A loucura de Nietzsche

Nietzsche com a Mãe, Franziska Nietzsche, depois do colapso mental do filósofo

Texto revisto significativamente a 26 de agosto de 2024.

Friedrich Nietzsche colapsou mentalmente no início de janeiro de 1889. Encontramos já, porém, vestígios de loucura num rascunho de carta[1] de 25 de dezembro de 1888 para Cosima Wagner[2]— entre outras coisas, assina «Der Antichrist» —, mas a queda, abrupta e sem retorno, na insanidade mental iniciou-se a 30 de dezembro e acentuou-se a partir de 1 de janeiro, a 6 deste mês escreve a sua última missiva, enviada a Jacob Burkhardt (historiador da arte, antigo colega admirado na Universidade de Basileia). No último dia de 1888, lamenta desconhecer a sua morada. Três dias depois, conta-se que terá protegido dos açoites um cavalo no meio da rua, caindo no chão desamparado e lavado em lágrimas logo depois, sendo transportado para a modesta pensão da praça Carlo Alberto, em Turim, pelo seu hospedeiro, Davide Fino. Este episódio, menos ou mais efabulado, pouco importa, recorda-nos que os cínicos gregos eram sobretudo criticados por misturarem as formas humana e animal, ignorando os limites que supostamente protegem a nossa espécie da dissolução (na época, a moral prescrevia mais o ser do que o dever ser).

Entre 3 e 7 de janeiro, Nietzsche fecha-se no quarto, alguns pensionistas dizem tê-lo ouvido vociferar em longos monólogos palavras incompreensíveis ou ensaiar cantos e improvisações dissonantes ao piano (talvez um jazz antes do jazz). Durante este período, escreve várias cartas aos poucos amigos que ainda julga ter (Meta von Salis, Georg Brandes, Paul Deussen, Malwida von Meysenbug, Franz Overbeck, Heinrich Köselitz, Erwin Rohde, Heinrich Wiener, Jacob Burkhardt), mas também a Cosima Wagner, ao Rei Umberto ou ao Cardeal Mariani. Assina com «Nietzsche Caeser», «Dionysos» ou «Der Gekreuzigte» (O Crucificado, Nietzsche foi sempre ambivalente relativamente a Cristo, admirava o revolucionário, criticava o moralista). Imagina encontros com o Papa, Príncipes ou heróis históricos. Julga ter força geopolítica para sacudir a Europa inteira, refazer o mundo. Quer nomear os redatores-chefes do Journal des Débats e do Journal des deux Mondes, ambos franceses (cultura que sempre admirou). Assegura que os seus livros Assim Falou Zaratustra e Ecce Homo salvarão o mundo ou fulminarão quem os ler sem preparação.

Como acabei de dizer, a 6 de janeiro de 1889 escreve ao seu antigo colega Jacob Burckhardt, começando por confidenciar-lhe que «preferia muito mais ser professor em Basileia do que Deus» (zuletzt wäre ich sehr viel lieber Basler Professor als Gott), acrescentando que, afinal, é Victor Emmanuel; mais, reconhecendo sentir alguma vergonha, parece agora não ter dúvidas de que, no fundo, é todos os nomes da históriaWas unangenehm ist und meiner Bescheidenheit zusetzt, ist, dass im Grunde jeder Name in der Geschichte ich bin»). Esta dispersão onomástica, laceração dionisíaca da identidade (preparando o mergulho no «Uno primordial», conceptualmente congelado desde O Nascimento da Tragédia, 1872), já se manifestara numa carta de 3 de janeiro a Cosima Wagner. Quase a terminar a missiva endereçada a Burckhardt, sentencia a supressão de Wilhelm Bismarck e todos os antissemitas.

Ao ler a carta, Burckhardt temeu que Nietzsche houvesse perdido a razão e avisa um amigo comum, Franz Overbeck, que depois de se aconselhar com o diretor clínico do hospital psiquiátrico de Basileia decide resgatá-lo de Itália. No regresso a Basileia é, primeiro, internado na clínica psiquiátrica da cidade, seguidamente na de Iena. O diagnóstico, consensual, vai no sentido de uma paralisia geral («desordem mental devido a uma paralisia», está escrito na ficha clínica) provocada pela sífilis (uma bactéria patogénica, capaz de ficar latente durante mais de 20 anos, cujo antídoto só será descoberto em 1929). Nietzsche deixou o hospital a 24 de março de 1890, ficando ao cuidado da mãe até julho de 1897 e depois, até à sua morte (25 de agosto de 1900), ao da sua irmã (Elisabeth Förster-Nietzsche, 1846-1935, antissemita, nazi e falsificadora da obra do irmão, orientando-o para o supremacismo ariano), no Nietzsche-Archiv de Weimar. Num certo sentido, a loucura nietzschiana prolongou-se numa receção hiperbolizada e instrumentalizada: a sua irmã, os nazis, Hitler, os fascistas italianos, as fatwas comunistas… Enquanto, não o esqueçamos, Nietzsche admirava Voltaire e Stendhal, não Rousseau ou Hobbes.

A queda na loucura alimentou várias conjeturas, algumas assemelhando-se a teorias da conspiração, outras baseadas em dados clínicos, mas por detrás dos dissensos (sífilis, psicose, envenenamento lento, descompensação religiosa-moral, preço a pagar pela fecundidade impressionante de 1888 — escreve, de um fôlego, O Caso Wagner, Nietzsche Contra Wagner, O Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, Ditirambos a Dioniso)[3] — há uma certeza: a loucura contribuiu para a fama do autor (a loucura é magnética, sobretudo postumamente). Poderia ter sido diferente? Talvez, mas para isso Nietzsche deveria escrever e pensar menos penetrantemente, a sua genialidade (arrisco utilizar este termo) salvou-o da pequena loucura do «maluco da aldeia» ou do burocrata académico cimentado na repetição, mas não o livrou da grande loucura dos génios. E àqueles que insistem em ver nos títulos dos capítulos «Porque escrevo livros tão bons» e «Porque sou um destino» (Ecce Homo) a megalomania de um sobrestimado, talvez se deva responder que não passam do efeito de uma «razão ardente», como lhe chama Eduardo Lourenço, «para a qual não há “acontecimento em si”, mas uma pluralidade de “sentidos”»[4]. Ou atender, respeitando-o talvez mais do que merece, ao que o seu amigo Heinrich Köselizt (Peter Gast) disse: «Nietzsche tinha o direito de ser megalómano porque era brilhante». Ou convocar a apologia da loucura lúcida de Erasmo de Roterdão. Ou, ainda, recordar o saudoso Fernando Belo, que num dos últimos textos que escreveu assegurava que quem se cansa dos reconhecimentos toscos, que só servem para consolidar a razão tribal, e continua a viajar, «viaja por sendas que não existem ainda»[5]. De qualquer forma, Nietzsche sabia que muitos se interessam mais pelo autor do que pelos textos (ele próprio defendia a importância indelével da biografia para a interpretação da obra)[6], e culminar na loucura alimenta, como disse, quase sempre o culto da personalidade, uma santidade sem Deus, neste caso.

Das diferentes leituras que, sem dúvida, podemos fazer da loucura de Nietzsche, umas centradas na linha clínica (psicanalítica ou neurológica), outras na hermenêutica (interpretação dos discursos, com ou sem biografia à mistura), Michel Foucault e Pierre Klossowski são porventura os autores que mais me estimulam a pensar. Os impulsos vitais de Nietzsche expostos naquilo a que se decidiu chamar «cartas da loucura» (dezembro de 1888 a Janeiro de 1889), autorizam Klossowski a falar de festa sacrificial da dissolução do sujeito Nietzsche: em Turim, o seu mundo é feito de intensidades inconsequentes, que só ganham alguma lógica nas interpretações dos destinatários; a estabilidade dos signos desapareceu, quase tudo o que está escrito é plurissignificativo.[7] Esta leitura permite a Klossowski distinguir a loucura nietzscheana da hölderliniana: «Por se tratar de uma “dissolução jubilosa”, a euforia não poderia durar para Nietzsche tanto quanto a alienação contemplativa de Hölderlin: ele foi criado pela dor num lugar alto de paz e esquecimento, no qual era constantemente visitado por imagens silenciosas com as quais dialogava na mesma linguagem simples, calma e melodiosa. O silêncio dos poemas da “loucura” de Hölderlin opõe-se ao silêncio ameaçador de Nietzsche, o preço da explosão histriónica em Turim.»[8]

Acrescente-se, um pouco a contrapelo, que pode ter sido o estilo de pensamento de Nietzsche, que alguns veem como a causa da loucura, a, paradoxalmente, adiar a tendência biológica para a dissolução. O seu estilo permitiu-lhe construir uma obra, apesar da iminente catástrofe que sempre acompanhou a sua fenomenologia da vida humana, passada, presente e futura. Nietzsche, contra Freud (passe o anacronismo), entende, n’O Nascimento da Tragédia, a loucura de Hamlet como o resultado da certeza cruel de que o seu pai foi envenenado pela sua mãe e padrasto. Não são as dúvidas que enlouqueceram Hamlet, mas a certeza do terrível homicídio. Se esta tese estiver correta, as dúvidas começam a enlouquecer mais cedo, mas não aceleram o colapso. As certezas alimentam durante bastante tempo uma lucidez, por vezes furiosa, que redundará, como um relâmpago, na queda fatal (a súbita passagem da escrita clara, embora sentenciosa, de 1888 à gaguez mental do início de 1889).

Por seu turno, Foucault, porque analisa a loucura do ponto de vista dos «sistemas de pensamento», e consequente organização sociopolítica, e dos «modos de discurso», atendendo ao caso particular de Nietzsche (também de Goya, Van Gogh, Artaud ou, entre outros, Hölderlin), paradigma do filósofo revolucionário (talvez, de acordo com Foucault, malgré lui) que marcou a mutação (assegurada pela sua obra mas igualmente por aquilo que estava à volta e fora dela) do sistema de pensamento e regime do discurso filosófico.[9] Refira-se, dando-lhe a merecida importância, que pôr a loucura na história, condicionada pelo tempo e pelo espaço, significa retirar-lhe uma ontologia que a psicologia positivista nascente lhe tinha conferido durante o século xix. Ernst von Feuchtersleben, tanto mais importante quanto influenciou diretamente os trabalhos de Sigmund Freud, traduziu, em 1845, a loucura pelo termo mais técnico de psicose, que subsumia três tipos particulares de loucura: a esquizofrenia, a paranoia e a psicose maníaco-depressiva, tudo enquadrado numa grelha observacional e conceptual de diagnóstico. Freud recuperou o termo para, em 1894, designar a construção inconsciente de uma realidade alucinada. Tratava-se, pois, de uma disfunção mental do sujeito, pouco, muito pouco, influenciada pelo exterior, isto é, pela história.  

Grosso modo, Foucault lê a loucura de Nietzsche em registos diferentes na Histoire de la folie à l'âge classique, 1961 (História da Loucura na Época Clássica) e num manuscrito de 1966, Le discours philosophique (O Discurso Filosófico). Entre os dois textos não há verdadeiro antagonismo, mas as mudanças do primeiro para o segundo permitem compor uma leitura do pensamento nietzschiano mais abrangente e profunda. Na História da Loucura, Nietzsche serve — depois de mostrar como se alterou a relação entre a loucura e a normalidade, sobretudo discursiva — para demonstrar que nos primórdios da pós-modernidade desapareceram as passagens entre a loucura e a obra, agora formas heterogéneas, incomensuráveis, privilegiando-se a racionalidade lógico-explicativa. No Discurso Filosófico, pensa, já como pós-estruturalista, a mutação do modo discursivo próprio (historicamente próprio, não essencialmente próprio) à filosofia instaurado por Descartes. O discurso filosófico deixa de procurar a verdade, assente em «ideias claras e distintas» descobertas por um eu impessoal, e abre-se a uma subjetividade (não kantiana) capaz, como acontece em Nietzsche, de usar, com objetivos mais performativos do que constativos (influenciando ou manipulando mais do que revelando ou explicando), diferentes modos discursivos — já não se distinguindo substancialmente dos científico, literário ou religioso — para diagnosticar o presente. Projetando-se, assim, uma mutação que parece conduzir à morte da filosofia porque permite, contra a História da Loucura, que a loucura incendeie o discurso filosófico, como sempre esteve autorizada a fazê-lo com poesia e a religião. Este desvanecimento do discurso filosófico permite a Foucault defender que Nietzsche «anuncia uma nova manhã». Abertura para outras possibilidades de pensar (o intempestivo observando criticamente o tempestivo), mantendo, porém, o mito de que há algo mais fundo, mais arcaico do que o histórico (a ideia de absoluto é um dos últimos totens, talvez o mais resistente porque provém de um instinto, e desejo, de transcendência). Influenciado por Nietzsche, Foucault quer ir mais longe e fazer coincidir o discurso filosófico com uma «etnologia do imanente».

História da Loucura:

Neste ensaio (no qual experimenta um estruturalismo que engloba a história e a filosofia, a que chama «arqueologia»), Foucault mostra como a loucura, o reverso da razão, começou por ser recebida no Renascimento enquanto esplendor da imaginação; excêntrico, o louco era uma figura do limiar. Um limiar do próprio humano, Hieronymus Bosch denunciava o verniz frágil da racionalidade que nos cobre. Os passageiros loucos (para Foucault, citando Sebastian Brant no capítulo inicial da História da Loucura, que escreveu sobre o tema no final do século xv, muitos viajavam em navios — reais ou imaginários, há quem defenda que foi sobretudo uma figura literária —, fretados pelos governantes, mendigando um porto que não os recambiasse para o mar, na época um utopos — não-lugar —, que parecia ser o sítio adequado para o outro humano, o da noite, opaca, perigosa e misteriosa; outras figuras da loucura, como no quadro A Nave dos Loucos, pareciam um prolongamento maligno da ordem estabelecida) exibiam a porosidade que facilitava a passagem entre a razão e a loucura. Com Erasmo de Roterdão e Montaigne, essa denúncia foi esbatida e o pesadelo do reino do Caos substituído em grande parte pela ironia. Mas o mais importante é que a época Clássica quis varrer de uma só vez por todas as ambiguidades perturbadoras, e constrangedoras para o eterno narcisismo humano, inventou e justificou o grande enfermement (encerramento): internaram-se os loucos, os mendigos, os vagabundos, os delinquentes, os pobres... A época Clássica, reino da razão, desmistificou e criminalizou a loucura e outros comportamentos desviantes, substituindo a distância respeitosa para com o sombrio por medidas administrativas higienizantes ou purificantes, dessacralizou a loucura e fez dela um problema jurídico e de saúde pública que, a favor da «ordem social», impunha construir cercas altas, supostamente protetoras, não fosse uma epidemia de anormalidade propagar-se incontrolavelmente.

Todavia, nesta época só se é louco «na medida em que a [nossa] loucura não se esgota na verdade do louco. É por isso que, na experiência clássica, a loucura pode ser simultaneamente um pouco criminosa, um pouco fingida, um pouco imoral, um pouco razoável também[10] Isto deu ao louco uma liberdade ambígua: a de ser livre mas investido de responsabilidade. Contra esta contradição, percebida como injusta, o Iluminismo nascente decidiu encerrar os loucos para que pudessem viver em liberdade sem os riscos da responsabilidade: «liberta-se [o louco] da familiaridade com o crime e o mal, mas para o encerrar [enfermer] nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é totalmente inocente no absoluto de uma não-liberdade»[11]. Por isso, «O louco é agora totalmente livre e totalmente excluído da liberdade[12] Ei-lo alienado, ensimesmado na sua liberdade e na sua verdade, sem exterior. Assim se compreende esta sentença de Foucault: «A loucura clássica [do final desta era] pertencia às regiões do silêncio[13] Isto enquadra a censura cartesiana à loucura, ajudando a excluí-la da filosofia: a vontade, e necessidade, da verdade torna impossível o lirismo e os paralogismos (margens impuras do logos). É isso que defende nas Meditações Sobre a Filosofia Primeira (1641). Para ele, o erro é possível e, até, legítimo (resulta da nossa condição dual: corpo e alma, sonho e lucidez). Mas não a desrazão, o louco não pode (porque não consegue percorrer o caminho da verdade) filosofar.

Este paradigma racionalista alterou-se nos séculos xviii e xix, a loucura adquiriu paulatinamente uma linguagem na qual podia falar. Foucault dá o exemplo de Le neveu de Rameau de Denis de Diderot (1762-73) e da produção literária do Frühromantik alemão (uma constelação que se inicia com Goethe, Schiller, Wolf, Schelling, Fiche… e culmina nos irmãos Schlegel, Novalis, Fichte ou Schleiermacher). A linguagem passou a ser a do «fim último e do recomeço absoluto: fim do homem que se afunda na noite, e descoberta, no fim dessa noite, de uma luz que é a das coisas no seu primeiríssimo começo.»[14] Com isto, diz Foucault, o louco redobra o seu poder de nos fascinar, a sua linguagem continua sem poder explicar as figuras invisíveis do mundo, mas assume a revelação das «verdades secretas do homem»[15], e «ele transporta mais verdades do que as suas próprias»; por isso, «do homem ao homem, o caminho passa pelo homem louco[16] Neste sentido, as características dos autores — seja a melancolia de Swift, o delírio maníaco-depressivo de Rousseau ou a loucura de Torquato Tasso — pertencem às suas obras.

Relativamente a Nietzsche, que diagnostica e instiga, com Van Gogh, Goya e Artaud, ao fim da modernidade racionalista — quando o homem parece desaparecer do primeiro plano a favor da linguagem —[17], a História da Loucura utiliza-o para interpretar a loucura como «ausência de obra»[18]. A primeira semana de janeiro de 1889 demonstra a impossibilidade de Nietzsche prolongar a sua obra, ele atingiu o limiar a partir do qual reina o silêncio ou as gesticulações incongruentes. De igual modo, Van Gogh e Artaud sabiam que a loucura os impedia de realizarem novas obras, ou, sequer, de reconhecer as antigas. Mas, nos exemplos que apresentei, já antes do colapso nietzschiano a possibilidade de enlouquecer alimentava o receio da dissolução do eu. Se para Nietzsche, diz Foucault, não há interpretações fechadas — sendo a filosofia uma espécie de «filologia suspensa» —, é também por vislumbrar um ponto de não-retorno, no qual um absoluto seria reificado à margem de qualquer imanência, um misticismo tomaria conta da hermenêutica. Assim, num artigo de 1967, «O que está em causa no ponto de rutura da interpretação, nesta convergência da interpretação em direção a um ponto que a torna impossível, poderá bem ser qualquer coisa como a experiência da loucura.»[19] Regressemos, porém, à História da Loucura para recuperar uma das suas principais teses: «não interessa muito saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, na humildade de Van Gogh a voz primeira da loucura. Só há loucura como instante último da obra — esta repele-a indefinidamente para os seus confins: onde há obra, não há loucura»[20].

O Discurso Filosófico:

O capítulo onze deste livro póstumo serve para nos informar de que a multiplicação dos heterónimos nietzschianos «indicam o estilhaçamento do sujeito filosofante, a sua existência múltipla, a sua dispersão por todos os ventos do discurso.»[21] E isto vai provocar uma mutação (mutation) na relação entre o discurso filosófico e quem o enuncia, abrindo para a «possibilidade do filósofo louco[22] «Com Nietzsche, continua Foucault, a decomposição do discurso filosófico deixa-o desprotegido e indefeso contra a loucura. Esta tem agora a possibilidade de o incendiar, tal como pode incendiar a fúria dos poetas, o delírio dos tiranos, a embriaguez dos homens de Deus»[23]. Assim, a incomensurabilidade entre obra e loucura da História da Loucura é agora substituída pela abertura da filosofia à loucura. A partir disto, é legítimo vermos na ideia nietzschiana de grandeza, cujas primeiras manifestações remontam pelo menos à segunda metade da década de 1870, partículas de loucura fornecendo aos textos uma força performativa e uma inteligibilidade outras. Podemos, inclusive, perguntar-nos se Nietzsche teria sido capaz de escrever com tanto fulgor Assim Falou Zaratustra (1883-85) ou Ecce Homo (final de 1888) se não fosse já um pouco louco. São, portanto, novas condições de possibilidade filosóficas que Foucault descobre em 1966. Como veremos na citação que se segue, a loucura que estava autorizada a fazer parte do lirismo poético, como em Hölderlin, passa agora a poder habitar na filosofia: «Nas últimas cartas de Nietzsche, na convocação dos soberanos, no postal a Strindberg, na mensagem final a Peter Gast, é, de facto, o pensamento de Nietzsche que se afunda. Mas podemos reconhecer aí os limites da sua filosofia — mais a sua suspensão do que a sua interrupção —, e de, a partir de agora, estarmos dispostos a perguntar a toda a loucura não só o que pode incluir de poético, mas o que pode, no seu abismo, enunciar de filosófico, é um sinal de que o discurso filosófico se desenrola de acordo com um novo modo de ser e se organiza de acordo com um novo regime. “Cantai-me um cântico novo, o mundo está transfigurado”»[24].

Esta posição é tanto mais marcante quanto n’As Palavras e as Coisas (publicado em 1966, mas redigido um ou dois anos antes) a loucura era entendida diferentemente. Na mudança da episteme do homem para a linguagem, Foucault refere que sendo o homem finito, ao «chegar ao cimo de toda a palavra possível, não é ao âmago de si mesmo que ele chega, mas à beira do que o limita»[25]. Antonin Artaud e Raymond Roussel testaram os limites da literatura, no primeiro a linguagem incapaz de discorrer remete-se «ao grito, ao corpo torturado, à materialidade do pensamento, à carne»[26]; no segundo, «a linguagem, reduzida a pó por um acaso sistematicamente preparado, conta indefinidamente a repetição da morte e o enigma das origens desdobradas.»[27] O limite da linguagem manifesta-se no interior da loucura ou de qualquer coisa de mudo, de insignificante (não-significante). Em três autores — Kafka, Bataille e Blanchot —, essa experiência do fim da linguagem conduziu à experiência da morte, do indecidível e da repetição obsessiva sem fugas. Portanto, n’As Palavras e as Coisas, trata-se da finitude da linguagem e não, como no Discurso Filosófico, de desvanecer os limites da linguagem para que possa acolher a loucura. Assim, este livro póstumo propõe o enriquecimento das possibilidades de sentido, acolhendo, quase paradoxalmente, as margens do sem-sentido.

 

Bibliografia

BELO, Fernando, «Todos nascemos loucos, alguns mantêm-se», in Electra 4, dezembro 2018, pp. 110-111.
FOUCAULT, Michel, As Palavras e as Coisas, trad. António Ramos Rosa, Lisboa: Edições 70, 2022 [1966].
FOUCAULT, Michel, Dits et écrits, 2 vols. Paris: Gallimard/Quarto, 2001.
FOUCAULT, Michel, Histoire de la folie a l’âge classique, Paris: Gallimard, 1972 [1961/1964].
FOUCAULT, Michel, O Discurso Filosófico, trad. Victor Gonçalves, Lisboa: Edições 70, 2024 [1966, póstumo, publicado em 2023 pela Gallimard/Seuil com um extenso aparato crítico da responsabilidade de François Ewald, Orazio Irrera e Daniele Lorenzini].
KLOSSOWSKI, Pierre, Nietzsche et le cercle vicieux, Paris: Mercure de France, 1969.
NIETZSCHE, Friedrich, Werke: kritische Studienausgabe, 15 volumes, Munich-Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1999.
NIETZSCHE,   Friedrich, Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, 8 volumes, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986.
VARTZBEL, Éric, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche», in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27.

[1] Traduzimos os documentos epistolares da Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986.
[2] Esposa de Richard Wagner. Nietzsche conviveu intimamente com a família Wagner quando foi para a Universidade de Basileia como professor de Filologia Clássica em 1869. Os Wagner vivam exilados em Tribschen, no catão de Lucerne, e acolheram Nietzsche como se fosse mais um filho.
[3] O artigo de Éric Vartzbed, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche» (in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27), permite enquadrar o problema e está disponível online.  
[4] «Introdução a Michel Foucault«, in As Palavras e as Coisas, p. 10.
[5] Electra 4, dezembro 2018, p. 11.
[6] «Conto, simplificando-a, a história destes filósofos [Tales, Anaximandro, Heraclito, Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates]: só quero extrair de cada sistema o ponto que é um fragmento de personalidade e pertence à parte do irrefutável e indiscutível que a história tem de preservar». (Werke: kritische Studienausgabe, 1, pp. 801-802). Em Para a Genealogia da Moral II, § 7, centra a análise noutro campo: o do casamento. Nenhum grande filósofo foi, diz, casado, é, aliás, impossível imaginá-los assim (no panteão de pensadores celibatários estão, entre outros, Platão, Descartes, Schopenhauer e Kant). No § 8 da mesma obra, elogia a vontade de silêncio e um timbre de voz suave. Pouco depois, concentra-se no recato, os filósofos detestam mulheres, glória e príncipes.
[7] Cf. Nietzsche et le cercle vicieux, p. 356.
[8] Idem, pp. 355‑356.
[9] Esta tese está particularmente bem expressa em O Discurso Filosófico.
[10] Histoire de la folie à l’âge classique, p. 635.
[11] Idem, p. 636.
[12] Ibidem.
[13] Idem, p. 637.
14] Idem, p. 639.
[15] Idem, p. 640.
[16] Idem, pp. 640 e 649.
[17] É célebre o final de As Palavras e as Coisas, no qual Foucault arrisca dizer que «O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim.» (P. 497).
[18] Podemos deduzir que Foucault não nega que nestes autores a loucura faça parte das suas obras, mas apenas ao nível da receção, são os leitores que incluem a loucura terminal deles nos seus escritos prévios. (Cf. idem, pp. 661-62).
[19] Michel Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx» [1967], in Dits et écrits I, pp. 592-608. O texto foi lido e discutido no Colóquio de Royaumont de 1964.
[20] Histoire de la folie à l’âge classique, p. 663.
[21] O Discurso Filosófico, p. 151.
[22] Ibidem.
[23] Idem, p. 152. No aparato crítico da edição da Gallimard/Seuil, há a seguinte nota importante redigida pelos editores: «a “possibilidade do filósofo louco” de que falava Foucault em 1963, no seu ensaio sobre Georges Bataille, foi, de facto, (re)aberta por Nietzsche: “É exatamente o inverso do movimento que sustenta a sabedoria ocidental desde Sócrates: a linguagem filosófica prometia a esta sabedoria a unidade serena de uma subjetividade que triunfaria nela, tendo sido inteiramente constituída por ela e através dela. Mas se a linguagem filosófica é o que repete incansavelmente o tormento do filósofo e lança ao vento a sua subjetividade, então não só a sabedoria já não pode valer como figura de composição e de recompensa, como se abre inevitavelmente uma possibilidade no fim da linguagem filosófica [...]: a possibilidade do filósofo louco. Quer dizer, encontrar, não fora da sua linguagem (por um acidente do exterior, ou por um exercício imaginário), mas no seu interior, no âmago das suas possibilidades, a transgressão do seu ser filósofo» (Michel Foucault, «Préface à la transgression», Critique, 1963, [Dits et écrits I, pp. 261-278]).
[24] Idem, pp. 152-153. Foucault cita uma carta de Nietzsche de 4 de janeiro de 1889 a Heinrich Köselitz (Peter Gast), Turim. A carta completa termina depois de «transfigurado» com «todos os céus se alegram» e é assinada por «O Crucificado»: «Singe mir ein neues Lied: die Welt ist verklärt und alle Himmel freuen sich. Der Gekreuzigte.» (Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, p. 575).
[25] P. 493.
[26] Ibidem.
[27] Ibidem.

Livros do Ano 2023

Viajei muito este ano e li muito erraticamente, com aquele espírito hesitante que a deslocação pode causar: é algo que perturba uma certa impressão de rotina de que normalmente depende a minha atenção de leitora. Observo, no entanto, que isso me devolveu uma certa urgência de ler, uma certa paixão desorganizada pelos livros. A desorganização não é necessariamente confusão e, de qualquer forma, sou uma daquelas pessoas que acha que ler e viajar são equivalentes, actos que se espelham no sentido recompensador de procurar até encontrar aquilo que me inunda e assim me ultrapassa com a consciência de estar a ver algo pela primeira vez.

 

Chus Pato: Um fémur de voz corre a galope: A antologia de Chus Pato, com tradução de Jorge Melícias que foi publicada pela Officium Lectionis no fim de 2022, a que se soma a outra tradução que dela em português circula e que eu prefiro, Carne de Leviatã, pela Douda Correria, com tradução do João Paulo Esteves da Silva. A primeira vez que ouvi Chus Pato ler a sua poesia foi em Oxford, na companhia da sua tradutora inglesa, Erín Moure, que de resto estava no meu radar por ser a tradutora de uma das versões mais interessantes e desassossegadas que conheço, para língua inglesa, de O Guardador de Rebanhos. A poesia de Chus Pato estava pouco representada em língua portuguesa, o que talvez se explique pela proximidade de ambas as línguas, mas esta era uma falha. Os seus poemas acontecem à velocidade do mergulho, qualquer coisa neles me faz pensar em Herberto Hélder, e na profundidade das línguas de um modo geral, na sua relação com os corpos. Se a poesia é ofício e a sua especificidade é a elevação através da metamorfose que as metáforas permitem, que desarrumam a nossa relação com o que achamos que sabemos sobre o mundo, então essa antologia de Chus Pato foi o meu primeiro encontro deste ano com a pura poesia. Esta nota sobre a poesia de Chus permite falar de outro livro de poesia espanhola traduzido este ano, em que tenho andado a pensar e que ainda não li, Canção Errónea de António Gamoneda, traduzido por João Moita e publicado pela Flâneur. Fica para este ano. 

Mulher ao Mar e Corsárias de Margarida Vale de Gato. Este projecto é uma espécie de variação sobre uma ideia de poema contínuo, muito embora esta continuidade tenha mais que ver talvez com Walt Whitman do que com Herberto Hélder. Acrescentaria aqui também uma antologia preparada por MVG que me fascinou, como me fascina aquilo que os movimentos decadentistas têm de fertilidade e renovação, de surrealista antes do surrealismo, O Outono de Oitocentos, publicada pela Flop. Anoto aqui outro livro que quero ler e que algo me diz estará em diálogo com esta antologia, Metal de Fusão de Fernando Guerreiro, publicado numa colaboração entre a Black Sun Editores/Homem do Saco/ 100 Cabeças. Esperei este livro de FG com grande antecipação: acho que os anos novos devem começar com alguma espécie pouco razoável de fé nas revelações que os livros de poemas podem trazer.

É de Fernando Guerreiro o posfácio a outro livro de poemas que melhorou consideravelmente o meu ano, que, porque eu sou parcial à beleza dos meus amigos, é a poesia reunida de uma grande amiga, Não Desfazendo de Rita Taborda Duarte, publicado pela INCM. Há uma entrevista dada pela Rita à Raquel Marinho em que ela diz que a poesia serve para não nos resignarmos à língua, à própria linguagem, que a poesia permite a possibilidade do mundo sem o peso de uma língua comum, que nos deixa ver o mundo a configurar-se de outra maneira. Se fosse possível definir Não Desfazendo a partir de uma explicação, podia ser esta. Dois dos livros de poesia portuguesa contemporânea que mais amo podem ser encontrados nesta colecção: As Orelhas de Karénin e Roturas e Ligamentos. Se a linguagem poética pode ser outra maneira de reconfigurar o mundo, há outros dois livros de poemas que li este ano que podem ser aqui mencionados como representativos desta ideia. Oníricas (Assírio e Alvim) de Ana Marques Gastão, é um livro muito singular, se é que reconfigura o mundo (talvez não seja essa expressão), fá-lo buscando nas imagens do subconsciente, que surgem em sonhos. É um livro delicado e belo, que corre obliquamente ao real, transfigurando de alguma forma a sua respiração. Fui lê-lo porque uma amiga me disse que era sobre coisas que só as mulheres entendem. Eu estava a sentir-me esperta nesse dia e respondi que não sabia o que pudesse isso ser. Mas ao mergulhar nestes poemas, acho que entendo o que a minha amiga quer dizer. O outro livro de poesia que li este ano e prolonga esta linhagem de mundo reconfigurado é Canina (Tinta da China) de Andreia C. Faria, fá-lo a partir de uma ligação eminentemente metafórica, lírica desse ponto de vista, com o mundo animal, e nisto prolonga, ou aproxima-se da investigação que encontrámos num livro de Elisabete Marques, Animais de Sangue Frio. Há em Canina o lado aguçado da linguagem em estado de paixão (que de resto liga a poética de Andreia C. Faria à de Margarida Vale de Gato) e por vezes uma frieza que remete para os campos retóricos dos que são capazes de amar sem limites, numa espécie de exame da luz que emana de certas feridas iniciais e estruturais. Um livro afiado, feroz, e ao mesmo tempo capaz de uma vulnerabilidade que talvez possa se não salvar o mundo, como dizia outra amiga sobre a poesia, talvez chegue para salvar o minuto.

O livro de poemas que foi o lugar da minha alegria este ano foi Lantânio, publicado na colecção Elementário da Flan de Tal, coordenada pelo João Pedro Azul, é o mais recente livro de José Luís Costa, e tem um enredo. Narra o regresso de um adolescente fantasma, Leonardo, que, entre outras aventuras e desventuras, marca a tinta de spray comboios ali para os lados da linha de Sintra, é nietzscheano e a sua presença fantasmagórica devolve-nos a geografia de um bairro de Lisboa, a Penha de França. Lantânio, o elemento, partilha a etimologia com uma das palavras preferidas de José Luís Costa em grego moderno, lathos, errado, erro. Há um manual sobre a poética da arte do elogio no poeta grego antigo Píndaro que se intitula Graceful Errors: Pindar and the Performance of Praise, assim um pouco a trajectória de Leonardo. Ouvir Nuno Moura a ler poemas do livro na sua apresentação na Poesia Incompleta foi um dos pontos altos do meu ano.

Falando em Píndaro, uma releitura: Acidentes (Relógio de Água) de Hélia Correia, um exame de formas de crueldade social, com recurso a uma observação a partir do seu enraizamento tanto na história como numa certa história da literatura e da cultura (Grécia, Byron), que, sugerem os últimos poemas, é redimível pela beleza e pelo amor. O livro prolonga o diálogo com a Grécia de A Terceira Miséria. Na sua busca deliberada de falar de uma certa ambiguidade moral, para rejeitar e denunciar o ponto em que ela cai para o mal, há qualquer coisa de um exercício de liberdade e nisso este livro une-se, para mim, a um breve ensaio filosófico publicado este ano pelas Edições 70, na tradução de um dos outros editores da Enfermaria, Victor Gonçalves, Para uma Moral da Ambiguidade de Simone de Beauvoir. Há um modo de pensar lógico neste livro que não deixa o leitor esquecer-se que a tese de doutoramento de Beauvoir era sobre Leibniz. É um texto que se concentra nas linhas de força do existencialismo para encarar uma das suas contradições lógicas, procurando resolvê-la, que o existencialismo na sua defesa de uma liberdade radical não poderia comportar uma moral, e é justamente a configuração dessa liberdade existencialista e suas implicações de que este livro trata. Uma proposta radical de liberdade. Esta ideia de uma liberdade radical implica, claro, um convite a dançar diante da morte, o que me levou a revisitar um texto que me continua a causar uma viva emoção, alguma espécie de reserva sem limites por achá-lo uma perfeita arte de viver, o Teoria e Jogo do Duende, onde se encerra a poética dionisíaca de Lorca, e também a reler várias vezes com assombro sempre ascendente o mais belo poema da história do mundo, que é Llanto por Ignacio Sanchéz Mejías.

As minhas duas outras releituras de 2024 foram Poesias Completas de Alexandre O’Neill (um dos tijolos da Assírio & Alvim), em estado de adoração absoluta, com a gravidade e a graça que O’Neill inspira e uma releitura que envolveu para mim uma cuidadosa reapreciação de um livro que continua a ser, segundo me parece, bastante singular entre a poesia escrita pelos meus contemporâneos, Jóquei de Matilde Campilho. Há críticos que, frequentemente com a misoginia mal-disfarçada que por vezes passa por discurso sobre a poesia, têm atacado este livro como representativo do trabalho de uma poeta imatura. Mas há qualquer coisa a ser dita pela imaturidade dos poetas, no sentido em que ela permite lançar um olhar renovado sobre certos lugares-comuns, no espanto do olhar, no acto do canto, há uma espécie de vitalidade da poesia, de asserção do espanto que continua a explicar porque é que ainda hoje acho que não conheço outro livro como este escrito naqueles anos em que todos éramos melancólicos e líamos Cesare Pavese. E há um calor sem cinismo neste livro que o torna inadiavelmente humano. Agrada-me nele o que tem de desmesura retórica, de nerve, que é um modo de cantar amores difíceis, correndo à velocidade de um jóquei algures entre a vivência e a sobrevivência.

Jovem é o tempo de Lalla Romano, um pequeno grande livro de poemas breves que são objectos daquele tipo de beleza tão simples que se torna extrema, nos arrasta na sua cadência até algum limite recôndito, como catarse e revelação de coisas óbvias mas facilmente esquecidas. A tradução é de um dos ex-editores deste blogue, João Coles, e fui publicada pela Sr. Teste. Do mesmo tradutor e também digno de celebração, A Longa Estrada de Areia de Pasolini, um livro de viagens – pela costa italiana num Fiat Millecento. O outro livro de poesia traduzida que melhorou o meu ano foi Cafés and Comets after Midnight and Other Poems, uma antologia do poeta surrealista grego Nikos Engonopoulos, que era uma destas figuras que o surrealismo produziu, um grande poeta e um grande pintor, um pouco como Cesariny entre nós. Engonopoulos é um poeta de experimentações ousadas, poemas que configuram imagens em que se estranha o mundo para escutar o que nele é vital, absoluto, absurdo. Engonopoulos viveu em tempos cruéis para gente que escreve sem medo. É ainda mais extraordinário por isso. Esta antologia feita por David Connolly para a Aiora Press (uma pequena editora sediada na rua Mavromichali em Atenas, vizinha de um café onde se joga xadrez, mas com loja online) permite reapreciá-lo ou descobri-lo e amá-lo.  

Li com o deslumbramento de quem regressa sem parcialidade a uma amiga o breve livro de Francisca Camelo que saiu na Nova Mymosa, Quem Me Comeu a Carne, poemas sobre o amor cruel e a fome que este causa, sobre a sua beleza perigosa e violenta, sobre a racionalidade com que isso se revê e que não reconstitui nada.

Uma novela de reescrita de um romance que me deu muito prazer ler, Tancredi, o Napolitano de Paola d’Agostino, publicado pela VS Editor em tradução de Vasco Gato. Devia ser de leitura obrigatória nas escolas, a par com Os Maias para desarrumarmos o que achamos que sabemos sobre o cânone, para pensarmos nos livros como um modo de regressar às vozes que ainda não ouvimos.

Dois livros que se espelham e olham para o mesmo fenómeno, Para Acabar de Vez com Eddy Bellegueule de Édouard Louis e Regresso a Reims de Didier Eribon, o fenómeno que ambos os livros investigam é supostamente o das vidas daqueles que a sociedade francesa denomina de traidores de classe, pessoas que cresceram numa extrema pobreza e que, por educação, conseguem ascender socialmente. A coisa mais impressionante acerca do livro de Édouard Louis, além do facto de que ele era (e é) extremamente jovem quando o publicou, é a sua interminável raiva que redunda numa denúncia que não chega a nunca ser racionalização da violência e da pobreza do ambiente em que cresceu. É um relato que avança de estigma em estigma até chegar a um gesto final muito simples, de um casaco que se deita fora, e que é uma maneira de demonstrar como há feridas que não se fecham nunca. O que Édouard Louis não consegue fazer, descrever racionalmente, pormenorizadamente, a psicologia social colectiva que os eventos que ele descreve supõem, é o que o livro de Didier Eribon, algumas gerações mais velho que E. Louis (mas afinal pouco mudou em termos da história social que é contada em ambos os livros), faz, com imensa clareza e lucidez. É a psicologia das perdas que a desigualdade social gera o assunto deste livro.

Dois livros sobre depressão: um sobre o suicídio, o estudo clássico sobre este assunto, que toma como ponto de partida o suicídio de Sylvia Plath, The Savage God de Al Alvarez, e o livro de Andrew Solomon, The Noonday Demon, uma história da depressão, que olha para ela de vários pontos de vista, tantos quantos a doença é múltipla, difícil de mapear e de entender.

Um romance assombroso, e difícil de ler, Kairos da dramaturga alemã Jenny Erpenbeck, crónica do colapso da Alemanha de Leste, revisto pela lente de uma dramaturga que recorda a relação que manteve, na juventude, com um escritor trinta e quatro anos mais velho, com quem ela se encontra por acidente, à espera de um autocarro, num entardecer de chuva de 1986 no leste de Berlim. Podíamos dizer que o que se segue é um estudo que progressivamente vai fechando o seu foco sobre a destruição moral que uma geração mais velha, e corrupta, impõe sobre uma mais jovem, como metáfora da história de um país. Mas Kairos é um objecto muito mais complicado do que isso e mais difícil de definir, quase tão complicado como aquela velha ideia de que nunca se conhece totalmente alguém. Lembra um pouco o filme As Vidas dos Outros, são objectos que existem no mesmo espectro.

Três livros biográficos: a investigação de Ian Gibson da morte de Garcia Lorca, The Death of Garcia Lorca, quase uma tentativa de criar um diário que reconstituísse os últimos dias da vida do poeta, retrato da monstruosidade e da corrupção da Guerra Civil Espanhola.

Nos antípodas deste, uma releitura que é para mim sempre um prazer, de um livro que acho uma espécie de colecção fundamental de apartes contundentes sobre as personalidades míticas de um século todas juntas numa cidade mítica, The Autobiography of Alice B. Toklas de Gertrude Stein.

Finalmente, a biografia de um poema, um pouco relacionada com o livro de Ian Gibson, mas que talvez seja um retrato sobre as diferenças de classe em Inglaterra, September 1, 1939 de Ian Sampson sobre o poema que Auden escreveu no início da Segunda Guerra e sobre a relação do próprio Auden com esse poema e como o poema atravessa o tempo, para lá do seu autor e de nós. É um livro muito particular este. Existe como vizinho de Wasteland: Biography of a Poem de Matthew Hollis, que faz sentido ler em conjunto com este (o primeiro e o segundo modernismo inglês).  

Revisitei algures durante o ano um poeta vitoriano que conheço mal e a sua sequência alucinante de poemas sobre infelicidade conjugal, um poema violentamente belo, triste e ansioso: Modern Love de George Meredith.

A Pediatra de Andrea del Fuego, é uma novela brilhantemente cruel, sobre a relação entre uma inteligência fria e lúcida que é auto-destrutiva e a loucura de uma sociedade brutalmente desigual que passa por normalidade aceitável. Um encontro desastroso. Acho Andrea del Fuego uma narradora brilhante. Los Enamoramientos, Javier Marías morreu em 2022 e a meio de uma noite de insónia em Atenas, quando estava a acabar de ler este livro, dei por mim a googlar qual seria exactamente a altura de Javier Marías. É uma novela tão bem escrita que achei que ele teria de ter sido mais alto do que era na realidade para a ter escrito. Não sei se isto é critério de qualidade literária. Mas nesta novela que é uma observação e descontrucção da felicidade que achamos que há nos outros, e que de alguma forma pode ser real para nós, há uma lucidez irónica sobre os enamoramentos, que vai causando estranhamento e desconforto, e que me fascinou durante vários dias.

História: Rites of Spring a brilhante história da Primeira Guerra Mundial escrita por Modris Eksteins que tem como ponto de partida a escandalosa primeira encenação de A Sagração da Primavera de Stravinsky. É uma história fascinante do modernismo. 

Imagens Imaginadas de Pedro Mexia, uma revisitação despretensiosa de imagens amadas. Um livro agradável, bem escrito e inteligente, sobre quadros, fotografias, apontamentos visuais de coisas que nos assombram.

2024

Para fugir, mais por fastio do que por medo, dos ecuménicos votos de bom ano, trazemos aqui um pequeno texto do filósofo francês Vladimir Jankélévich sobre o futuro. Extraído (com o máximo cuidado) de L’Aventure, L’Ennui, le Sérieux. A tradução é de Victor Gonçalves, que quis recordar que nenhum feitiço de Ano Novo, por mais apolíneo que seja, editará um bom futuro aos que alienam a sua liberdade (tornemo-nos, pois, aquilo que somos).

«O que é certo é que o futuro será, que um futuro acontecerá; mas o que será permanece envolto nas brumas da incerteza. Em todo o caso, o Ainda-não será mais tarde um Agora; em todo o caso, o futuro estará presente e será um Hoje, quer estejamos lá para o ver ou não; em todo o caso, o próximo Domingo aconteceria mesmo que não houvesse nenhum homem para lhe chamar Domingo - e isto em virtude da futurição [futurition] que inevitavelmente faz o futuro acontecer. Mas o que será esse futuro? “qualis” De que natureza? Será um dia de festa ou um dia de luto? Um dia de luz ou um dia de trevas? Tal é o enigma da esfinge chamada futuro. É a resposta à pergunta na qual é certa: “An futurum sit?” Haverá um futuro? Sim, haverá um futuro. Mas “quid sit futurum?” Com será ele? De que espécie, de que cor, de que estado de espírito? Qual será a sua luz e qual será o seu género?

Já não podemos responder a estas questões. Podemos responder à questão geral, a saber, que haverá um futuro [...]; mas não podemos dizer o que será; não podemos responder à questão circunstancial, aquela que questiona sobre as modalidades e segundo as categorias da interrogação; não podemos dizer o que será. Assim, a “futuridade” do futuro não é outra coisa senão a nossa temporalidade destinal [destinale], isto é, o nosso pesado destino encerrado pela morte. Mas as modalidades do futuro representam o reino do talvez, e apontam ao homem o horizonte exalante da esperança: o que será depende da nossa liberdade

O ethos do Ensaio

Michel de Montaigne, que com os seus Essais talvez tenha mudado a configuração do mundo, adverte o leitor, na edição de 1580 da sua Magnum Opus, de que nada mais fez, neste trabalho discursivo de uma década, do que se autorretratar («car c’eſt moy que ie peins»).

Será este o limite do género (haverá um género?) ensaístico? Viverá ele de uma subjetividade que, contra a universalidade cartesiana ou a finitude transcendental kantiana, assume a plena responsabilidade de se saber simultaneamente único, impreciso e interesseiro? Estarão as tentativas de explicação (é bem este o horizonte de sentido do ensaiar) dobradas, desde sempre, sobre a angústia de um sujeito que por mais que fale acerca do mundo só deseja conhecer-se a ele, talvez com uma pequena ajuda dos leitores? Conhecer-se ou conjurar-se, sobretudo agora que se reaviva a sombra de um pecado originário, finalmente transladado para dentro da história.

E quanto ao leitor — haverá, aliás, um leitor de ensaios, como se pensa haver, por exemplo, alguns de filosofia, outros de poesia e outros de legendas de filmes? —, será útil para a sua emancipação? Quando há uns meses alguém me disse: «agora só leio ensaios!», imaginei aquelas formas de embriaguez que avivam o Dom Quixote habitando nos limites da loucura pessoal. Hoje, creio compreender melhor a vontade bizarra de não voltar a tocar na ficção, no lírico ou num sistema de ideias codificado em conceitos. É porque no ensaio, como disse Montaigne, lemos o autor, o autor em funcionamento (e isto é mais do que uma «função autor»), mas lemos também tentativas de decifração de alguma da nossa coleção de enigmas. Tudo sem qualquer fatalismo epistemológico, porque somos humanos, demasiado humanos, mas igualmente porque tememos descobrir por detrás de um carpe diem um memento mori. Decidimo-nos pelo sonambulismo.

No café filosófico, que pela sua natureza não se interessa muito por sistemas, procuraremos, essencialmente a partir de João Barrento e do seu «Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis», pensar acerca do ensaio, de porque e como ensaiamos. Pode ser para chegar a «verdades relâmpago» como esta de J. Barrento: «sempre considerei igualmente actual o que, sendo de ontem, actua sobre mim hoje e me transforma». Ou, nas palavras de Maria Filomena Molder (uma superior ensaísta), «Escutaríamos nós um carvalho ou uma pedra, se eles dissessem a verdade?». Mas pode ser também para apanharmos um génio na sua nudez involuntária. Ou uma máquina pensante que se desvinculou da grande fábrica do positivismo lógico.

Veremos aonde nos levam a dialética e os ensaios.

CAMINHAR PARA DELFOS

Ruínas do Templo de apolo em Delfos

Há um poema datado de Maio de 1970 que Sophia incluiu em Dual onde se lê:  

Caminhei para Delphos
Porque acreditei que o mundo era sagrado
E tinha um centro 

Este poema é parte do ciclo que abre o livro e é dominado pela figura de Antínoo, isto é, pela estátua de Antínoo que ainda hoje se pode ver no museu de Delfos. Da primeira vez que vi a estátua de Antínoo em Delfos não pensei em Sophia, de todo. Acho, no entanto, em retrospectiva, que o que experimentei ao ver essa estátua talvez tenha mais a ver com o sentimento que o soldado inglês Norman Lewis descreveu, no livro Nápoles ’44, com mais simplicidade e menos metafísica do que Sophia ao avistar os três monumentais templos de Paestum, à data do seu desembarque, em 1944, com as tropas aliadas na baía de Nápoles. A meio da descrição do terror de desembarcar em Itália, debaixo de fogo inimigo, Norman Lewis diz o seguinte:

Norman Lewis

À medida que o sol começou a descer esplendidamente sobre o mar nas nossas costas caminhámos aleatoriamente por um bosque cheio de pássaros e, de súbito, demos por nós nos limites desse bosque. Olhámos e no espaço aberto diante dos nossos olhos havia uma cena de um encanto que não é deste mundo. À distância de alguns metros podíamos ver, alinhados, os três perfeitos templos de Paestum, cor-de-rosa e cintilando gloriosamente nos últimos raios de sol. Chegou como uma iluminação, uma das grandes experiências da vida.

Quando subimos pela encosta das ruínas em Delfos vai-se ganhando uma perspectiva sobre o vale que, sempre achei, tem qualquer coisa a ver com o modo como a poesia funciona, ou pelo menos com o modo como ela para mim funciona. Há qualquer coisa de uma lenta revelação que confina com o reconhecimento de uma geografia muito particular, e, ao mesmo tempo, a alegria de a ter entendido, de ter sido, ainda que efemeramente, parte dela, recompensa suficiente mesmo quando isso nada tem que ver com promessas de felicidade. Os lugares dos dois santuários de Apolo na Grécia, Delos e Delfos, são, com Paestum, de todas as ruínas do mundo antigo em que estive, aquelas que mais amo. Apolo não é, no entanto, para mim, um deus benigno e reconheço nele qualquer coisa de uma força caótica e dionisíaca, é o deus que traz a cura, mas na Ilíada é também ele o responsável pela peste que castiga o exército grego no início do poema, porque é um seu sacerdote que Agamémnon ofende. Há depois o dom envenenado da profecia, com que ele aflige Cassandra, e a sua própria aflição violenta e desastrada, perante o terror de Dafne ao tentar fugir-lhe e de como quando ele lhe toca ela se transforma em loureiro, aquele momento que se vê agora imortalizado na estátua de Bernini em Galleria Borghese. O rosto de Apolo, tem, de resto, alcances inesperados. Da última vez que um homem pisou a lua, os americanos estamparam a efígie de Apolo Belvedere na insígnia da missão Apollo XVII, ao lado da águia americana e de alguns planetas, para significar a ambição humana de chegar a outros mundos. Há qualquer coisa na história do nascimento de Apolo, tal como contada no Hino Homérico a Apolo, que o coloca fora da escala humana. Sempre me pareceu o deus mais lírico e menos humano de todos, a começar pelo facto de que a terra não o quer. Leto erra de ilha em ilha, já afligida pelas dores do parto, e todas as ilhas se recusam a recebê-la, porque têm medo do deus mesmo antes de ele nascer. É, justamente, nesses termos que Delos se queixa a Leto, quando ela lhe implora que lhe permita dar à luz no seu solo. Delos, que se tornaria, por uma enorme extensão de tempo até à época romana, um dos santuários mais prósperos da antiguidade, invoca o terror que sente de que o deus a calque com os pés mal nasça e a lance para o fundo do mar, onde os polvos e os peixes fariam dela sua casa. Desesperada a deusa persuade a ilha, prometendo-lhe que Apolo teria para sempre ali o seu templo, e que isso garantiria a sua fama e a sua opulência entre as outras ilhas. O último argumento de Leto, o argumento com que ela convence Delos, é pragmático e bastante pouco lisonjeiro. A deusa recorda à ilha a pobreza aflitiva do seu solo, o quanto ela é inóspita e inabitável, o quanto ninguém a quer, o que continua a ser verdade hoje como no século VII ou VI a.C., quando este hino foi composto. Ainda hoje, quase nunca ninguém dorme em Delos. A ilha, com as suas ruínas que atravessam diferentes séculos, que vão do período em que Naxos floresceu como potência das Cíclades até quase à decadência do império romano, é de uma esterilidade austera, pontuada de promontórios e ervas daninhas que se estendem por um solo pedregoso. É também profundamente caminhável e é possível percorrê-la a pé num só dia, qualquer coisa nela faz pensar na beleza violenta de Apolo, torna lógico o pensamento de que, quase imediatamente depois de nascer, o deus parte de Delos para matar Píton e instituir o seu outro santuário, em Delfos, de onde as pessoas receberiam dele esse dom ambíguo e angustiante da profecia, que não pertence ao mundo de um entendimento aberto, essas frases que uma sibila proferia em delírio, sondando em quem a escutava a perfeita intersecção entre uma profunda angústia e uma esperança irracional. Por alguma coincidência difícil de explicar, o Hino Homérico a Apolo é o único texto homérico que encerra uma descrição vagamente física e biográfica da voz a que chamamos Homero. Pedindo a um grupo de raparigas que não se esqueçam de mencionar a quem por elas passasse quem era o melhor aedo que elas alguma vez tinham escutado, ele pede-lhes que elas digam que é ele, o cantor cego da ilha de Quios. É para mim um momento de uma intensa emoção, esse breve acidente do registo da voz muito remota de um poeta muito arcaico, que foi passando de sopro em sopro até chegar a nós. O motivo pelo qual eu amo os clássicos, penso, tem menos que ver com a sua eventual sabedoria, amo-os às vezes mais nos seus erros e nos seus acidentes, nas suas intricadas encruzilhadas cómicas, como aquelas que vêm narradas por exemplo no Hino Homérico a Hermes, nas trocas entre Apolo e esse outro deus, bem diferente dele e para mim mais benigno, o motivo por que amo os clássicos, dizia, tem qualquer coisa a ver com o espanto perante esse cuidado de tentar cuidar e preservar essa memória de mortos muito longínquos. Os gregos, que se preocupavam tanto com a memória, apreciaram isso. Esse cuidado é uma das poucas coisas que está entre nós e a história da destruição que parece em nós por vezes obscenamente natural de escrever. E, já agora, também esse amor cego da destruição vem dos gregos, basta pensar na trajectória de Aquiles.

Delos

O que me leva de novo a Delfos. Da última vez que lá estive, há cerca de duas semanas, observei como as temperaturas se têm mantido tão altas que as folhas das árvores de folha caduca mal chegaram a mudar de cor. De alguma forma, a angústia da terra sente-se, respira connosco até no ar em Delfos. Haveria a perguntar o que é que a relação dos gregos antigos com Apolo, para eles ao mesmo tempo o deus da poesia e da profecia, nos diz da nossa relação com a linguagem e com o modo como ela pode construir ou destruir o mundo. Muito haveria a dizer sobre isso, eu queria apenas acrescentar que, pensando sobre Delfos e sobre a dádiva mais ambígua de Apolo, a da profecia, essa voz interior que vinha, para os gregos, de um lugar anterior à inteligência, me ocorre que ela na verdade servia, ou parece-me que servia, para pelo menos tentar rejeitar o lado absurdo do mundo, fixar na escuridão desesperada do que ignoramos, a rota de um caminho, a sua visão mais ou menos desajeitada. E que isso talvez fosse uma tentativa de não acrescentar mais absurdo ao mundo.

Da mesma forma que continuo sem poder dizer se o mundo é sagrado e tem um centro, e se esse centro será Delfos – talvez o mundo tenha vários centros, de que Delfos seja apenas um – posso, no entanto, confirmar que o complexo arqueológico continua a conter uma próspera família de gato cinzentos, de alucinantes olhos amarelos, da qual se distinguem claramente pelo menos três gerações. Porque são gatos de Delfos, pode deles ser dito, com a aprovação do deus, que há neles qualquer coisa de sibilino, oracular. Essa qualquer coisa de sibilino e oracular pode, ou não, apontar para alguns versos que Sophia escreveu, de resto num livro preocupado com as relações entre nomes e coisas, O nome das coisas, em que num poema intitulado “A forma justa” encontramos os seguintes versos. São talvez os meus versos favoritos de Sophia:

Se nada adoecer a própria forma é justa
E no todo se integra como palavra em verso
Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo

sacerdotes de apolo em delfos, séc. XXI d.C.