Confissão De Um Crime

A primeira vez em que não ganhei um prémio de poesia
Foi no meu 6ºano, por altura do São Valentim, fiquei em segundo,
Perdi para o meu melhor amigo, as juízas foram as professoras de EVT,
Uma hippie e uma filha de militar de alta patente, a razão foi
Não ter feito referência a Camões na minha composição poética,
Na verdade foi para dar exemplo, já que eu era um criminoso,
Eu e o resto dos rapazes da turma tínhamos um processo disciplinar,
Todos, menos o vencedor do prémio, que depois da escola
Era levado directamente para casa, consta-se que espancámos violentamente
Uma colega em frente a um café depois da aulas,
Vingança por o seu mau comportamento na aula de português
Ter levado a que uma ficha de preparação se tornasse num teste de avaliação,
Muitas colegas choraram, não tinham estudado, não estavam preparadas,
Lá se fez e correu bem, na verdade eu fui um ladrão que ficou à porta,
Porque tive pena dela, também foi esse o argumento que me ditou a sentença,
O ditado popular, no julgamento, disse que lhe tinha dado um croquete,
Como fazia o professor de português do 5ºano, isto para não ficar fora,
O que fiz foi pousar-lhe a palma da mão na cabeça e ao sentir aquele cabelo
Quente senti uma grande amargura, por todos, pousei a mão como quem
Absolvendo se condena, e fomos condenados a trabalhos forçados,
Abrir buracos para o dia da árvore antes de almoçar, eu tive de abrir dois
Porque o primeiro chegou ao cabo eléctrico de um candeeiro,
No segundo que tive de abrir, todos os criminosos como eu, me ajudaram
E lá fomos comer, cheios de terra, fui destituído da função de chefe de turma,
Fiquei em segundo no prémio de poesia, acabaram por me dar cinco a EVT
E quatro a português, porque fui um ladrão que ficou à porta
E acabou por levar com uma sentença antes dos dez,
Deve ser por isto que até hoje nunca ganhei um prémio de poesia.

Turku

02.01.2017

10

Confesso que não me lembro da última vez em que te vi com os olhos,
Dez anos não são dez anos, são 10 vezes em que a neve derreteu
E 10 verões em que se achou impossível o seu regresso, foram noites
E piores manhãs, cada dia a nascer já mais gasto, o espelho uma
Memória que nos acorda para cada ano, não te reconheceria o sorriso,
Nós tão sérios na juventude, esperando o fim de décadas para finalmente
Dar razão à ilusão, enquanto se espera, os nomes apagam-se,
Só os sonhos ficam, as suas visitas inesperadas entre menos um dia e outra,
Ninguém me sonha como tu, a entrar naquela sala, levitando no soalho
De madeira com as tuas sapatilhas all star, até o sol encontrou o caminho
Para as janelas, ou alguém tinha acendido a luz, neste dia apagado,
Conto mais esquecimento que vontade, mais partidas que regressos,
Mais fomes que vidas, dez anos que não são dez anos, são cabelos
Que imitam a neve, olhos que reflectem o inverno, dedos demasiado curtos
Com profundidades anónimas gravadas na articulação obvia do fracasso,
Hoje até o Leonard Cohen morreu, os mortais sentem o paraíso cada vez mais
Distante, sentem-se mais longe de todos os reencontros possíveis com o amor,
Sentem-se mais neste mundo que passa para nada e é cada vez menos o que temos
Pena por não ser eterno, e dez anos são tantas eternidades perdidas.

Hurricane

Ainda deve estar entre aqueles meus primeiros poemas, o/a “Hurricane” do Bob Dylan
Em papel reciclado e a tinta azul, que era sempre a que sobrava no fim do tinteiro,
Numa gaveta dominada por humidade e segredos que só os fungos agora conhecem,
Era uma canção, poetas americanos nunca tinha lido e o inglês do nariz ainda me custava
A entrar nas orelhas geadas, parecia-me um conto, mas era em verso, cantado,
Aquele mp3 que o amigo francês encontrou no Napster e só não se gastou
Por se ter perdido entretanto entre cds riscados e disquetes desmagnetizadas,
Ainda devo ter grandes obras imortais perdidas naqueles bits obsoletos,
Pensem nos vossos cérebros fossilizados, revoltados com aqueles títulos
De imortalidade atribuídos por mortais, revoltados da mesma forma com a fome
E a fartura dos outros, quando o estômago moderadamente cheio de reis,
Tenho lido desde então tantos poemas que não são canções sequer, só merda,
Escrito provavelmente ainda mais, mas nunca tive outras ilusões além da purga,
Toda a revolta dos poetas agora, lembra-me o Gregory Corso indignado
Porque alguém tinha escrito “poet” no túmulo do Jim Morrison,
Se calhar com inveja de um artista menor ser maior que a morte, “he beated the dust”
Parece-me que todos os poetas queriam ser na verdade rockstars,
Que todos lhe comem do prato dos restos e não conseguem parar de rosnar,
Ao mesmo tempo que se comovem com os cacos dos sonhos alheios e galinhas mortas,
Nada chega para todos, onde um está só o amigo cabe, amigo do ódio de estimação,
Imparcialidade impossível nos olhos amargos de dedos pesados pelo brilho de lata,
Cantor não entra, palavras só as da minha cor, em papel é que é,
A cantar ou a rosnar, de papel ou de ar, lembrem-se que
Cabemos todos neste barco de ilusão em direção ao esquecimento.

Turku

31.10.2016

 

 

Agosto

I – Torre de Dona Chama

O gato abandonado
atravessa o restolho
do fim da tarde.

A passarada canta
ao anoitecer –
são os vizinhos que restam.

O tractor regressa –
leva a fome
que contra o calor lutou.

Noite quente de Verão –
as rãs acordam
do seu sono molhado.

Os dedos soltam a corda –
naquele instante
nasce um poema.

Já no ar leva traçado
o seu lugar no alvo –
a flecha.

O rio passa
quer a cigarra
cante ou cale.

O Sol põe-se,
as cobras procuram
a companhia das sombras.

Pinheiro ao Sol –
do fundo do vale
olha-se a distância.

No cimo da fraga
acumulam-se
as fezes do gineto.

Quantas folhas caíram hoje,
não interessa –
o rio leva-as todas.

Reflectido no rio
o poeta vê-se mais nítido
que no poema.

Portas fechadas –
o Sol ainda beija
com a língua afiada.

Por cima da fraga dura
passa leve
a borboleta.

Debaixo do carrasco
eu também
onde as folhas caíram.

No crepúsculo do Verão
os grilos acendem
a noite.

[1]No carro do padre
cagaram
as pombas.

É quando o Sol
se põe que os juncos
mais crescem.

no mantra da noite quente
balança o passado
e o presente.

As pedras ainda quentes –
há anos que ela
partiu.

Os escorpiões em álcool
ainda duram –
quantos amores esquecidos.

O açúcar seca no fundo
da chávena –
o hálito a café permanece.

Noites quentes
de ausência –
confabulação.

A Lua segue
as gotas púbicas
na carne quente.

Caem-lhe dos bolsos
gordas larvas –
ninguém irá comer.

A macieira solitária
no lameiro verde
tem a sombra mais bela.

A brutalidade passeia
vestida de incêndio
na canícula.

Contra o rigor da natureza
e a crueldade do homem –
desabrocha a flor.

Quanto menos se tem
menos se
cala.

Ignoram as moscas
que o vidro frio
as espera na janela.

Ainda hoje procuro
o Sebastião Alba
longe do cemitério.

Não há cegueira
que trave
a visão da mão.

Escreve-se melhor
à sombra
dos teus beijos.

 

II- Figueira da Foz

Só as ondas
insistem
no regresso.

Estamos à distância
de um sorriso
ou de uma palavra?

Não é a partida
da andorinha
que traz o Outono.

Eles procuram ser
os sonhos
uns dos outros.

 

III- Porto

Acende-se um cigarro
e sopra-se
no fumo.

À beira do rio
outra vez
como nunca antes.

Entre séculos de fome
esperam inquietos
os fartos.

A loucura alimenta-se
de gritos
e solidão.

Nem o espelho
me reconhece
a desilusão.

A cerveja aquece –
mais rápido
a saudade aparece.

A gota de Porto
caiu-me na pele –
o teu suor.

Os turistas
na minha terra
como eu.

Instala-se o cansaço
como um
pôr-do-sol na montanha.

Um porto entre
cigarros –
o sabor da tua língua.

O rio corre
quer haja lágrimas
quer não.

Dói o luar
Desta noite –
Quebra-se um prato.

Babel –
é aqui que me sinto
em casa.

Agosto 2016


[1] Versão do haiku de Yosa Buson: “Sobre a imagem santa/defecou/uma andorinha”

Agosto

“Quanto mais longe vou, mais perto fico
De ti, berço infeliz onde nasci.”

Miguel Torga

 

Quase que chega Agosto, o mês da fome farta e da loucura
E sei de cor as curvas que se desenrolam Marão acima
E o pé que falha no rio passado da infância,
Só a sinfonia dos insectos à noite, continua indecifrável
Como as companhias cintilantes que da distância impossível
Nos visitam, do horizonte virão suspiros e pestilência,
Um Sol velado e uma Lua vermelha e mais um pedaço de pulmão
Que se calcina, nas ruas estreitas um cão novo que nos ladra
E um olá antigo que será um adeus e nem se sabe,
Os figos serão as estrelas da canícula e as folhas da figueira
A companhia fiel e silenciosa que guarda nas nervuras
Todos os segredos que o corpo repousado lhe conta em silêncio,
Quase que chega Agosto e todos os regressos tão breves
Que mal se chega e logo alguém pergunta quando é a partida.

27.07.2016

Turku