A Companhia Das Sirenes

Terás sempre a companhia das sirenes nas insónias de uma madrugada
Longe de ti mesmo e que bom é caminhar em direcção ao sono
Por entre sonhos adiados e bêbados, rasgados, alcatrão fora, até ao
Isolamento impossível das paredes que vibram a vida vizinha e alheia,
A noite nem se sentiu levantar e a sua queda foi tão suave e tímida,
Como os olhos que realmente ouvem, sem outro interesse além da tua visita,
Porque se mostra tão pouca gente na cidade gigante, onde não há um minuto
Sem a companhia dos que se despedem, tão estranhos quanto tu.

Tóquio

05/11/2015

 

Uma Estrada Para Khabarovsk

Quem terá construído aquela estrada para Khabarovsk, nevada,
Longa e deserta, quem a percorre e que sonhos leva, em direcção
A que pesadelos caminha, terá uma fogueira à espera, algum sorriso,
Uma língua familiar que lhe traga o lar a casa, tudo tão longe
E sempre do mesmo tamanho humano, do mesmo comprimento
Serpenteado até ao mar do esquecimento, que triste será o último
A lembrar, levará com ele todas as mortes para a morte absoluta,
Ainda há muito para andar, muito nome para dar, um longo inverno
Para trazer o próximo verão no coração, entretanto, engulo mais um gole
De café quente e regresso à distância real dos olhos próximos
E procuro nas nuvens uma mensagem que dê sentido a todos os caminhos.

 

Khabarovsk (sobre)

11/11/201

Carta Da Sibéria

Avô, são muitos os rios que desaguam no lago Baikal,
Sim, o mesmo nome que a tua caçadeira soviética,
Terror dos coelhos e lebres dos montes trasmontanos,
Essa mesma que me tombou aos cinco com o coice,
Quando disparava contra o silvado desde a varanda,
Até a mula se deve ter assustado com a choradeira,
Agora não choro tanto, pelo menos não se vê, ou é seco,
Mas às vezes estou muito calado a olhar pela janela e tu não estás,
Ou estás, num lago coberto de nuvens para onde todos os rios
Convergem, e é aí que disparo e caio, mas só a tinta corre
E congela, mas por baixo a água continua a correr
Até ao lago Baikal, que uma vez uns poucos fugidos
De um campo siberiano, contornaram, alguns ficaram por lá,
Um dia o nosso sangue voltará a ser a mesma água,
Até lá, enquanto se foge da noite, escrevo-te estas palavras.

Sibéria

11/11/2015

Cresce E Desaparece

Quando era miúdo, não deviam mostrar tudo na televisão, ou então só via
Os bonecos de manhã e depois de fazer os deveres, se calhar os adultos
Viam todos os horrores do mundo, daí se chatearem com partilhas e
Tão sérios e cheios de segredos e sorrisos, que eles chamavam amarelos,
Mas a cor era algo nos olhos, um brilho de medo, não sei, se calhar o terror
Apenas uma semente, regada ao longo de décadas, estrumada, bem estrumada
Com o sangue distante de vidas longínquas e remotas, lembro-me de areia
E americanos e petróleo a arder, a mesma coisa que matava os peixes
E os passarinhos da praia, diziam que se fazia gasolina daquela merda viscosa,
Que me enjoava quando atestávamos a 4l em Espanha para ir a Trás-os-montes,
Não se sabia tanto de tudo, as coisas demoravam mais tempo a chegar
E quando chegavam, tinham a distância do tempo a tornar tudo ainda mais
Longínquo, hoje temo que cada gole de cerveja seja o último para me tornar
Num número de uma guerra civil qualquer, cujos interesses se escondem atrás
Da ignorância e da cegueira, se apoiam na revolta que alimentam, se calhar é o castigo
Por a memória colectiva ser demasiado curta, por se ler história como ficção, não sei,
Cada vez estou mais certo disso e menos de tudo resto, quando era miúdo, se calhar
Passei por uma fase de esquecimento, um período entre um terror e outro, sim,
A guerra fria e o medo às bombas, agora o medo é aos olhos que entram no bar,
Com um grito, evocando uma razão estúpida e o apagar incompreensível de todos os sonhos.

Turku

14.11.2015

Rio Tuela Revisitado

Ao longe através das giestas ouvem-se carros a passar numa estrada para uma aldeia
Quase deserta, os peixes bicam-me os pés, as cobras sem medo aproximam-se
E uma apoia-se-me no hálux, faz-me saltar como se alguém de repente apagasse
As luzes e eu ficasse novamente criança, como quando atravessava o rio nas costas
Dos tios e à noitinha se iam buscar as redes para jantar peixe frito e na rede uma cobra
E bastante água engolida, perdoo-vos tudo, perdoai-me não vos evocar todos os dias,
Torna-se cada vez mais difícil manter o universo todo consciente, quase nem se dá
Pela cobra apoiada no dedo do pé, não fosse um toque mais frio e o salto,
Porquê se inofensiva, a morte em tantos outros lados, será que o meu avô saltava
Ao ver um copo de vinho, não, mas o copo voava e vazio, umas pingas no chão
E envergonhado pelo garoto não saber nadar, agora sei, e quero lá saber das cobras,
Coexistimos com tantas de sangue quente, que se apoiam calorosas sem pingo
De inocência, pode ser que um pouco de curiosidade, a cobra toda ela um risco curioso
Serpenteando a água até ao fundo do rio, escondendo-se do medo de sangue quente,
Subo a fraga do outro lado do rio e seco ao sol, a pele sente-se cada vez mais,
Como conseguiu tão pouca pele esticar tanto, a cona da irene do outro lado
À sombra, a única companhia silenciosa além dos gritos e risos de outros verões
Levados por mil brisas atrás, mil sonhos esquecidos em almofadas alheias,
Sou agora a testemunha do rio que corre, sou um salto de medo, só ele permanecerá.

 

17.09.2015