Estou aqui sentado na minha casa

Estou aqui sentado na minha casa
Pedro Braga Falcão

Estou aqui sentado na minha casa
que é grande como uma mesa de mármore
tenho um pequeno espaço de trevas à frente
vejo que está cheio de mim   vejo que está
num canto aborrecido do meu desespero
está sentado na minha casa   prostrou-se
à minha frente e então não tenho outra vontade
que não de anunciar   sente-se amigo   sente-se
ao que vem   sou eu   disse-me   sou uma história
uma diligência   um mito   comes carne
perguntei lá de onde estava sentado   cada vez 
cada vez mais me parecia um trono   e ela
ela diz-me   tenho estepes e perco-me de vista
e eu estava aqui sentado na minha casa
de gestos contidos   sabes   como quando conquistei
Paris e dei dois pulinhos de emoção   contidos
como quando era criança e julgava que toda
toda a gente estava a olhar para mim e ainda pior
que afinal tinha passado desapercebido   dei
dei dois passinhos de emoção   rejubilei contido
e hoje passei o dia na minha mesa do tamanho
de um estádio de mármore e sussurrei
és tu   és tu aqui   mãe com nome de seita
estou disposto a matar por tuas mentiras
por exemplo   que sou teu   que me queres
lembras-te   quando me fazias sentar do outro
do outro lado da mesa enquanto me negavas
um beijo   lembras-te   Mãe Rússia   quando
à noite te pedia um sorriso sem dizer palavras
e tu quase me aconchegavas antes de apagar
antes de apagares   e então   estou aqui agora
sentado à espera de um botão   de um erro
de uma falha de comunicação   para fazer de ti
Terra das Terras   Monstro dos Monstros
uma mesa bem grande   de um rio ao outro
ah   estou aqui sentado na minha casa
à espera que não haja hoje paredes para ela
que se possa transviar   intuir   rasgar
e formar muros de pedra   de madeira
lembras-te   como aquele que destruíste
aquele pobre carrinho   aquele pobre trenó
de brincar em que me arrastava à espera de ti
à espera de uma mãe e quando já de noite
decidia que nunca iria tocar em bebida
já tu estavas sentada à minha frente e agora
que agonizo como um comum mortal que acreditou
em histórias   vejo tão claramente que quis o que quis
e prostrei a meus pés os meus inimigos   rijos
eram tantos como as estrelas do céu   ou mais
agora aqui deitado na minha casa   rodeado
por pessoas que me temem mas não me respeitam
como a Mãe Rússia e os seus cabelos de palha
e os seus cabelos de puta   agora aqui deitado
ou sentado na minha casa   recordo me
inflo-me   exalto-me   se fosse poeta seria capaz
de escrever tudo isto   subjuguei os outros
os outros que foram nossos   dei cabo deles
trucidei-os   desfi-los   arruinei-os
porque foram ainda por cima irmãos desavindos
e com o seu sangue fiz um risco na cara
e chorei pouco   ou melhor   nada   porque
porque desde que me deste cabo dos brinquedos
mãe   ando com desejo de invadir a Polónia
os Normandos   os Vikings   e os Sumérios
desde que me possa sentar de novo na minha mesa
com mármore de vinte e quatro quilates
e ter alguém à espera do meu nojo   isto é
do meu lamento profundo pelo passado
e pela esperança de um grandioso futuro
cheio de cadeiras e de olhares sérios e tristes
porque afinal   irmão   tive que vos destruir
para saberdes que sempre vos amei
aqui sentado na minha casa
de onde se vê sempre o sol morrer
e onde não há trevas que me cubram
apenas uma mesa enorme debaixo da qual
me escondo à espera que as bombas caiam
num outro país que escolhi sentado.

 

à dancinha macabra de Adolph Hitler quando tomou Paris e à mesa grandiosa de Putin.

A música é a de Wagner.

Perguntas-me o que é uma esfera

Perguntas-me o que é uma esfera
Pedro Braga Falcão

Perguntas-me   o que é uma esfera   e eu digo-te

depende da qualidade do som   isto é   quando é

quando é de manhã há sempre um halo de luz

da noite em que te encontraste com uma certa forma

como uma certa forma geométrica   entendo-te

consolo-te   digo-te   gostavas de escrever para todos

não é   gostavas que os teus ruídos fizessem

alguma forma de sentido para além da esfera

e vejo agora que te agrada o teu rosto

deformado nas mãos do metal   e sabes

também eu já sei que me escondo por ti

que te acuso dos meus segredos e os vomito

como nos quadros de uma exposição   entrando

dentro de uma alameda de plátanos que se dobram

para rezar   confrontando o altar com as suas sombras

que nos deixam um sacrifício profano   isto é

às portas do templo recapitulando cada geometria

como se soubéssemos o que é uma esfera   isto é

um círculo que se estende como a tua estatura

pequena   feita de pequenos saltos   frequente

como uma qualquer comparação sem a partícula como

ou uma merda dessas que se dizem na escola

de olhos vagos   macios   terrenos   co’a aspiração

a ser mais do que   mais do que   sabes

perguntas-me o que é uma esfera e eu

pobre de mim   acabo de pisar um palco

e descobrir que ter voz forte é apenas contingência

e que uma esfera é o que nos permite ver

para debaixo   o que está debaixo da máquina

a engrenagem que está debaixo e permite que haja

um pedaço de madeira a quem chamam palco   sabes

por isso é que qualquer grande tragédia tem

a forma de uma tragédia   isto é   um momento

em que alguém se lembra que está sobre um palco

e que a máscara   e que a pessoa   desatou a ser

um bocado da mão   um bocado do pé   um pedaço da boca

e ganhou a forma de uma lenda   de uma seta

e é por isso que qualquer pecado falha

como sempre falham as estrelas que nos enganam

como qualquer um que se preze até formar um gesto

perguntas-me   o que é um astro   o que um lírio

o que é um junco   respondo-te   se nunca viste uma esfera

é porque andaste distraída à espera de outra

de outra forma   e agora    agarra-te

porra   agarra e eu segurar-me-ei

a ti à tua voz pequena   sempre rouca

aos teus braços que não me podem segurar

e confiarei a minha solidão à tua velhice

que sempre acomete os plátanos e as lezírias

que sempre tomba como os gigantes nascidos

de pequenos vermes   mesquinhos até à sofreguidão das esferas.

O que é isso de gritarmos em uníssono

O que é isso de gritarmos em uníssono
Pedro Braga Falcão

O que é isso de gritarmos em uníssono   será
dizer-te nos lábios   isto é   falar encostado
à tua boca    ou deixar que nos comovam
o que é isso   e  agora que baixaste os rios
quantos sulcos lavram a  nossa margem    e já viste
ontem ainda era de noite e falávamos
de outra coisa   o que é isso   não há voz que caia
quando nunca erigimos montes que se possam voar
será por isso que te enterras    que nos enterramos
mas por enquanto ainda nos seguramos   ainda
ainda nos segurámos numa vogal aberta
será por isso que por vezes dizemos a mesma
a mesma coisa   será por isso que gostamos
da uma mesma posição    do nosso lado da cama
o que é isso de nos amarmos durante a chuva
isto é    quando tudo está molhado    mesmo quando
não troveja um único céu     e ainda assim
procurando o meu desconforto   mesmo fingindo
que nunca dizemos a mesma coisa   ou seja
nunca ouvimos a música alto da mesma maneira
ou que nunca disseste     gosto que me doam os ouvidos
sabes    aquele pecado de rebentar as margens
enquanto as encurtamos nos teus lábios
o que é isso de gritarmos em uníssono
ou parados   que é o mesmo que dizer
que é isso de removermos as pedras     de encontrarmos
consolo em ver como fogem as formigas    lembras-te
como naquela garagem sem paredes    ou seria
um tecto sem paredes   lembras-te    quando as formigas
faziam um carreiro e nos deixavam tontos
ao menos aí estava sozinho como sempre estivemos
o que é isso de gritar enquanto se suspira
o que é isso de subir o elevador da Glória
à espera que perca a cor e não o tempo
deve ser porque me tomaste por tolo    não é
não é que esta não seja uma outra forma de estar parado
mesmo quando nos tomam por outra coisa    e não será por isso
que um círculo é uma espera em movimento
e gostei quando disseste esfera como se me amasses
ao ponto de me reconheceres nessa palavra.

Nem eu me lembro do que a palavra quer dizer (vox propria)

Nem eu me lembro do que a palavra quer dizer (vox propria)
Pedro Braga Falcão

Lugares fugazes   perguntas tu   e nem eu

me lembro do que a palavra quer dizer

é difícil demais   di-la outra vez

vejo que agora apertaste os lábios

e escorregaste pelas sílabas abaixo   lugares

lugares nunca foi uma palavra difícil

fazem os sítios quando estamos neles

desabrocham   e não é o que estás a pensar

fazem flores sem que haja tempo

e comemoras aquele dia em que nos chegámos

e perguntaste   é sobre o quê?   é sobre o quê?

e eu fiquei gelado   parecia um monte

e respondi-te   sei que não é sobre isto

é sobre alguma coisa que foge   alguma coisa

que entra   são os pesadelos?   e eu respondi

bebe este copo e diz-me se nunca quiseste fugir

hesitaste e a partir daí soube que era tempo

de fugirmos para o mesmo sítio   eu para ti

tu para mim   e ainda me perguntaste

tens a certeza   pisquei-te o olho   saboreei-te

e por fim foi num sussurro que a minha voz

finalmente fugiu   sabes   meu amor

há quanto tempo nos conhecemos   foi então

que os lugares se fizeram num pequeno poço

enchêmo-lo de água transbordante como tu

e logo soube que frases como és a mulher

ou és a mulher da minha vida tinham pouco brilho

mais valia fugirmos daqui para fora   juntos

fugirmos um do outro   mas muito juntos

vamos deixá-los a pensar no desamor

enquanto nós nos encontrámos no metro

tu sem perceberes nada do que eu dizia

e eu ainda melhor   percebendo quase tudo

até o teu sorriso   e olha lá   afinal

lugares fugazes nem era demasiado duro

ou pelo contrário era um bosque cheio

de um pequeno pinheiro que nos suplicava

mantém-te aqui   ou melhor   fiquem aqui

ainda hoje não tive água com que nos chova

e tu disseste   mas afinal isto é uma história

daquelas que contaremos aos nossos filhos

e a resina ficou numa sombra da caruma

e saltou o chão e saltaram os ecos

que entretanto ficaram nos teus olhos   olha

disseste-me tu   tu nunca dirias isto mas disseste

olha   porque acham que todos os poetas

hão-de ficar nesta floresta   quem és   serás

serás tu ou o lugar de um pinheiro   olhei

e logo dos teus lábios desceu um rio e nele

fiz um filho que nasceu até aqui

até de mansinho   onde os pinheiros escutam

uma luz que passa apesar deles.