Mythos - pequeníssimo breviário -

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SÍSIFO

carregamos a pedra e o medo
olhando uma e outra vez
a viagem repetida:
                                   afinal o que sabemos nós dos sacrifícios?

SÍSIFO

a pedra arrasta-me novamente para o início:
sabemos que é preciso recomeçar.

aqui estamos:
                        estátuas firmes e aborrecidas.

SÍSIFO

um homem carrega a pedra:
um destino que os deuses conhecem:

esperam sob o signo da indiferença
a impossibilidade da exactidão.

AQUILES

não sei a que distância estou
e pouco sei do regresso.

talvez tenhamos morrido
e nada sabemos da guerra

MINOTAURO|LABIRINTO

dividimos o espaço
para que a chegada seja mais lenta.

MINOTAURO|LABIRINTO

ocultamos a saída
para construir a morte

ARIADNE

tecemos a teia ao longo do silêncio:
já nada esperamos de uma coisa destruída.

Teseu não regressará
a este emaranhado de palavras.

ÍCARO

a morte constrói-se com ilusão
e fogo.

 

Dois textos de Eduardo Quina

EN 236 – 1

“Este mundo, que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo.” HERACLITO

Dentro do vazio o silêncio: a mudez é o espaço único do vazio.

O corpo rodeado de fogo: um exorcismo doentio. O que pode o humano contra os devaneios do diabo? O que pode o humano contra a falsidade de deus?

Os gritos dentro do medo: porque todo o medo é um grito retraído.

O olhar abismado dentro do fim do mundo. Deus em forma de fogo ou apenas e só um diabo lancinante, inesperado, contra a natureza inofensiva de deus: quem comanda quem?

O corpo afogado dentro do negro do alcatrão.

O olhar preso dentro de um carro: abraçados na construção de uma eternidade resignada: os corpos escondidos dentro da desesperança viva do asfalto.

Não conseguimos respirar na silente inscrição deste prelúdio indizível.

Eclipse insano deste estranho mundo onde calcinamos o corpo sem cálculo, em desafecto imperfeito, sem carícia neste conceito inacabado de deus.

Um caminho de horror onde todos sucumbiram dentro do próprio medo contra o negro da solidão desesperada: contra o alcatrão.

A noite traz a aflição do olhar cativo: um crime bárbaro, sem dono.

Através do olhar um pai e uma mãe abraçados a um filho: o medo dentro do medo: um medo que ninguém escolheu, que ninguém quis.

Um medo que o fogo não apagou.

Morremos à míngua. A língua negra electrificada pelo fogo. Os dentes cerrados para reter a dor.

O coração silencioso, silenciado, nesta asfixia de todas as flores.

Tudo era incandescência neste prodígio do fogo ou clarão impiedoso ou perversa encenação.

Afinal não há purgatório e a condenação única é o fogo primitivo que tudo une, que tudo desfaz.
 

MORTE EM DIRECTO

“Se tudo o que muda lentamente se explica pela vida, tudo o que muda velozmente explica-se pelo fogo.”

G. BACHELARD, A Psicanálise do Fogo

Uma mulher pétrea de mãos postas conduz um credo há muito esquecido. Invoca em vão um deus. Esse mesmo e insignificante que tudo devora.

Tem as mãos calcinadas pelo fogo. Ardem-lhe com uma precisão invulgar todas as feridas. Está só.

Está rodeada de fogo por todos os lados. Desconhece os poderes desta purga.

Castigo? Inoperância? Desafio? Quem comanda quem?
Erigimos o fogo à custa de relâmpagos.

Debaixo da pele cresce a organicidade do medo. Hoje a dor escreve a cinza: Preta. Negrume altíssimo. Inquebrantável.

A inóspita violência do medo. Ali estamos inimaginavelmente. Encurralados dentro do fogo. Do pânico. Da angústia. Da revolta. Da falta de fé.

Ardemos todos até à incompreensão. Ardemos até à dor mais pungente. Em urgência demoníaca.

Ardem em nós todas as inoperantes palavras ditas e silenciadas.

Arde em nós todo o fogo de contrários. Toda a repulsa da insónia que nos atormenta violentamente, doentiamente.

Rodeada de fogo e de silêncio por todos os lados uma mulher pétrea reza de mãos postas, calcinadas.
Desconhece o som e o silêncio de deus. Está só. Tremendamente só. Num horror impronunciável. O corpo aprisionado dentro das imagens.

Já não podemos regressar à infância porque o fogo perdeu o seu fascínio.

Lugar: Fragmentos

«Eu tinha meus pés naquela parte da vida
onde não se podia ir com inteção de regresso. 

Dante, Vita Nuova

1. 

atravessas o manicómio à procura de lucidez

 

2. 

é preciso guardar a bala
não na câmara do revólver  
mas no crânio atentíssimo  
para que fique a memória

 

3. 

o cepticismo sugere a prevenção
a reserva
para aqueles que querem morrer 

 

4. 

a palavra é um ofício de paciência: 
temperar as maçãs na fruteira
pintar as laranjas no laranjal
deixar mirrar as mãos
dentro dos bolsos
até à loucura

 

5. 

inventas seres inverosímeis
à custa de palavras

 

6. 

habitas os subúrbios
lamacentos da cidade
para estares mais próximo da morte
através de uma bala perdida 

 

7. 

inventas uma vida semelhante à dos deuses
porque sabes que és feito da mesma carne: 
excesso de solidão 

 

8. 

hoje vestes fato e gravata: 
não queres ser apanhado desprevenido
nesta morte anunciada 

 

9. 

geres o corpo com base na insónia 

 

10. 

o nome é a legenda do corpo 

 

11. 

colocas arame farpado nos olhos
e atiras-te lancinante
contra o esquecimento 

 

12. 

um garrote agarrado ao braço
para a construção de um tempo menor 

 

13. 

estabelece-se o perímetro de segurança
para que o corpo possa
ser levado
para longe do pânico e  
do aborrecimento 

 

14. 

a súbita demência incorporada
na voz e nos versículos
da raiva 

 

15. 

o silêncio circula dentro do medo 

 

16. 

o revólver é a única esperança
de um silêncio mais prolongado 

 

17. 

és atravessado pelo manicómio  
na procura de lucidez

Incipere mori (do livro inédito e inacabado)

11.

uma mulher constrói o seu próprio rosto. a pele espessa corrói-lhe a ponta dos dedos. ou talvez tenha sido do fogo.

(afinal esta é outra história).

a mulher reconstrói o rosto devorado pelo fogo. carrega a desfiguração do mundo. um mundo amedrontado. entre pinceladas o fogo arde calcinando a penumbra que a cobre. coloca o corpo num mastro para se ver a arder numa morte calma e definitiva e sem mistérios.

 

12.

poderia começar por dizer que o teu cabelo é o lugar onde os pássaros pernoitam, mas não digo. ou então, poderia dizer que o teu corpo na plenitude da nudez é o espaço onde os homens se escondem, mas não digo. ou então, poderia dizer que a tua voz em forma de palavras é a verbalização de todos os pecados, mas não digo. ou então, poderia dizer que a tua pele de uma textura gasta, de aspecto doente é o inóspito da pedra, mas não digo. ou então, poderia dizer que os teus gestos vagarosos são angelicais na sua simplicidade humana, mas não digo. ou então, poderia dizer que todo este gesto é homenagem simples ao corpo imóvel que está sentado diante de mim na esplanada e que não conheço e és a estória inventada da minha memória e dos destroços que a tua imagem causou com a sua presença.

 

13.

acordas e és a imagem doentia do espelho. lugar de avesso que mostra a direcção exacta da sombra. colocas a roupa sobre o corpo, passas os dedos molhados pelos olhos, e sais. arrastas-te pelas ruas carregando o próprio espectro. deitas-te num banco de jardim debaixo de uma árvore de pouca luz, de ramos decepados. escondes o corpo na sombra e esperas. esperas que a morte seja uma realidade contínua.

 

14.

o corpo movimenta-se ao ritmo do vento. bate contra o vidro como se de um insecto se tratasse. ritual de construção do tempo. espécie de dança para a transformação. desenhos traçados sobre a pele como forma de adormecer a luz.

exausta cai sobre o vidro. um desmoronamento. depois, são-lhe retirados um a um os micro-pedaços sepultados no corpo.

percebemos agora a edificação labiríntica dos desenhos traçados na pele.

deitada, acaba por adormecer para a construção de uma morte imaginária. é a invenção da palavra que prolonga o seu renascimento. o nascer luzidio da música. uma música sem voz. plenitude do silêncio onde tudo se repercute.

o corpo coberto pelos minerais levanta-se novamente para a dança.

recomeça assim o ritual da tua morte. feridas abertas na plenitude do êxtase.