«talvez a eternidade seja isto:»

talvez a eternidade seja isto:
regressar sempre aos mesmos lugares
um até amanhã que é sempre um regresso.

há um último copo sobre o balcão
que espera o saciamento do estômago – sem deus nem ideologia -
já adormecido.

o corpo, como sinal de abandono, adormece
dentro do último copo:
     náufrago de si mesmo.

talvez a verdade embriagada seja mais verdadeira:
     mas é a inércia do mundo
     que não permite reencontrar a ascese ateia
     dos vestígios do sangue.

no jardim continua uma fonte dentro de uma estátua.

«meu velho»

meu velho 

 

o poder com que movia os olhos, já doentes, diante da angústia que o medo da ausência lhe trazia. 

um corpo moribundo. não havia um sol que lhe cobrisse as sombras. seguia sozinho ou já sem ninguém. não sabia os lugares. não conhecia os regressos. perdia as palavras ao longo dos dias. e desaparecia na imprecisão de quem procura ainda um verão, algo de puro, longe das vozes. longe do silêncio. 

 

a tristeza inútil das flores. o abandono com que me atiraste contra silêncios. 

agora somos inúteis. e não há palavras que nos matem a fome. e temos de ficar de olhar intenso a rezar para não sofrer. 

 

e se ao menos a morte te aliviasse a dor. 

 

tudo acabou na lastimável carência de palavras. inválido dos olhos resta o que ficou: a lembrança de beleza.  

 

encosto as mãos ao teu silêncio e debaixo do mundo olhamo-nos até que a morte nos derrube a solidão.

De Memoria in Memoriã

o grito ou o choro pressentido é a voz e o espaço inteiro que ocupa a memória. paisagem de inacessível nitidez.
disperso, é quase findo, mas cresce na direcção exacta onde nasce uma outra certeza: o corpo.

passa longe o tempo que vive no dizer excedido da tua voz. enquanto alguma coisa caminha indevidamente na nudez descuidada do teu corpo. imaginas as linhas do teu rosto no escuro. uma imagem de sustentação duvidosa.

cansados, deixamos que a noite nos amedronte na sua escuridão.  queremos adormecer confundindo a realidade simbólica de que é feita a tua vinda e que agora me ocupa ilegitimamente a escrita e a realidade refractária que me confunde o espírito:
é o dia na noite.

 

fora da janela, do quarto que nos habita, há barulhos que anunciam o principiar de um outro estado.
precisamos de nos erguer: é este o princípio secular da separação dos nossos corpos.

De Memória em Memoriã

meu velho

o poder com que movia os olhos, já doentes, diante da angústia que o medo da ausência lhe trazia.

um corpo moribundo. não havia um sol que lhe cobrisse as sombras. seguia sozinho ou já sem ninguém. não sabia os lugares. não conhecia os regressos. perdia as palavras ao longo dos dias. e desaparecia na imprecisão de quem procura ainda um verão, algo de puro, longe das vozes. longe do silêncio. 

a tristeza inútil das flores. o abandono com que me atiraste contra silêncios.

agora somos inúteis. e não há palavras que nos matem a fome. e temos de ficar de olhar intenso a rezar para não sofrer.

e se ao menos a morte te aliviasse a dor. 

tudo acabou na lastimável carência de palavras. inválido dos olhos resta o que ficou: a lembrança de beleza.

encosto as mãos ao teu silêncio e debaixo do mundo olhamo-nos até que a morte nos derrube a solidão.