundo conceptual idealista de uma beleza tão frágil que me comoveu. Há nesse poema também algumas referências a uma peça de Thomas Bernhard, Kant, em que o filósofo faz um cruzeiro até Nova Iorque na companhia da mulher para tratar das cataratas. E tem um papagaio de estimação que papagueia Imperativo! Imperativo!. Assisti a uma representação da peça há uns anos, durante o Festival de Teatro de Almada. Creio que na companhia da Fernanda.

 Isso está a ficar sério demais! Quando bebemos “uma cerveja na Grécia” (Gatos no Quintal, (2018))? Há uma perversão ou atualização da “temporada” do Rimbaud? Ou não andavas a pensar nisso? Nessa secção do livro falas de uma Grécia contemporânea lançada um pouco ao deus-dará e ao inferno. Sei que já foste algumas vezes à Grécia; o que mais gostas na Grécia? Não tens um chá para me recomendar em vez de uma cerveja? Eu sempre detestei cerveja. O que me recomendas?

 Sim, a “cerveja” é uma referência à versão de Cesariny de Rimbaud, um livro muito importante para mim, quando comecei a descobrir a poesia. Sempre me irritou a imagem romântica de uma Grécia do espírito, idealizada, a-histórica, depurada de tensões e violência, onde os próprios actos de violência são domesticados enquanto abstracções. Uma espécie de resort cultural onde se vai a banhos para relaxar o espírito das atribulações da vida contemporânea. Neste não-lugar a bebida por excelência é o vinho (misturado). Mandar vir uma cerveja e acender um cigarro na zona de não fumadores (há uma alusão a tabaco na epígrafe, tirada do meu livro introdutório preferido à cultura grega antiga, de HDF Kitto) deste resort do espírito funcionam como uma declaração de intenções.

 Eu não sou muito de chás. Nem de cerveja, para ser sincero. Prefiro vinho ou cidra.

 Do que mais gosto na Grécia? Gosto do sol, gosto do mar, gosto da história, gosto da comida, gosto das pessoas. É tudo isso e algo mais. Não consigo explicar porque me sinto tão bem naquele país. Da primeira vez que fui, apanhei o ferry em Atenas para Paros. E não te consigo descrever o que senti quando o barco passou o cabo Súnio, ou quando mais tarde, vimos Serifo à nossa esquerda enquanto o sol se punha. Foi a mesma plenitude que senti quando subimos a encosta que leva às ruínas do templo de Apolo em Naxos, e olhei para trás e vi o porto e a linha da costa, ou quando descemos o monte Cinto em Delos. Desculpa, sei o quão irritante são estas exaltações. Daqui a pouco estou a mostrar álbuns de fotografias.

 A Barbara Stronger (1983-2019), antes de se suicidar, gostava muito da primeira parte de Gatos no Quintal, mas ficou sempre sem saber onde ficava aquele “Rua da igreja”. Onde fica essa rua? E que é feito dessas personagens todas: o Benjamim, a Maria, o João, o Filipe, o Ricardo, o Francisco… Esses nomes parecem ser toda uma geração enganada, não? O que mais gosto é do Francisco, aquilo sou eu e minha mãe; mas também te vislumbro naquela pele. Por falar em gatos, o meu Kafka está mais gordo e pergunta por aquilo que já ia perguntar: para quando uma reedição de Gatos no Quintal?

 Os meus pêsames. Nunca cheguei a conhecer a Barbara, mas sei que vocês eram próximos. E agrada-me saber que ela gostava da “Rua da igreja”. A resposta correcta à tua pergunta é que a “Rua da igreja” não existe, existe apenas no espaço poético, seja lá o que isso for. A resposta verdadeira é que fica no Feijó. A igreja entretanto foi destruída, e outra construída no seu lugar. Algumas das pessoas morreram, outras vão indo – o Ricardo casou-se este ano, o Sr. João M. está velhote mas lá anda –, outras sou eu. O teu Kafka é um belo gato, bem como a Ariel. Manda-lhes um abraço meu. Apesar do interesse dele, não me parece que seja partilhado por gente suficiente que justifique uma reedição do livro.

 Falemos agora da tua última “cassete” – Porque canta um pequeno coração. Nessa cassete, o extra final é o coroar do livro, a cereja em cima do bolo. Há nele um lado teatral, retirado (quase) das comédias romanas (sobretudo romanas, não sei porque penso nisso). Mas antes dele queria que falasses um pouco sobre aquele que é o mais belo poema do livro, a meu ver (claro) – O santuário de Atena Kokkinê em Delos”, se for possível. Aquele “pequeno ouriço-cacheiro” fez-me pensar em Derrida e na própria natureza da poesia, de que ela deve ser um ouriço; mas o que mais fiquei curioso foi em ver aquela fotografia. Tens de partilhar a foto.

 Desculpa, este é um poema demasiado pessoal, preferia não falar sobre ele. 

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 Além desses dois poemas já referidos, tens em “Porque canta um pequeno coração” dois extraordinários poemas: “Notas sobre o Prosciutto di Parma” e “Toda a verdade!!!”. Sobre uma aparente facilidade, brincadeira, falas de assuntos muito sérios, coisas que a um leitor desatento passam despercebidas. Não quero que expliques os poemas, mas o que te levou a escrevê-los? No primeiro, muito sinteticamente, temos um poema que fala sobre a arte de escrever poesia e no outro sobre a linha tênue entre verdade e mentira, e também sobre o alto risco de manipulação das massas. Digo isso para constatar que, por detrás do teu humor, há questões sociais muito atuais, falam de mentira, de anestesia, de sofrimento… Que podes dizer sobre isso?

 Muito obrigado pelas tuas palavras, Vítor (mais palmadinhas nas costas). Ambos os poemas são exemplos desta minha maneira de criar, por meio de associações e aglomeração de elementos diversos.

 “Notas sobre o Prosciutto di Parma” começou quando li um artigo no The Guardian sobre como carnes processadas causam cancro.[1] Há ampla ciência que o comprova, sabemos as causas, sabemos como as evitar, mas nada se faz por pressão dos grandes interesses económicos. É um risco que os mais abastados não correm: podem comprar presuntos produzidos segundo métodos artesanais, como o cobiçado prosciutto di Parma, que não usam nitratos nem nitritos durante o processo de cura. Isto fez-me pensar em desigualdade social, em como os governos nos falham, em questões de bem-estar animal, e vegetarianismo, e também em Horácio, na sua Ars Poetica[2], em como os enchidos poéticos são produzidos.

 Quando acabei o Gatos no Quintal pensava em escrever uma plaquete, com uns dez poemas, sobre coisas de arte popular de que gosto: filmes, novelas gráficas, videojogos, etc. A meio apercebi-me de que os poemas eram parte de algo mais vasto e incorporei-os no Porque canta... Um desses poemas que tencionava escrever era sobre Preacher, uma das minhas novelas gráficas preferidas, escrita por Garth Ennis e desenhada por Steve Dillon. Tinha algumas ideias:   seria uma longa roadtrip pelos Estados Unidos, haveria um encontro com deus, seria uma sátira política. Mas nunca conseguia apanhar o ângulo certo, e os pormenores permaneciam vagos, até ler um artigo na The New Yorker sobre terraplanistas,[3] gente que acredita piamente que a terra é plana e que há uma vasta conspiração para nos manter nas trevas da ignorância. Mas é claro que eles vêem o engano e sabem a verdade.

 Sendo tu um leitor de banda desenhada (eu tentei, José, mas não consegui!) e consumidor de cultura pop, como todos nós, que autores de banda desenhada leste, lês? E já agora, que séries televisivas andas a ver, para recomendar ao Daniel. Eu sei, eu sei… pouco tem a ver com o teu livro – “Porque canta um pequeno coração” –, é tudo para fugir ao meu papel de jornalista cultural. Sabes, sempre quis ser jornalista, jornalista e crítico num jornal conceituado, uma espécie de influencer (pago a peso de ouro) da poesia. Sabes, eu até calculo matematicamente quantos gosto coloco na página x e y, não vá pôr um gosto num poeta maldito e ver, assim, o púlpito da crítica fechar-se à minha poesia, e depois onde apareço? Ai, são preocupações dessas que me tiram o sono! Uma coisa mais importante, que agora me lembrei, gostas mais de salgados ou de fritos?

 Claro que gostas de banda desenhada, Vítor, tu é que ainda não sabes. É uma arte visual, algo a que és sensível, que exige ao escritor uma enorme economia verbal, como a poesia. Alguns dos meus autores preferidos e os livros deles de que mais gosto: Alan Moore (que ocupa o centro do cânone de banda desenhada; Watchmen, From Hell), Garth Ennis (Preacher, The Boys, Punisher MAX), Frank Miller (Sin City, Batman: The Dark Knight Returns, Batman: Year One), Art Spiegelman (Maus), Mike Mignola (Hellboy), Neil Gaiman (The Sandman), Jeff Lemire (Essex County, Sweet Tooth), Ed Brubacker (Criminal, Gotham Central, Kill or be Killed), Brian Michael Bendis (Ultimate Spider-Man, Alias: aka Jessica Jones), Warren Ellis (Transmetropolitan), Jonathan Hickman (East of West), Robert Kirkman (The Walking Dead), … Mas o acumular de nomes é contraprodutivo. A pergunta que me deverias ter feito era Que livros me recomendas para começar a ler banda desenhada? E eu responderia: experimenta Maus (Art Spiegelman), o primeiro volume de The Sandman (Neil Gaiman), e Watchmen (Alan Moore). E depois diz-me se gostas de banda desenhada ou não.

 séries que vi recentemente e que recomendo: Succession, BoJack Horseman, W1A (ok, já tem um par de anos mas é das comédias mais engraçadas que vi).

 Fritos ou salgados? Fritos e salgados! (Primeiro frito, depois salgado.)

 Outro dia vi que eras best-seller de poesia, como te sentes? Passaste de “menino censurado” (temos isso em comum) para um êxito estrondoso na Não Edições? Já pediste aumento? Sei, isso da poesia não dá dinheiro, nunca deu, ainda bem, por um lado. Outro dia lembrei-me de um poema do Jorge de Sena, diz algo como, a ideia é esta: os poetas andam a lamber a chagas uns dos outros. O que não deixa de ter piada. O que achas dessas comadres sempre às turras e piadas umas com as outras? Sempre a acharem-se melhores que os outros e sempre a descobrirem a pólvora (aquela que já foi descoberta há séculos). Mais vale ir jogar Playstation, ao Pro Evolution Soccer! Algum comentário mais?

 Nunca me senti censurado. E chamar a um livro de poesia best-seller é meio caminho andado para o matar. Mas fico contente que o livro tenha justificado uma segunda edição. Sei o trabalho que o João Concha, o editor, investiu nele, e estou-lhe imensamente grato.

Isso dos poetas andarem sempre às turras não é mais topos do que outra coisa? Não é essa a minha experiência. Dada a natureza não lucrativa da poesia em Portugal, a publicação de livros de poesia depende de laços de solidariedade e voluntarismo. Pequenos grupos, que investem tempo e algum dinheiro para que livros de poesia possam acontecer. Tome-se o exemplo do Porque canta um pequeno coração: o manuscrito beneficiou da leitura atenta de poetas amigos que admiro (a Tatiana, o Sebastião Belford Cerqueira, o João Bosco da Silva, tu, o Luís Amorim de Sousa), beneficiou do trabalho de edição do João Concha, dos desenhos do André Ruivo. Convidei a Elisabete Marques, outra poeta que admiro (ide comprar o Animais de sangue frio se ainda não o fizeram, boa gente!) para apresentar o livro e sei que é um pedido cruel, porque preparar uma apresentação leva tempo e a Elisabete é uma pessoa bastante ocupada, no entanto, trinta minutos depois de enviar o convite tinha uma resposta da Elisabete a dizer que claro que apresentava o livro. E fizemos uma leitura juntos no Porto, eu, tu, a Francisca Camelo, e a Mafalda Sofia Gomes, e estavam lá outros poetas amigos (desta vez o Pedro Braga Falcão não contou anedotas em Latim). E se o livro vendeu alguns exemplares foi porque vários amigos o ajudaram a promover, alguns deles poetas. Tu próprio tiveste uma trabalheira a preparar esta entrevista. Tudo isto para dizer que o que eu vejo é uma enorme generosidade e solidariedade das pessoas envolvidas na poesia. Se alguns desses grupos são por vezes mais territoriais, ou se as pessoas se desentendem de vez em quando, pois, isso acontece, mas parece-me algo marginal.

 Voltando ao teu último poema do livro – “Filémon e Báucis (a partir de Ovídio)” –, não só reescreves o mito como reforças aquilo que muita gente esquece, às vezes também eu, de que para amar uma pessoa basta muito pouco. É, a par do poema dedicado à Tatiana, o poema de amor mais bonito que li este ano. Agora, quando quiser reescrever aquele mito, vou ter sempre o teu a ecoar na minha cabeça. E digo isso porque vejo na tua poesia temas, preocupações que se aproximam das minhas. Podes falar da escrita deste teu poema?

 Bem, esse poema também é dedicado à Tatiana. Este é um dos meus mitos preferidos d’As Metamorfoses, e há anos que penso em escrever este poema, mas nunca saiu. Quando estava a organizar os poemas, percebi que o livro precisava desta coda, e que eu devia deixar de ser preguiçoso e escrevê-lo. A ideia inicial era fazer uma tradução livre mais próxima do texto de Ovídio, mas foi evoluindo para algo diferente. A referência principal foi Tales from Ovid, de Ted Hughes, claro.

 Quais os autores, poetas e outros, que leste e que achas que, de algum modo, te influenciou naquilo fazes? E quais são as tuas grandes referencias poéticas, aqueles nomes que nunca te cansas de reler?

 Há uma série de autores que venero e releio: Dostoievski, Thomas Bernhard, Beckett, Orwell, Tchékhov, Ésquilo, Tony Judt. Entre os poetas Zbigniew Herbert, António Franco Alexandre, Anne Carson, Celan, Bukowski... É difícil fixar uma lista.

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 Não te vou perguntar mais sobre poesia. Quem ainda não leu o livro que o leia, eu, Vítor, recomendo. Estás já algum tempo fora de Portugal. Há quantos anos? De que mais tens saudades, além da Alzira e do Augusto?

 Vivo em Inglaterra há... vai fazer oito anos em Março. Essa é uma pergunta fácil, do que mais tenho saudades é da minha família e dos meus amigos.

  Bom, tendo em conta qua mal cheguei às 15 perguntas, pagaste-me apenas um café. Eu sei, estavas a pensar na minha linha, és um bom amigo. Quando voltares pago-te uma cerveja e … eu fico-me pelo chá. Vemo-nos em breve. Um Abraço.

 Prova ao menos uma mince pie. É a melhor coisa de se viver no Reino Unido.

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Vítor Teves e José Pedro Moreira. Foto: Tatiana Faia, Outubro de 2019.

 

Ps- Esta entrevista foi realizada por escrito e enviada por e-mail. Não teve o patrocínio da Bertrand, da Fnac, da SPA, do BES, da CGD, da FCT, da Fundação Calouste Gulbenkian (já Luiz Pacheco, Mário Cesariny e António José Forte se queixavam), GALP, CTT e nem da Nestlé.

 

 








[1] Cf. https://www.theguardian.com/news/2018/mar/01/bacon-cancer-processed-meats-nitrates-nitrites-sausages

[2] É lamentável que a Ars Poetica, não tenha sido incluída na mais recente tradução das Epístolas de Horácio, que, de resto, é excelente. Tunga, Pedro!

[3] Cf. https://www.newyorker.com/science/elements/looking-for-life-on-a-flat-earth




'Só existe cultura plural. E no plural.' Sergio Maciel entrevista Guilherme Gontijo Flores

Guilherme Gontijo Flores, 2014 (Fonte: Gazeta do Povo)

Guilherme Gontijo Flores, 2014 (Fonte: Gazeta do Povo)

 

recentemente eu, sergio maciel, comecei uma série de entrevistas com poetas contemporâneos brasileiros. de algum modo, entrevistas sempre foram, para mim, algo um tanto interessante; como se aquela figura famosa cercada de uma aura intocável mostrasse a falibilidade humana a cada resposta. esta entrevista é a segunda parte dessa série, que começou com uma entrevista com a poeta adelaide ivánova, publicada no escamandro e se deu menos por motivos de curiosidade e vontade de descobrir as ideias do entrevistado do que para registrar boa parte das coisas que temos conversando informalmente nesses últimos anos. gosto de acreditar que isso se dará assim, como um registro onde se possa verificar, daqui certo tempo, as próprias crenças e contrastar, revisar, eventualmente. guilherme gontijo flores é professor de literatura & língua latina na universidade federal do paraná (UFPR), tradutor (traduziu, entre outras coisas, as elegias de sexto propércio; a anatomia da melancolia, de robert burton; as odes de horácio & os fragmentos de safo) & poeta (publicou em 2013 seu primeiro livro de poesia, brasa enganosa, que foi finalista do prêmio portugal telecom; em 2015 publicou suas tróiades – remix para o próximo milênio; em 2016, l’azur blasé ou ensaio de fracasso sobre o humor). sem mais, passemos às palavras do entrevistado.

Talvez esse seja o maior clichê de todas as entrevistas com poetas, mas eu ainda creio que todas as repostas dadas, ainda que também clichês, sejam sempre blocos de uma construção que gostaríamos de ver pronta de uma vez por todas. Quase repito aqui uma pergunta feita a Anne Carson, você tem uma definição pessoal sobre o que é poesia? Se sim, como a partir dela você concebe seus poemas, seu ato de escrita e o próprio papel de sua poesia?

Não tenho definição pessoal, mas vivo dela, e esse não-saber me fascina. Desde que comecei a estudar poesia, fui atrás de tradições diversas (poesia grega, romana, ameríndia, árabe, egípcia, persa, chinesa, japonesa, moderna, vanguardista, etc.) e vi que as definições, práticas e possíveis funções variam muito. Ela pode curar, matar, provocar transes, devires, seduzir, deslocar, enfim, é o meio mais radical de performar no humano por meio da linguagem (será que fiz uma definição?). Talvez seja por isso que tento, nos últimos anos, escrever para além do que me foi dado na minha tradição como dever da poesia; claro, isso não é nenhum sonho de novidade pura, mas de testar mesmo o que pode ser poesia pra mim. E talvez esse fazer que é uma busca seja o fazer poesia.

Se pensarmos em termos de um paideuma, qual relação você estabelece entre seus textos, suas traduções, suas performances e, até mesmo, sua profissão? A questão é: considerando seu interesse por um corpo-político, pela voz, pelos limites da questão do autor, para você, é possível traçar algum limite entre esses campos? É tudo obra de um mesmo corpo? Se sim, qual influência objetiva esses gestos exercem sobre os outros?

Gosto de sonhar um corpo que se desmonta e se desdobra, como nos sonhos as coisas e pessoas mudam porém permanecem as mesmas, ou estamos em locais que conhecemos por nome, mas nunca vimos na vida. Se for assim, há um contínuo disruptivo entre escrever um poema que assino como meu e escrever um poema que assino como tradução, e também em performar vocalmente essas produções, bem como os poemas em outras línguas ou poemas de outros autores. Sei que o sonho é já uma política, naquele sentido amplo que vem se perdendo em nosso país, e busco que essa pluralidade de vozes alheias (em tradução, intradução) que atravessam novos corpos pode ser um verdadeiro exercício de alteridade: sem o fetichismo teórico de termos que por vezes se esvaziam (alteridade é dessas palavras que, de tanto a repetirem na academia, talvez já diga muito pouco), mas que por ser mesmo experimental nos dá alterações.  Mas você me perguntou de influência objetiva, e eu realmente não sei responder. É claro que tenho poemas próprios que são feitos via tradução, portanto usurpações, diálogos intensos de vozes, alheamento da minha própria quem sabe. Por outro lado, também traduzo como quem precisa dessas traduções, como quem anseia ter escrito aqueles poemas já escritos e usa a chance da língua alheia como desculpa para criar na língua própria. Seria isso objetivo? A tradução como anseio criativo, e a criação como demanda tradutória?

Há um maniqueísmo meio besta no mundo que quer dividir as coisas entre livro impresso e digital, revista literária e blog, poesia e canção &c. Partindo dessa dicotomia que o povo faz, quero saber se você acha que há alguma diferença estética ou formal, não política, se é que é possível separar essas coisas num discurso, entre poéticas masculinas e femininas. E, se há, como lidar, então, com as poéticas de um corpo-poético trans, como o de Georgette Dee, por exemplo?

Cada vez mais acho que nossa obsessão categórica diante do mundo é um perigo, no pior dos sentidos. Até hoje, por exemplo, não conseguimos dar a devida atenção às literaturas que não se restringem ao livro como meio (penso nas poéticas online em várias línguas, nos pixos, nas poéticas orais de povos minoritários, e até mesmo na canção - veja o bafafá do Nobel dado a Dylan). Sobre o canto de Georgette Dee, ou como faz-se poesia a partir desse corpo trans, certamente eu não sei responder um modelo do “como lidar”.  Talvez possa apenas propor uma abertura para ouvir, de fato ouvir o que se fala naquele corpo, porque ele ressignifica tudo, como todo corpo ressignifica (outro dia andei pensando no termo “assignificar”, como “a-significar”, tirar do sentido e “ad-significar”, dar uma assinatura: assinar como dar o sentido do corpo, que extrapola o sentido de uma linguagem pura, para pensarmos a linguagem como corpo). Num livro que terminei de escrever com Rodrigo Tadeu Gonçalves, nós comentamos uma canção cantada por Dee: nela, ouvimos o desejo “Zehn Frauen muss ich sein” (“Dez damas quero ser”, na minha tradução). Bom, o poema é um experimento ficcional de Erich Kästner; mas no corpo de Dee é impossível não pensar que sua sexualidade está em jogo no poema, ele, quando é cantado por Dee, torna-se um discurso do corpo que se apresenta politicamente. E nós precisamos ouvir esse poema de quem deseja ser uma mulher. Freud se perguntava “O que quer uma mulher?”, e nós precisamos nos perguntar também “O que é querer ser mulher?”. Certamente não haverá resposta fácil, mas há como ouvir.

O que mais te atrai em termos de poética hoje? Quais poéticas contemporâneas, tanto nacional quanto estrangeira, têm tomado mais o seu tempo? Quais poetas? E por quê?

Quando penso em contemporaneidade, sigo os passos de Eliot, Pound e dos concretos. Há um sincronismo panhistórico em jogo. Nesse sentido, a poesia contemporânea que mais me fascinou nos últimos tempos sãos escritos em língua náhuatl (dos astecas) feitos pelos espanhóis ainda no século XVI. É uma poesia viva e poderosa que me diz muito sobre o massacre indígena em curso no Brasil ainda agora, que me lança a pensar sobre problemas de antropologia, poética, tradução, performance, etc. Mas tenho lido muitos contemporâneos no sentido estrito, dentro e fora do Brasil. Em vez de citar nomes, eu diria apenas a um certo filão lamentatório que insiste em afirmar que não há poesia interessante no presente: deixem o mimimi e vão ler as obras, vão procurar as obras; essa reclamação deixa claro que eles não viram um décimo do que está por aí, não vasculharam as pequenas editoras, os sites, os blogs, as revistas, etc. Pelo contrário, arrisco dizer que vivemos um momento impressionante, sobretudo na poesia brasileira, com uma potência de poéticas muito diversas e, ao mesmo tempo, capazes de conviverem como há muito tempo não víamos.

Aproveitando o gancho da pergunta anterior, se você tivesse que indicar vinte livros de poesia contemporânea, publicados nos últimos dez anos, quais seriam?

Bom, você insistiu né? Vamos lá, vinte livros dos últimos dez anos, só no Brasil, sem pensar muito no assunto. Quando terminei já tinha em mente mais pelo menos uns 10 autores que ficaram de fora.

2016Seiva veneno ou fruto, de Júlia de Carvalho Hansen

         Furiosa, Ana Rüsche

         Siga os sinais da brasa longa do haxixe, de cavalodadá (Reuben da Rocha)

2015           Os ilhados, de Ismar Tirelli Neto

2014           Transformador, de Dirceu Villa

         A duração do deserto, de Nina Rizzi

2013           Um útero é do tamanho de um punho, de Angélica Freitas

         Quando a Terra deixou de falar (cantos da mitologia marubo, por Pedro Cesarino)

                   Lira de lixo, de Adriano Scandolara

2012           Ciclo do amante substituível, de Ricardo Domeneck

2011           Roça barroca, de Josely Vianna Baptista

         Os dias ímpares, de Sergio Blank

2010           Modelos vivos, de Ricardo Aleixo

2009           Monodrama, de Carlito Azevedo

         Yãmixop xunim yõg kutex xi ãgtux xi hemex yõg kutex: cantos e histórias do morcego-espírito e do hemex (autores da Terra Indígena do Pradinho, org. final de Rosângela Pereira de Tugny)

2008           Tratado dos anjos afogados, de Marcelo Ariel

         Cinco lugares da fúria, de Pádua Fernandes

2007           Baque, de Fábio Weintraub

2006           Margem de manobra, de Claudia Roquette-Pinto

         Estamira, filme de Marcos Prado sobre essa mulher. Há também um livro.

O peso dos concretos na nossa vida é algo inegável. Houve, inclusive, quem tenha conseguido ver no seu primeiro livro de poesia algo haroldiano. Na condição de tradutor e poeta, como você lida com essa influência? Pra você há uma espécie de “angústia”? Que caminhos a crítica poética e tradutória deve tomar daqui pra frente?

Não sinto angústia. Haroldo de campos é uma figura fundamental, mas tenho pouca afinidade com sua poesia autoral; retorno sempre à sua escrita teórica e crítica, e sempre mesmo às suas traduções.

Mas que caminhos a crítica poética e tradutória deve tomar? Eu não sou prescritor de regras. Se for pra sugerir algo, diria que devem deixar de ser caretas, procurar correr risco.

Você tem algum poeta que permaneceu com você desde a primeira a leitura, que vem atravessando os anos ao seu lado e que, de alguma forma, te influencia?

Rimbaud foi minha primeira experiência poética de quase-maturidade. Eu devia ter uns 17 anos. Já tinha lido Bandeira, Drummond, Andrades, etc., que também continuam comigo, mas de modo muito diverso. Rimbaud, curiosamente, só cresce, embora eu o releia muito pouco. Outro que parece só ficar maior é Whitman. E Drummond. E cummings. E Ungaretti. E Horácio. E Safo. E Homero. Pronto, já exagerei, acho que carrego muita gente comigo.

Considerando que nosso tempo não mais cultiva, ao menos deliberadamente, a ideia de um gênio contemporâneo (porque ainda há por aí essa ideia do gênio em Shakespeare, Dante, Goethe e tantos outros clássicos, por exemplo) e que o rótulo de erudito é uma coisa bem ultrapassada, alguns diriam até impossível atualmente, como você lida e compreende as ideias de “cultura”, “clássico”, “tradição” e “conhecimento”, que sempre estiveram relacionadas a uma elite intelectual e econômica? Qual é a serventia dessas coisas no nosso mundo? Como você trabalha com enxerga e trabalha com a transmissão disso tudo na sua profissão de professor?

Só existe cultura plural. E no plural. O que a gente chama de educação, na nossa sociedade, deveria servir pra gerar um engajamento crítico na formação dos cinco sentidos, e esse engajamento é feito de dissenso, não de harmonia pedagógica. Mas, sabemos, não é bem o que acontece. Então, não acho que alguém tenha qualquer dever de conhecer “os clássicos”; mas dificilmente alguém vai perder tempo se parar pra olhar o que tem ali com calma. A tradição é assim, como diz a etimologia, um entregar através, um dizer para além, que a gente pode ou não repetir. Ou pode, como eu mesmo tento no mundo de letras clássicas, dizer de um jeito todo outro, que parece mesmo nem repetir quando bem repete. É outro sonho.

Pequena entrevista a Luís Ene (e selecção de textos)

Entrevista a propósito do lançamento do livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido (Lua de Marfim, 2016)

Contactei pela primeira vez com Luís Ene a partir da revista online “Minguante”, que agregava um vasto conjunto de jovens e menos jovens autores, essencialmente portugueses e brasileiros, unidos pela vontade de publicar contos muito breves. Em 2007,  por ocasião da apresentação de uma antologia luso-brasileira (Contos de algibeira) daquilo que então parecia ser a grande moda literária do momento, a microficção, apertei pela primeira e única vez a mão ao autor. A sensação com que fiquei foi de estar a lidar com um homem afável e bom, embora, por nunca mais  com ele ter privado, nunca tenha confirmado essa sensação, que ainda se mantém. No ano seguinte, tanto eu como o Luís tivemos textos incluídos na Primeira Antologia de Micro-ficção Portuguesa. Muitas vezes acontece-me esquecer quem sou, livro de 2006, em edição bilíngue (português/ espanhol), e Saudade de Água - Memórias de Faro (2011) são duas obras de Luís Ene ilustrativas da sua atracção por textos que, não obstante sejam muito, muito curtos, contêm algo mais essencial para a literatura do que o relatar de uma história, a intensidade. No referido livro bilíngue encontrei um texto que ainda lembro como algo que ensina a estar neste mundo (e talvez seja disso que se fala quando se fala de literatura): “Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.”

Olá, Luís. A revista “Minguante”, da qual foste um dos editores, publicou dezenas de autores. Como eu, muitos deles publicaram na revista os seus primeiros rabiscos ditos literários. Talvez não erre se afirmar que as duas antologias de microficção em que participei existiram por causa da “Minguante”. Tudo isso passou mas ainda me lembro daqueles tempos e de ti.

Olá, Paulo. Fico contente por estar de novo em contacto contigo, o qual na verdade, sinto que não perdi desde o tempo da "Minguante", ainda que sempre à distância. Penso que foi da única vez que nos encontrámos que me disseste da importância que teve para ti publicar na "Minguante", o que, confesso, muito me agradou. Segui-te sempre com atenção e admiro o que arriscarei chamar a tua coragem e persistência.

Tendo em conta que estamos em países diferentes, deixa-me perguntar-te como estás a escrever. 

Comecei por escrever este texto à mão, num caderno de argolas, pautado. Escrevo habitualmente à mão, porque sinto esta forma como mais natural, mais perto do corpo e de mim, mas a verdade é que teclo devagar, com dois dedos apenas... Escrever à mão é diferente, não se pode cortar, copiar, editar, como não deixaria de fazer se estivesse a escrever diretamente ao computador.

Vou tentar responder a todas as tuas perguntas, porém não vou seguir a ordem em que as apresentaste. A primeira coisa que pensei, quando acabei de ler as tuas perguntas pela primeira vez, foi que o livro que agora publiquei responde, em larga medida, a todas elas; na verdade este livro apresenta-se para mim como um balanço da minha atividade literária, o traçar de um verdadeiro ponto da situação, onde me interroguei sobre de onde vinha e para onde quero ir como escritor que sou.

Trocámos há uns anos opiniões sobre o que seria a microficção. Lembro-me de te dizer que a microficção e os microficcionistas não existiam. Queria dizer que o que existe são textos e escritores, que catalogar ou rotular pode afastar o autor e os seus livros dos leitores. Agora não tenho a mesma convicção. Que é para ti a microficção?

Por estes dias tenho defendido a existência de escritores algarvios e tenho-me apresentado como um deles. Não vejo que esta posição me limite como escritor que sou, porque escritor é o que eu sou primeiro, é essa a minha substância, e só depois sou um escritor algarvio e mesmo um escritor farense. Da mesma forma me digo português, europeu, mas sinto-me, sempre e primeiro, apenas humano. Vêm esta considerações também a propósito da microficção. Na altura, microficção pareceu-me uma classificação suficientemente abrangente para agrupar toda uma série de manifestações literárias breves. Hoje como então, qualificações como esta são vistas em Portugal por muitos e desde logo pelos próprios autores como limitativas e castradoras. Ainda há pouco tempo, um escritor a que eu chamaria algarvio, porque aqui reside e aqui se manifesta, interpelado sobre essa condição, reagiu de forma vigorosa, considerando-a ofensiva e negando-a. E de algum modo o mesmo se passa em Portugal quanto aos poetas e contistas, ainda que de outra forma.

Conheço quem defenda que textos de quatro linhas ou de uma ou duas frases não são literatura. Vejamos um pequeno conto: “Uma mulher apaixonou-se por um homem que estava morto havia anos. Não lhe bastava escovar-lhe os casacos, limpar-lhe o tinteiro, tocar o seu pente de marfim: teve de construir a sua casa sobre a sepultura dele e sentar-se com ele, noite após noite, na cave húmida.” O autor deste conto é Lydia Davis. Autores menores ou menos conhecidos são acusados de não fazer literatura com textos do género. Que dirias em defesa dos teus próprios livros?

Escrever um texto breve e intenso não é fácil nem acontece com facilidade, todavia o que acontece quando confrontamos um excelente texto breve com um excelente texto longo é que o segundo parece sempre pesar mais, mas a verdade é que valorizamos mais o peso do que a leveza quando avaliamos um texto literário. 

Dizer o que se sabe é sempre dizer pouco, por isso prefiro dizer o que não sei, o que é sempre mais complicado. 

Tenho convicções hoje que não são muito diferentes das que tinha anos atrás quando me esforçava por defender a microficção, a diferença é que hoje nem me dou ao trabalho de responder a certas afirmações que são ditadas sobretudo pela ignorância e nalguns casos pelo medo, que andam em regra juntos. Referes Lydia Davis, acrescento Charles Simic (de o Mundo não se acaba, nem mesmo traduzido em português) e até Charles Baudelaire dos pequenos poemas em prosa (O spleen de Paris). O pequeno poema verso “Ama como a estrada começa”, de Cesariny,  não levanta infinitos seguimentos, infinitos ecos? Como colocá-lo no entanto num dos pratos da balança quando no outro está, por exemplo, Moby Dick de Melville? E no entanto…

Uma pergunta que é ao mesmo tempo um lugar-comum: que autores lês, ou melhor, que autores te fizeram querer escrever livros como o que agora lançaste? 

Mário-Henrique Leiria e Ana Hatherly (sobretudo de as Tisanas) são autores que me fizeram sem dúvida querer escrever como escrevo. No primeiro revejo-me sobretudo na ironia breve, no segundo revejo-me sobretudo no experimentalismo feroz.

Que livro gostarias de escrever mas nunca ganhaste coragem para isso?

Um livro que gostaria de escrever, mas que tenho evitado, ou não tenho tido mesmo coragem para isso, seria uma incursão na chamada literatura de não ficção. Elaborei em tempos um projeto, com o titulo provisório de Crimes Exemplares e em que me propunha viajar pelo país e tentar reconstruir certos acontecimentos marcantes, alguns já com vinte anos ou mais, usando todos os meios habitualmente atribuídos aos jornalistas e aos historiadores, mas depois tudo contado na primeira pessoa e recorrendo a processos literários.

No último texto do teu livro, precisamente intitulado “Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido”, temos uma lista: escrever até não conseguir escrever mais, escrever por necessidade, não saber por que motivo se escreve, escrever pouco e curto por preguiça, porque é fácil, escrever textos curtos por causa da intensidade, etc. E depois: “Mas não ficou muito tempo a pensar no que descobrira e meteu logo mãos à obra, que era a sua forma mais comum de pensar num assunto”. O mundo é complexo e as histórias, e as tuas histórias, passíveis de ser multiplicadas até ao infinito. Poderias pensar até ao infinito. Tendo estas coisas em mente, consegues resumir em algumas linhas ou frases aquilo que tens sido e aquilo que queres ser enquanto escritor? 

Deixa-me dizer-te que este último livro, na sua unidade, é para mim como um ensaio sobre o que é a escrita, ao estilo de Montaigne, que estou a reler com atenção. E no entanto, cada texto, em si mesmo, é completamente autónomo. Terminei posteriormente uma novela, chamar-lhe-ei assim, e é talvez por aí que quero ir, sendo que escrevo por necessidade e escreverei aquilo de que sentir necessidade. Sou eclético, como me disseram uma vez pretendendo insultar-me, e gosto sobretudo de experimentar.

A partir daqui, o autor prefere explicar-se com textos retirados do blog Diário mais que improvável (http://diariomaisqueimprovavel.blogspot.pt)

Tudo começa na página em branco. Tudo começa quando a escrita invade a página em branco, quando a escrita povoa a página com hesitantes porém determinados começos. E as perguntas começam a surgir. Quem escreve? O que se escreve? A primeira personagem de uma obra literária é sempre o seu autor, ou será que existe escrita sem autor? Pode o ato de escrever ser automático quando existe alguém que escreve? É claro que também existe algo que se escreve. O texto literário é o encontro entre alguém que escreve e um algo que se escreve. O processo, sim, o processo é uma outra história.

 Uma palavra à frente da outra, é assim que se escreve, é assim que se contam todas as histórias. É assim que escreve quem escreve, é assim que se escreve esse algo que se escreve. Parece fácil e é fácil; parece difícil e é difícil. Com as palavras nada é fácil e no entanto nada é verdadeiramente difícil, porque basta colocar uma palavra à frente da outra e esperar que algo aconteça, esperar que algo se escreva. Mesmo quando se responde a um apelo, a uma urgência, escrever é sempre partir à aventura, é sempre estar aberto a todas as possibilidades. Como se escreve? Escreve-se, escrevendo! Escreve-se colocando uma palavra à frente da outra. É pouco? Talvez, todavia é um pouco que é muito. Se queres escrever, escreve! Se precisas de escrever, escreve! Só escrevendo despertarás esse algo que espera ser escrito, esse algo que espera escrever-se.

 Escrevo, palavra a palavra, com cuidado. Observo, observo-me, escrevo. Como se seguisse um caminho que eu próprio imagino mas que me leva quase contra a minha vontade. Estou a caminho, como se conduzisse um carro por uma estrada qualquer

Espero, suspendo a escrita, respiro fundo. Observo, observo-me. Respiro fundo, respiro mesmo fundo, uma e outra vez. Sinto-o e escrevo-o mais uma vez. Tento encontrar a verdade desta mentira que é escrever. 

A estrada está à minha frente, é de noite, estou sozinho; para chegar seja onde for tenho de continuar. Posso perder-me, posso não chegar aonde quero, supondo que sei onde quero ir; mas chegarei a um qualquer lugar, esta é a certeza de escrever.

Estou preocupado, combato medos, luto contra a crescente ansiedade, porém tenho a certeza de que a estrada existe e que chegarei a um qualquer lugar, se a seguir; e isto é escrever.

Mas também posso ficar pelo caminho, pode faltar-me o combustível necessário para chegar, ou pelo menos para me reabastecer e continuar. Avanço, corro o risco, confio na minha sorte, confio nas minhas capacidades, deixo-me levar pelas palavras, aproveito as descidas, faço-me leve, persisto, ignoro os sinais de alarme, digo a mim medo que vou chegar e quando dou por mim, contra todas as possibilidades, cheguei ao ponto que me permite parar, que me permite continuar. 

Observo-me, sinto-me, digo a mim mesmo que vou ficar por aqui, que depois continuarei a percorrer a estrada. Digo-o, escrevo-o, e fico por aqui. Antes de terminar volto ainda atrás, e revejo o que me aconteceu. A escrita é sempre memória de si mesma.

 De entre tudo o que escrevi e não publiquei (em muitos casos nem mesmo em blogues, meio de edição que uso com frequência) percorro alguns livros (ou projetos de livros) a que voltei várias vezes e que arrumei finalmente numa única pasta, no que foi uma forma de organizar o que escrevi para poder seguir em frente e continuar a escrever.

Constato que a minha produção literária avançou nos últimos anos entre a prosa e a poesia, apresentando-se ao mesmo tempo cada vez mais fragmentária e eclética. E isso é muito mais visível no conjunto de livros não publicados, desde logo porque tenho publicado muito pouco. 

É difícil datar estes livros porque a eles voltei muitas vezes, alterando-os, juntando-os, dando-lhes novos nomes e estruturas. Mas não será difícil viajar neles de forma cronológica ou quase. Como a reflexão sobre a escrita é um dos meus temas recorrentes, sobretudo aqui, esse será o fio condutor.

Começo por uma versão alargada de um livro publicado, com dois novos livros, o que faz do conjunto um novo livro. Procuro então um texto (decidi mesmo agora que de cada livro apenas escolherei um texto) e começo a viagem. 

*

Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.

*

Escolhi este texto, hesito, mantenho-o. Textos como este, que eu considerava pequenas histórias, podem facilmente ser classificados, e foram-no, como poemas em prosa, pela sua concisão e ritmo. Avanço e abro outro livro.

*

De um livro com o subtítulo “ a ficção ao microscópio”, que contém três livros retirei este texto que fala da morte e não da escrita, continuando o primeiro texto apresentado mas afastando-me do meu propósito inicial de escolher textos que falassem do ato de escrever. Microficção, classifico, com o que de ambíguo tem a expressão. Continuo.

*

Perguntavas-me o que faz de alguém um escritor. Bastará ser publicado? É preciso ser reconhecido pela crítica? Vender muitos livros?

Eu dizia-te que não era nada disso, que era algo pessoal, íntimo, mas a verdade é que eu ainda não tinha respondido a essa pergunta.

*

Texto breve, fragmentário, abre uma novela em que se mistura prosa e poesia e que usa e abusa do fragmento. Procuro agora num livro de poesia, ou de prosa/poesia.

*

POEMA UM DIA

a minha história é uma história

defrac assos

ostentoos- todos um a

um

alinhad

os no meu peito

aberto

eles são a prova provada

da minha persistência

da minha coragem

da minha teimosia

ser herói não é ser vencedor

ter sempre os olhos postos

na vitória

ser herói é não aceitar

a derrota

sabendo que nunca

se vencerá

termos os olhos postos

em nós

e vermos os outros

termos os olhos postos

nos  outros

e vermo-nos a nós

ser herói é apenas

sermos homens e mulheres

simples

deuses caídos em desgraça

e aceitarmos

o nosso trágico destino

com um sorriso pleno

de revolta

 

[um poema escrito em poucos minutos e em poucos minutos reescrito foi vivido muitos anos, e um dia arrancado de repente ao todo indistinto a que chamamos memória. por isso os poemas dizem tanto mais quanto mais calam]

*

Não me detenho e visito outro livro, sem me interrogar se contém prosa ou poesia. 

*

Está tudo no olhar

 

Está tudo no olhar. Até os cegos olham. Está tudo no ver. Até nas trevas nos conseguimos ver. No princípio é sempre o olhar, nada mais do que o olhar, o ver vem depois, vem sempre depois, depois do olhar e antes do fazer, ou não fazer. O poema pode ser cego mas tem sempre os teus olhos. O poema pode ser obscuro mas nunca é invisível. Está tudo no olhar, não estás a ver? Estás? Então olha!

*

Fico a pensar se me detenho aqui. Já mostrei o que queria mostrar-te e julgo que poderás concordar com as minhas declarações iniciais. Não quero maçar-te, sei que tens mais que fazer, mas vou terminar com mais um fragmento, de uma outra novela, a mais nova.

*

Escrever é viver entre parênteses

Terminada a primeira versão, esforça-se agora em limar as arestas, ou afiá-las, consoante os casos e a perspetiva. Esforça-se sobretudo para ouvir a história, para deixar que a história se conte, como a ideia de que a pedra contém em si a escultura que o artista revela. Faz pequenos acertos, pequenos cortes, esforça-se por encontrar um equilíbrio, esforça-se por revelar a verdade. A maior parte do tempo fica imóvel, em silêncio, escutando, escrevendo. Nunca afirmaria que escrever é viver entre parênteses. Escrever é viver, apenas isso, nada mais.

Entrevista a uma vedeta das redes sociais

Uma frase da série televisiva Girls citada pela vedeta durante a entrevista

Uma frase da série televisiva Girls citada pela vedeta durante a entrevista

Ser vedeta maior dos facebuques não apascenta a alma deste escravo de trabalho que, à custa do par de anos a acartar cadernos de bolso a transbordar de frases enigmáticas, entusiasticamente acolhidas pelo crescente número de amigos e seguidores presentes nas redes sociais, virou manco, incapacitado para qualquer actividade laboral que exija ligar despertador, saltar da cama antes das onze da manhã. O seu destino é a grandeza. Os séculos XV e XVI agora na internet e no Bairro Alto. Facebuques, instagrames e tuíteres eram o trampolim necessário para a sua fama literária mas, emaranhado em frases misteriosas, poemas curtos e intensos e fotografias com filtro, a vedeta ficou presa às redes sociais, e a literatura já não é o seu ponto de chegada. Ainda pensa na escrita, não como algo urgente, a ser conquistado todos os dias, antes como um sonho, uma fantasia de verão, daquelas que se têm ao crepúsculo a trocar ideias com compagnons de route, vulgo amigos de facebuque. Não troca o certo pelo incerto. Dá a vida pelo tuíte perfeito, pelo tom de céu mais azulado que o seu android conseguir apanhar. Esta biografia é simples e brilhante: trinta e tal anos a partilhar tecto com os papás, possuidor de um curso de estudos portugueses genialmente por concluir, autor de várias trocas de contactos com o Instituto Camões que não deram em nada, notabilizado por estrofes e contos publicados em antologias e zines da moda e por uma actividade social intensa, consubstanciada em leituras de poesia e bebedeiras nos bares da capital.

 O talento nasceu consigo ou é fruto do trabalho?

Essa é fácil (abre o caderno com as notas facebuqueiras e respiga uma frase). "Talento é 1% de inspiração e 99% de transpiração.” Thomas Edison. Este cadernito é a minha vida (beija o caderno preto de capa mole, marca moleskine). Demorei anos a construir o muro da minha sabedoria. Anos a coligir e melhorar frases de famosos. A maceira que é juntar uma fotografia de um dia na praia a uma citação de William Shakespeare. As pessoas não fazem ideia, a fama exige muito.

Qual o sentimento de ser famoso nas redes sociais?

 Gratificação. Ver o nosso trabalho reconhecido é... Como diria o meu amigo Séneca, o esforço chama sempre pelos melhores. Nos facebuques não há melhor, cheguei a tão elevado nível de excelência que, postando frases como “Jantei verduras”, amealho nunca menos de duzentos likes. Ora, para quem começou do nada, a comer o pó levantado pelo sucesso dos outros, para quem se iniciou nestas lides com cinquenta amigos e postagens na ordem dos dois likes, não é coisa pouca ser considerado o Cristiano Ronaldo das postagens irónico-sarcásticas pelos melhores críticos.

Que críticos?

O Guerreiro.

O António ?

Outro. 

 De que trabalho mais se orgulha?

Sigo o lema de Confúcio. Escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia na tua vida. Trabalhos não tive, só prazeres. O prazer de que mais me orgulho foi uma fotografia captada na Praça do Comércio. Se bem me lembro (sorriso malandro), a loira que aparece de costas era uma sueca que conheci numa festa Erasmus. Tirar a foto foi fácil, menos fácil foi trabalhá-la, passar das cores naturais ao filtro. Naquele tempo (recuamos a 2012), a tecnologia não era a mesma. Atingir os quinhentos likes, ser considerado genial pela minha amiga Cristininha, receber não sei quantos pedidos de amizade. É para todos? Não. É para mim, que cito Adorno sem ter lido uma linha da sua obra.

Que posição ocupa a literatura na sua vida?

 A literatura portuguesa incomoda-me. Não a leio. Nunca li. Quis ser um escritor americano e ainda não perdi esse sonho, falta-me aprender o inglês ou encontrar um bom tradutor ou até um bom ghost-writer, porque ainda não tive paciência para redigir os grandes romances que tenho idealizados (e não são poucos). “Não desesperes, nem sequer pelo facto de não desesperares. Quando já tudo parece ter acabado, novas forças surgem em marcha, e isso significa precisamente que estás vivo.” Quem o disse? Kafka. Enquanto não sou o tal escritor americano, contento-me com a glória nas redes sociais. Tenho um pombo na mão. É melhor do que dois a voar. Antes genial para o Américo do que um anónimo a flutuar num mar desconhecido.

Lê?

Se leio. Como responderia aos comentários dos meus seguidores se não os lesse? (intrigado). Ler livros? (coça a nuca). Ler é sobrevalorizado. Está tudo no facebuque e quem tem google, como dizer, googla, e quem googla, ora bem, é como olhar para a Terra a partir da Lua, vê-se tudo. Poemas, disso leio muito, não que goste. Mas para ser é preciso parecer.

Muitos escritores se debruçam sobre a dor causada pela reescrita. Que tem a dizer sobre isso?

Reescrever. Doloroso. Seria bom que cada postagem minha saísse bem à primeira. Infelizmente, os likes não vêm com primeiras versões. É preciso melhorar e melhorar e melhorar. Em termos literários, não reescrevo pelo simples motivo de não ter escrito. O que de meu saiu em papel foi vomitado, cuspido, esculpido pela sola do sapato. O mundo é complexo. Já ouviu falar da teoria da complexidade de Edgar Morin? (Digo que não). É melhor nem falar disso, ficaríamos aqui a noite inteira e, como sabe, as noites fizeram-se para amar.

Qual a sua opinião sobre Lobo Antunes?

Nunca li. Mas chato.

Diga-me, há pessoa que admire?

Havia. O César. Grande poeta, enorme leitor de poesia. Beberrão. Perdi-lhe o amor quando o apanhei a despejar cerveja no urinol durante a apresentação do livro do Carlos. Sacrilégio. Deitar cerveja fora. Por tudo o que é mais sagrado. Faço minhas as palavras de uma filósofa recente, de seu nome Lykke Li: never gonna love again.

Quais os seus planos para o futuro?

É longo o caminho que vai do projecto à coisa. Molière. Pretendo consolidar a minha glória cibernética, conhecer umas ninfas, morar em Lisboa, arranjar um tacho num jornal a cozinhar recensões, fundar mais umas zines, organizar uma exposição em que se misture versos da minha autoria com obras de artistas plásticos emergentes, ganhar um desses prémios literários atribuídos a tipos que nem assinar o nome sabem, entrar no Lux sem pagar. 

Entrevista a um jovem autor de panfletos dissentores

O autor usa óculos de massa e uma camisa vermelha ao xadrez, calças de ganga e All Stars pretos rasgados. Combinámos o nosso encontro à entrada de uma livraria independente. O autor tem na mão a carteira, uma caneta e um bloco de notas. Informa-nos de que o seu romance acaba de ser recusado por mais uma portentosa micro-editora, após ter sido aceite. Diz-nos ainda que não pretende ser identificado, de modo a estar preparado para a remota eventualidade de o seu manuscrito ser aceite outra vez por qualquer outra badalada editora. Confessamos que esperávamos que este estranho caso de um manuscrito aceite primeiro e recusado depois nos permitisse uma digressão até ao mundo dos livros proibidos, muito censurados antes de publicação e recebidos com escândalo. A postura curvada do nosso Flaubert, o trejeito nervoso com que ele puxava os óculos para cima com o indicador quando estes lhe escorregavam pelo nariz, não prometiam nada de menos sensacional. 

Pode contar-nos qual o conteúdo do seu manuscrito que acaba de ser recusado?

Tratava-se de uma odisseia soft porn, ao género de Fifty Shades of Grey. Alguns dos capítulos tinham sido anteriormente publicados em fascículos nas revistas para jovens autores deste país, o que me pareceu um início promissor. A minha ambição era que as pessoas entendessem que esta não era apenas uma obra de soft porn mas uma metáfora para a falta de espaço e massa crítica que abunda no meio literário português e para a estagnação cultural que os anos da crise instauraram entre nós. Uma pedrada no charco. Uma espécie de Christian Grey encontra Anna Karenina, algo de verdadeiramente eclético e radical. Eu não tenho críticos, menina, tenho detratores. Numa das primeiras recensões aos meus contos, um vate popular no subterrâneo que ganha a vida a fazer recensões negativas a autores da craveira de um José Luís Peixoto e a manuais de informática (com um tal sentimento poético que por vezes estes dois tipos de obras se confundem na minha imaginação), acusou-me de ter juntado assuntos muito díspares, tendo criado um Frankenstein de um romance, uma coisa de verdadeira alta voltagem. A que mais pode um jovem romancista aspirar? Paguei-lhe duas cervejas no Bairro Alto e ele prometeu que me voltava a ligar. Mas agora que o romance não vai ser publicado, como é que voltaremos a ter assunto de conversa? Acha que lhe posso ligar e pedir uma recensão sobre a não publicação da minha fábula febril, da minha poética de uma cultura pop para a Lisboa destes tempos?   

Sinceramente, acho melhor não. Tentou propor o seu livro a outras editoras?

A menina está a brincar comigo? (O autor gesticula, faz um gesto em que une os dedos das duas mãos em redor do polegar, como se isto fosse uma pizzaria em Roma ou se estivéssemos numa coffee shop em Nova Jérsia.) Eu lambi selos e paguei portes para versões impressas do meu manuscrito que viajaram até à Relógio d’Água, Assírio, Cotovia, Quetzal, tudo o que foi morada de editora que apanhei nas listas telefónicas, tal como as fui encontrando por ordem alfabética, pimba, sacava logo do manuscrito, selo, portes de envio, cartas de recomendação a acompanhar o romance. Eu não sou tímido. Toda a gente já sabia que o meu romance estava por aí. Esperei editores quinquagenários em estações de comboio desertas com o manuscrito metido na gabardina, mandei mensagens sugestivas (às duas da manhã) a críticos piolhosos que pudessem assinar seis linhas sobre as minhas colaborações em revistas, sentei-me em longas conferências onde dormitei em salas sobreaquecidas só para apertar as mãos a críticos e perguntar-lhes quando é que uma recensão a qualquer dos meus textos ia sair. Um desespero muito trabalhoso. Até que um dia recebo um email a dizer que o meu manuscrito tinha sido aceite. Só era preciso aceitar as alterações do editor. Concordei com tudo. Beijei-lhe as mãos. O cachucho no dedo mindinho. Aturei os comentários ignorantes daquele energúmeno incapaz de alinhar três adjectivos de modo coerente e que nunca poderia entender a pujança da minha prosa. Agora resta deslocar-me com uma catana dentro da mochila. Ainda haveremos de tornar a falar. Só pararei de me fazer acompanhar da catana quando o manuscrito for aceite para publicação. Andará para aí um visionário com quem ainda não me cruzei. Ele só precisará de ler três páginas da minha obra.  

O seu editor evocou alguma razão em particular para optar pela não publicação do livro após ter aceite o manuscrito?

Não. Fui apenas informado de que se tratava de uma decisão superior do editor. Não querendo caluniar ninguém, devo dizer que tenho boas razões para suspeitar que a isto não terá sido alheio uma recensão menos positiva a que vários dos meus panfletos foram alvo por um crítico que mantém boas relações com o meu editor. Perdão, ex-editor. Os meus panfletos visavam o abuso de citações de autores neo-realistas italianos por parte de um crítico que está, como qualquer génio num país com cada vez menos espaço, condenado a exercer o seu espírito de dissidência num dos jornais mais burgueses de Portugal. Sobre a obra deste crítico, tenho apenas a acrescentar que ele gosta de raparigas mais novas. Acho que isto diz tudo sobre o livro que ele escreveu sobre a relação entre o cinema de Bergman e a filosofia de Kiekergaard. No fundo não se devem juntar assuntos tão díspares. E é preciso ter opiniões de tal modo que nunca venhamos a desagradar aos nossos amigos, e sobretudo não aos amigos dos nossos amigos. Reconheço agora que o meu livro, que se lixe, que toda a minha postura intelectual é demasiado ambiciosa para este país.  

O jovem autor afasta-se de cabeça baixa. Pára a meio, retira da mochila um exemplar de um dos volumes da poesia de Jorge de Sena. Tenta ler enquanto anda. Uma chuva miudinha começa a cair. Ele tropeça na calçada e bate com o queixo no chão. O livro rodopia e aterra numa poça. Mais um génio sufocado. Podíamos ajudá-lo a levantar-se, dar-lhe um beijo na testa, ajudá-lo a apanhar os fragmentos dos óculos, mas ele podia pensar em enviar-nos o manuscrito e não convém incomodar os editores que sempre gostaram de nós.