do lado esquerdo da minha avó

vovó teodora me ensinou a comer bolo com pimenta. também ela me ensinou que “país não é a pátria. o país é e é onde pisamos, o que plantamos e colhemos. onde pisamos é a união dos homens em torno da glória e a glória é comum a todos os seus. tudo é país, tudo é a glória. se um de nós não conhece a glória, a glória é de ninguém”. eu era muito pequena e pensava que a glória fosse uma mulher muito bonita e forte, uma mulher enorme. vovó era uma romena que conhecia intimamente a língua russa, coisa de um tio ou primo. conheceu vovô gheorghe no navio, como jack e rose, mas não como jack e rose, esse navio chegou intacto ao porto de santos. não se sabe muito mais que isso. nossa história é um tanto perdida. gosto de pensar que, ainda no navio, minha avó olhava as estrelas e pensava nas irmãs, tios, tias e mãe que deixou para trás, pensava nos gostos de sua terra, nas texturas e no peso da neve sobre os arbustos das pequenas frutas selvagens. embarcada, andava com os pés no chão e com os dedos na murada do navio. andando assim, trombou os dedos nos dedos do vovô gheorghe, um russo bitelo, bem apessoado, de cabelos arranjados para trás e olhos azuis. “parecia um peixe-espada tímido e brilhante” diria. gosto de pensar que vovô se apaixonou na trombada de dedos, mas não quis demonstrar. ofereceu o braço para conduzir a dama de volta aos aposentos. vovó abre uma grande lata de alimentos e tira de lá um pedaço do bolo que sua mãe fez para a viagem. pouca pimenta, uma pena. anda doze metros “vi que o senhor não comeu nada o dia todo”. vovô aceita e, de novo, trombada de dedos. fazem um cumprimento de camaradas, que hoje seria lido como um gesto sóbrio e de segredos amontoados, se sentam juntos num baú de um dos passageiros mais afortunados. vovó pergunta sobre como estavam as coisas nas paragens de vovô, vovô também. vovô pergunta se vovó está só, vovó também. vovó veio com um irmão e a irmã mais velha. vovô estava só. contavam já onze dias de viagem. na manhã seguinte, comeram mais do mesmo bolo, ao ar livre, mirando as águas tão calmas quanto geladas, encorpadas de funduras e músicas estranhas, paisagem feita e perfeita para pousar a insegurança, perder os olhos e as frases. avistaram o que parecia ser uma baleia. “talvez seja apenas um punhado de espuma” “é uma baleia, estou certa disso”. vovó estava certa. era uma baleia, uma cachalote morta. cercando o cadáver, um filhote cantava o despreparo, o desconhecimento da morte. a quem seguir agora? como saber a morte sem nunca ter morrido ou matado? vovô traça paralelos com a migração humana. “nossa mãe também está morta e não sabemos o que fazer. o navio e a repressão fazem por nós. nos empurram para outro chão. e choramos uma canção de exílio e de desesperança que ninguém, além de nós e das baleias, entende.” vovó se impressiona, pensa baixinho que esse homem é incrivelmente sábio, um mago dos paralelos. pensa que a sensação é exatamente essa. nossa terra matre ficou morta, para trás, boiando entre ódio e poder. o navio corre distâncias por nós, nos abriga e nos mostra outras formas de exílio. as crianças não sentem a distância se espichando. não compreendem que jamais voltarão a ver suas casas, seus animais. o piso frio e condescendente da embarcação ajuda os mais novos na anestesia afetuosa, reparadora. os dois choram, o navio se aproxima do cadáver e o filhote se retorce num salto extraordinário! chora. encara a todos. um por um, o filhote vai marcando com seu olho desesperado, todos os enxotados, os filhotes russos, romenos e poloneses aboletados na murada. naquela noite, vovó não dormiu. fechava os olhos e via o grande olho e a profundidade do abandono. vovô, também insone, chama vovó para uma volta. vovô fuma seu último punhado de tabaco russo. vovó dá um trago e tosse. estão sentados sobre uma peça de metal. tudo no navio é marcantemente grande, desproporcional ao antigo mundo, do tamanho das incertezas e saudades. vovô diz que não consegue tirar o olho do filhote dos pensamentos. vovó concorda, sofre do mesmo caso. um trapo de estopa voa e se prende no calcanhar de vovó. vovô o apanha e quando percebe, vovó está de olhos fechados, sentindo o cheiro do fumo como se reconhecesse aquele perfume, como se a essência a trouxesse um pouquinho de casa. vovô a beija. vovó corresponde e enfia as mãos no casaco do peixe-espada brilhante. eles se beijam sem pressa alguma, sem chão nenhum, sem mar, sem baleias, sem bolo, sem pão. amanhece mais uma vez. vovó veste o casaco de vovô. os dois informam a irmã mais velha de vovó que, sim, vão se casar assim que o chão brasileiro permitir. eu poderia dizer que naquele navio começou a minha história. não digo, porque isso não é verdade. essa história é da minha avó, teodora varsan e do meu avô, gheorghe diacov. nem à minha mãe, ana diacov, essa história pertence. talvez a história seja, em parte, daquele filhote de cachalote. talvez essa seja a história da glória, imensa e nobre mulher, sentada à mesa na são bernardo do campo de mil novecentos e oitenta, comendo bolo com pimenta, do lado esquerdo da minha avó.

não fale dessa mulher perto de mim - as piores canções sobre lembranças




fibrinas sangue plaquetas 

tudo duro num tipo de âmbar em processo

de fossilização de uma dor a casca da 

ferida - e quase escrevo casa da ferida - não 

é a ferida tampouco é a memória da ferida 

é o corpo num gesto bruto e lento na busca pela 

distância da memória celular do tombo 

é também a casca da ferida um escudo - e

quase escrevo estupro - você não me conhece

você nunca me viu nunca assoprou

uma ferida minha no entanto temos

tanto em comum fibrinas sangue

plaquetas - e quase escrevo punhetas -

aos sete caí de de uma árvore muito

muito amável sobrevivi apesar do

pouco corpo que ficou grudado no

cimento - e quase escrevo ciumento





=//=




existe

portanto na fotografia 

não para todos

a lembrança do momento fotografado

e a lembrança dos momentos que antecederam

a imagem

raramente uma das

personagens toca o momento

posterior e é tão natural e difícil para uns quanto

o ponto do espaguete 

posteriormente ao momento fixado no tempo

está o grande samurai da questão

e ele traz enrolada na espada uma

enorme lista de endereços

e nomes





=//=





não me lembro exatamente 

quando me apaixonei por você 

são tantos paralelepípedos até aqui e em

tão poucos toques palavras interruptores

sei que naquela tarde você disse

algo sobre uma espécie de lagarto

que grita enquanto come arregalou os

olhos pra falar em tom bestial 

ENQUANTO COME 

arregalei os olhos atrás do 

cardápio do boteco não me sentia

pronta para demonstrar reflexão

pedimos sopa húngara e aqueles pãezinhos

estranhos do cozinheiro lucas 

tomava minha sangria como uma criança

e você ainda em dúvida sobre o que beber

roubou um trago do meu copo

as sopas chegaram com os pãezinhos 

estranhos do cozinheiro lucas 

simulamos um encontro acidental de 

dedos na cesta de pães e você cantou 

baixinho um pedaço de unchained melody

VOU TOMAR COCA-COLA saiu da

mesa foi até o balcão passou na cozinha

falou com lucas que acenou pra mim

foi tudo tão rápido pagamos a conta

acho que você arrotou adeus, lucas

você me deixou em casa e tenho a 

forte sensação de ainda estar atrás do

cardápio completamente absorta com

a história do lagarto 

adeus, lucas, adeus





=//=





um pequeno golem

pensar que é possível sim construir

alguém partindo das memórias incorruptíveis

de um objeto de estima 

a última xícara de um jogo de chá que

ganhei de uma amiga distante

você suas delicadas linhas

douradas suas flores azuis na barriga você

seu vazio empoeirado seu jeito de acolher você

folhas de hortelã suas falhas nas flores de trás

sua orelha enorme você num gancho

enferrujado pregado na figueira invertida

meu pulmão esquerdo


capítulo 12 de Te amo um pouco


ernesto estava tão admirado com o piso, tão feliz com o resultado. – ernesto, um dia sua cabeça explode de tanto que engole o brilho do piso. – a mão pesada de ernesto no meu ombro. impressionantes desdobraduras que faço para impressionar ernesto. me custou três vestidos e meio. lâminas de mogno para agradar ernesto, a esplendorosa solenidade dos rapazes aplicadores de piso mogno, seus uniformes dum cinza gasto, bonés francamente alaranjados, o cheiro psicodélico da cola: três cisnes bastante calados e um pouco aflitos. tatiana, sobrinha de ernesto, tropeçou no antigo tapete, ralou a gigantesca testa e luxou um braço. está bem, com toda razão, mogno será. ernesto disse que se sente mais vivo agora. colírio, pilhas palito, aspirinas e enxaguante bucal. anotei e fui buscar na farmacinha enquanto os rapazes do mogno faziam piso. só no balcão me dei conta de que estava sem sutiã. isso é pecado mortal, passível de multa na cidade de ernesto. saí do local abraçada com a sacolinha que cobria exatamente undécimo do meu dorso – essa é a calçada que mais agrada a bexiga dos cães – pensamentos para enxaguar suspensão – “fique com o troco” que idiotice – nunca há poeira nas maçanetas dessa cidade. chego em casa e, de novo, me dou conta dos olhares. que inferno é esse que enxergam onde não há nada para ser encarado? devo amamentar todos os mamíferos adultos da sua cidade? a criatura que encara os bustos desassutianados é quem deveria ser punida. cedo. contrariada e faminta, cedo. vou ao quarto, tiro a blusa, sacudo os peitos antes de vestir meu nude color instrumento de tortura, visto a blusa e estou descente para o povo de ernesto. – tudo isso, senhor juiz, tudo isso por conta de uma testa que deveria ganhar seu próprio código postal! – nesse espaço, entre imposta mácula, indignação e ranger de dentes, o piso ficou pronto. agora era preciso arranjar um hotelzinho por perto, porque dormir com aquela química, ah, certamente afetaria os brônquios de ernesto. a nós nos reservei uma suíte no sidebyside, mas que surpresa, ernesto preferiu ficar, noitear com a química. ficamos. ficamos muito loucos. obviamente. os olhos espiralados de ernesto que come uma maçã verde como quem come vidro temperado. de costas, me arrasto pelo mogno, balbucio coisas sobre os balconistas da farmácia, sobre os dois laços nos cabelos azulados da mocinha que ficou com meu troco – qual é o plural de xadrez, ernerto? – tiro a blusa, brinco com meus pés, jogo o sutiã na rua. e o poste foi premiado. e lá estará meu sutiã, meu ódio e minha liberdade provisória, numa exposição, lembrancinha minha, para que cada um dos passantes tenha seu quinhão de assombro – cheguei para satisfazer sua cidade, ernesto! – a essa altura do campeonato, minha voz é um boto descontroladamente risonho, tento – dio, come ti amo, tento, non é possibile – tento – entortaram a tampa do nosso escaninho, querido. ernesto sabrim de azevedo!, venha ver a obra, venha ver a instalação artística – a artista pretende com isso chamar a atenção à coibição sulista, à libertação da mulher distraída – ernesto! – agora a artista irá chamar a ambulância, porque os brônquios de ernesto che odorano di vento, noi due innamorati, come nessuno al mondo –  


when doves cry - as piores canções sobre lembranças





numa diagonal do corpo

ligando o coração

ao ombro está a fronteira entre

uma baça lembrança do seu rosto e

a certeza de que estava garoando

em algum lugar do mundo


=//=


nada a não ser a força

de um instante acelerado

que atravessa os anos da minha vida

desamarra meus cadarços e me

faz encontrar lembranças no chão


=//=



uma lembrança mal alojada

jogada de qualquer jeito no destino

dolorosa ao sorriso como varicose

nas bochechas


=//=


você caminha por uma

lembrança ruim e seus braços

vão se descolando do corpo que lembra

é de tanta areia o caminho tanta

tanta areia você se aproxima de um 

coqueiro o único no caminho sem os

braços você se balança imitando o coqueiro

e já nem se lembra de como era estar 

agarrado à lembrança

é de tanta areia, querido

tanta tanta areia


=//=


recolhe gravetos

prepara uma arapuca na

memória sem se lembrar:

70% do corpo das lembranças

é água


the way we were - as piores canções sobre lembranças

um pequeno entulho na fotografia
daquele dia nós três e o pequeno
entulho atrás 
amontoar entulhos atrás das ocasiões de foto:

é isso que salva uma lembrança
não a foto

=//=//=

outro poema de natal 

minha mãe tem lembranças desde o 
berço se lembra da cor da madeira
da forma do lustre no teto da irmã
mais velha lhe dizendo coisas maldosas
da mamadeira de vidro
me lembro tão pouco da minha infância
e do pouco que lembro sou um vulto 
clandestino em sua própria fumaça de natal

=//=


não permita uma lembrança ser cruciante
o cérebro é feito de tão suave tecido
o fígado é mais grosseiro que a pele
beijos estalados das tias na infância
bolhas de coca-cola estourando 
no seu nariz o caminho de formigas no 
jardim a descoberta dos ovos
de lagartixa qualquer embrulho de natal
ou uma siririca
pois
meta a siririca bem nos ovos dessa lembrança

=//=

envelhecer uma lembrança no
carvalho curar a 
memória em suas próprias 
bactérias e fungos

=//=

um osso de
galinha na calçada
cheio de formigas um
gato no muro rente
ao osso uma criança atrás do muro
puxando o rabo do gato

rente ao osso
rente ao osso uma lembrança foi
desenhada e já formiga