Idalina Costa Santos

Que tinha mandado fazer um carimbo com o nome dela e que, lábios horizontais a mostrar o encaixe oblíquo de dentes contentes, É para si. 

Por isso me ligou a minha madrinha, porque o Sr. Francisco lhe oferecera um carimbo com o nome dela - Idalina Costa Santos. E seguiu-se o ritmo de compasso perfeito do que devia ser o tal carimbo no seguimento de almofada, papel, almofada, papel. Ouvi-o do lá de cá do telefone, trepidante de Idalina Costa Santos, Idalina Costa Santos. 

A minha madrinha sempre surgira assim, qual carimbo, a uma batida surgia um mundo, num processo em que não há processo, almofada e papel com tudo. Era assim. Eu longe, numa nudez de intimidade, e ela surgia. Em todo o lado, a Idalina, numa explosão, teimosa de inconveniência. 

Anónimo, o escritório do Sr. Francisco fede a uma idade sem princípio. Fede-me a minha madrinha Idalina ao mesmo. Diz ela que desde há quarenta e três anos a pôr carimbos. Ela, não o Sr. Francisco, que cada macaco no seu galho. De modo que uma vida cheia de batidas, almofada, papel, almofada, papel. Diz ela que não só batidas dessas, que muitas outras. Por mim, vejo-lhe a vida toda encaixadinha de mesmos, nem sequer a surpresa de ela surgir a explodir de um vácuo qualquer, porque o hábito de aparecer assim de surpresa. A vida encaixadinha de mesmos, de iguais, de carimbos. 

Mas dizia-vos que me ligou porque o Sr. Francisco, braço reto, esticado, na mão um carimbo, É para si. E o mel dos olhos, não para o Sr. Francisco, para o carimbo, a seguir as letras sóbrias de Idalina Costa Santos. Uma gratidão eufórica dos órgãos dentro dela tomou conta do momento. E os olhos tomaram a transparência e a paralisia das emoções fortes. Saiu-lhe um desconcertado Obrigada. Obrigada, disse-me. Obrigada. Muito obrigada. 

Que isso sempre foi, muito grata. Dizia-me que devemos agradecer a vida, mesmo que de carimbos. Mesmo que só batidas dessas. Inconveniente, a minha madrinha, não? 

Pátria, pouca terra (ou uma história que me contou o meu pai, alferes)

Santa Apolónia, guerra de África ser nossa.

Tem o peito em ebulição o alferes de convicções empurradas dentro por poderes que se não discutem por serem um murro na mesa. Temos noventa e quatro à nossa responsabilidade, diz um colega que aparenta os músculos flácidos de certeza de a responsabilidade ser do alferes do peito em ebulição.

No ar, só o redemoinhar sonoro do comboio a adivinhar Lamego e a saber o depósito que leva - noventa e quatro, nada prontinhos para a missão da pátria. A prontidão aqui é coisa que pouco importa, tanto faz se quer ou não. Vai. O nosso alferes decide a última bota a entrar na máquina, manda seguir.

Noventa e quatro, o alferes, o colega, o comboio, Lamego, a guerra, África nossa.

Com a voz pouco certa, o colega para o alferes Diz um que quer ir à casa de banho, Quem?, Um dos noventa e quatro, Pois que sim, que vá.

Quando no poder, mesmo que um subpoder, o corpo fica numa retidão inabalável, só o leve sobe e desce da cabeça, pois que sim, que vá, certo, certo de que à pátria nada se nega,  inquebrável, não moldável.

O comboio, Lamego, a guerra, África nossa.

Outro a pedir a casa de banho e Pois que sim, que vá. Seguro, o nosso alferes, apesar de o peito lhe dizer que o medo o invade ainda manso.

O comboio, Lamego, a guerra, África nossa, Santa Apolónia já longe.

E outro que à casa de banho. Outro. E outro. E outro. E assim outro e outro. Que sempre se sabe que as vísceras apertam quando poderes que se não discutem, de modo que uma certa compreensão demove o aço do nosso alferes.

Lamego, já depois de muitas horas esticadas pelo andar de pachorra do comboio.

Quantos homens, meu alferes?, sai do alferes um noventa e quatro que arrasta orgulho. Mandam sair os soldados da máquina e uma mancha menos densa do que em Santa Apolónia. Com isso, a retidão do alferes dobra-se um bocadinho, chega a balançar, o peito que teima em não inspirar.

Em fila, os soldados prontos para a contagem, um, dois, quatro, seis, oito... trinta. Trinta soldados, meu alferes. O peito teima na paralisia, mas nisto o colega de Lamego Quantos entraram no comboio?, Noventa e quatro, estremece o nosso alferes, e vai o colega Está ótimo, está ótimo, há quem tenha chegado com dez, bom trabalho. Embora ainda não certo, o corpo do alferes começa a tranquilizar-se.

Trinta soldados e o campo de treino de Lamego. Quem de noventa e quatro tira sessenta e quatro de vísceras frágeis fica com trinta.

 África quase nossa e vísceras apertadas. Que à pátria tudo se deve.

(Até as vísceras, alferes?)


Obediência 

Haviam-lhe dito que um descanso. E Pedro que sim, que uma paz, embora qualquer som, mesmo que só a antecipação, o arrastar miúdo que vem antes de falarem, o fizesse embater em estranheza. 

Na noite, ninguém que uma palavra. Percebera-o a um toque de batuta que ninguém deu, mas que é o que há quando a mínima suspeição. A busca azeda do fim em que se metera o avô findara. E que com isso um descanso. À reação de Pedro, uma mão toda decisão com um hipnótico, com um apagão. 

Acordara na manhã seguinte montada, igual. Gente como se marioneta, carros rotineiros, ponteiros no sentido comandado de sempre. E com isso a ida para a escola, como se dia. Como se dia, imagine-se. 

(O meu avô morre, procura-se na morte, e há quem coma, quem trabalhe, quem como se nada, como antes de tudo.) 

O absurdo, implodido em elasticidade, prolongara-se anos atrapalhados em anos. E nunca a certeza do que acontecera porque a mão em ordem com o hipnótico e com isso os músculos travados. E a manhã como se fosse possível voltar a ser dia depois de o avô. 

(E a terra? Que restos? Braços ainda que abraçar? Olhos que conforto?) 

Mais anos enovelados noutros numa incerteza de traça de ter de facto havido morte, porque só a ausência, só o nunca mais o ter visto, vendas, partilhas, uma força centrífuga em tios, primos. 

É hoje 8 de dezembro de 2013. Agora o corpo em resignação de uma escrita. Estático. Alguns movimentos desde 23 de março de 1997, mas só coisa de ir passando. Haviam-lhe dito que também Deus e que com isso alguma coisa, mas Pedro que Não, que Se Deus, refinadíssimo, a um deslize, criara a morte, por que motivo a destruiria? Se os despojos de um corpo criação Dele, por que motivo a reconstrução do que está dentro? Por penitência Sua?! E que fazer com o absurdo de tudo isso? 

(Avô?) 

Agora nenhuma paz, todos os sons. Com isso a escrita. 

(Des)sincronia 

Que tinha vindo do lado em que as coisas (não) são de facto, em que os contornos (pouco) exatos porque a criação, daí a festa, a ordem certa, certa, cega, cega, na fila para os braços à volta do corpo da cabeça que chegara. 

Um estremecer das unhas dos pés ao cimo estendia-se. Minto, não se estendia, tremia todo um com o susto de tantos dentes a afastarem lábios. Um, outro, outro e outro, num encaixe perfeito, arestas sólidas. Diferentes em tudo do sítio de onde viera, julgo, moldados, imitados, ao contrário de no outro lado, onde tudo único porque o espaço da invenção. 

Numa euforia estridente, quase em crise, juro-te, que deste lado, do real, sim, é que o queriam, que agora sim, um como os outros. Ah, sim, com isso a meta cortada de estar só. De modo que as felicitações, os dentes de arraial na infância, os braços à roda da cabeça entorpecida. 

Conto-te isto porque fui enchendo o balão de compaixão pelo homem a ponto de não conseguir agora sozinha, porque até na compaixão há diâmetro limite. Eu sentada, as pernas moles da surpresa, e isto tudo na minha sala, acredita. Conto-te como se agora, que é o que se faz quando a teimosia da memória, quando um guizo constante do que se passou. 

De súbito, volta-se e a indignação começa a inchar na multidão que ele, estou certa, não reconhece, porque as feições em pedra inerte de quem na indiferença. Dá as costas, o pescoço na sua missão de segurar a cabeça, a esforços sisifianos, decerto porque o desânimo da repetição dos outros aos outros, do real, corcunda de exatidões a uma medida certinha. Costas dadas porque, penso, a repugnância pelos braços de quem felicita a vinda do fantástico para o real. Estou certa de que lhe pesa a certeza de neste lado não poder ser por inteiro, de no despertar todos escorregarem para a indignação um dia. 

Eu de pernas e braços obedientes de gravidade. Já não bem neste lado, já um adormecimento. Sim, eu já no outro lado, penso. Ouves-me ainda? Dizia-te que eu já não aqui, de modo que a história só isto. E eu em preces para que o homem de novo no adormecimento porque a minha compreensão possível do fantástico como o espaço em que ninguém a sós. Ouves-me?