Estrela pura

O poeta, romancista, escritor e pensador António Carlos António é um homem ocupadíssimo. Desde o ano passado que ficara de me conceder uma entrevista. António Carlos António é a pérola que mais cintila dentro de uma gaveta de pérolas que ainda não chegaram a ver a luz do dia. O seu momento chegará. Acredito eu, acredita quem o lê, quem o ouve, quem o vê. António Carlos é bonito, é inteligente, ginga sem tocar no solo com a sola dos sapatos. Com alguma agressividade, pede-me para que publique a entrevista sem revisões. Deseja a coisa em bruto, como tudo que faz. Com brutalidade. 

O que anda a escrever?
 

Um ensaio sobre um romance da minha autoria ainda não publicado. Trata-se, talvez,  do ensaio que melhor analisa a minha obra ficcional. É algo muito abrangente. Quem quiser perceber minha ficção, necessitará certamente de ler este trabalho mental nunca vertido para o papel. Agora perguntar-me-ia como se pode ler algo não escrito. Ouvindo-me.

Quando teremos acesso aos seus escritos? Não sei se tem noção de que ainda não publicou nada.
 

(Sorrisos) Eu não procuro editoras. As editoras que me procurem. Os meus manuscritos estão disponíveis, quando tiver paciência transponho-os para o papel. Basta virem ter comigo. Apanhem o metro para o Intendente, perguntem pelo António Carlos António, ou então pelo “Bonito”, e não haverá quem não saiba dizer onde moro. (Cofia a barbicha) Modestamente, muito modestamente, tenho vindo a construir uma fama que transcende o Intendente. Sou o escritor mais famoso de Lisboa. E nunca publiquei nada. Quem se pode gabar disso? Até lhe posso dizer que preferiria nunca publicar em papel e andar de casa em casa a declamar a minha obra. 

Gostaria de ser um Pynchon ou um Salinger, alguém que não aparece?
 

Sou o António Carlos António, não me confundam com outros. Não conheço esses autores. São bons? Sabe, sou puro em tudo o que faço. Não leio outros autores para que a minha escrita não sofra distorções. Quero escrever sem influências. Posso aparecer. Gostaria de aparecer. No entanto, reflectindo sobre o assunto, tenho alguma dificuldade com algumas questões. O que é aparecer? Ser influenciado. Ser um animal social. Rejeito. Não uso telemóveis para que a tecnologia não me influencie. Não escrevo no computador com receio da influência. Não quero ser influenciado. Sabe como escrevo? Com o cérebro. Nem o papel merece o esforço da minha mão. 

Diz-se puro. Não lê enquanto escreve “mentalmente”? 
 

Eu inverteria a questão. Pode um autor ler enquanto escreve? Se eu lesse esse tal Pynchon enquanto escrevo, escreveria como Pynchon. Não posso dar-me a esse luxo. Estaria a contribuir para a alienação de que o mundo padece.

Alienação no sentido de Marcuse?
 

No sentido de António Carlos António. Posso gabar-me de nunca ter lido um livro. Não preciso de ler para escrever. Possuo pensamento próprio. Como poderia ler se estou sempre a escrever? Não se pode ser duas coisas ao mesmo tempo. Escolhi a escrita, é da escrita que me alimento. O meu cérebro está cheio de António Carlos António. 

Consulta dicionários?
 

Claro que não. As palavras chegam-me quando devem chegar. O que não aparece é porque não estava destinado a aparecer. 

Qual o tema do seu romance?
 

O meu ensaio é sobre isso. O romance é sobre mim próprio. Sobre o facto de eu ser alguém que não precisou de ter mãe, nem pai, que não passou por licenciaturas, que não leu. Fiz-me a mim mesmo e continuo a ser eu, imune a tudo o que me rodeia. 

Tem preocupações sociais?
 

Podemos dizer que sim. Escrevo para combater essa corja de analfabetos que para aí anda, saltando de bar em bar, gabando-se da sua própria genialidade. Sou o representante do povo. O povo nas letras. Vomito quando penso nessa praga de escribas que se arrasta pelas ruas de Lisboa. Maltrapilhos que enchem o Intendente, os Anjos, o Bairro Alto. Essa malta mete-me nojo. Com o seu estilinho provinciano. Aldeões mascarados de citadinos. Com as roupinhas rasgadas e as malhas e sei lá o quê. Um ror de pulhas. 

A inveja é uma preocupação social?

Inveja? Eu. Ai que desmaio. Desfaleço. Vejo escuro. Ceguei. (De apalpadela em apalpadela chega-me ao peito) Onde estou? Inveja? Ai que me feriram. Pior do que Lear. (Conhece Shakespeare apesar de afirmar nunca ter lido nada) Mulher desalmada.

Preocupa-se com alguma questão importante?

Preocupo-me com a morte, com a minha morte, não quero morrer. Depois de mim, que tipo de artista haverá? Esta ralé? (Apruma a gola da camisa) Vamos esclarecer uma coisa. Não sinto inveja. Sou um altruísta. Sou mundo. Os meus braços são divinos, podem ser repartidos pelos pobres. O meu corpo é como um livro infinito, passível de múltiplas leituras e interpretações. O meu corpo nu repartido pelos pobres, como pão e vinho. O tema da minha obra resume-se a eu ser mais do que o planeta. Não posso ler nada para além daquilo que é meu, daquilo que penso, pois nada é maior do que eu. Eu sou o planeta. Os pobres que venham a mim e se alimentem dos meus pensamentos. (Emociona-se, a voz treme-lhe) Fossem todos como eu e não haveria fome.

Qual a sua opinião sobre Herberto Helder?

Não sei quem é e, sublinhe-se, prefiro não saber.

E Oliveira?

O meu tio ardina. Um homem assaz respeitável. Casou-se com uma brasileira e fez fortuna lá para o Minho. Foi pioneiro no ofício do proxenetismo lá para aquelas bandas.

A entrevistadora fecha, amargurada, o caderno. Ainda não apanhou escritor que não lhe enchesse as medidas. Todos touros bravios, todos homens vigorosos. Este portento entristece-a. O sexo entristece-a. Será isso a alienação? O momento depois do prazer. A morte de Bataille?