O ethos do Ensaio

Michel de Montaigne, que com os seus Essais talvez tenha mudado a configuração do mundo, adverte o leitor, na edição de 1580 da sua Magnum Opus, de que nada mais fez, neste trabalho discursivo de uma década, do que se autorretratar («car c’eſt moy que ie peins»).

Será este o limite do género (haverá um género?) ensaístico? Viverá ele de uma subjetividade que, contra a universalidade cartesiana ou a finitude transcendental kantiana, assume a plena responsabilidade de se saber simultaneamente único, impreciso e interesseiro? Estarão as tentativas de explicação (é bem este o horizonte de sentido do ensaiar) dobradas, desde sempre, sobre a angústia de um sujeito que por mais que fale acerca do mundo só deseja conhecer-se a ele, talvez com uma pequena ajuda dos leitores? Conhecer-se ou conjurar-se, sobretudo agora que se reaviva a sombra de um pecado originário, finalmente transladado para dentro da história.

E quanto ao leitor — haverá, aliás, um leitor de ensaios, como se pensa haver, por exemplo, alguns de filosofia, outros de poesia e outros de legendas de filmes? —, será útil para a sua emancipação? Quando há uns meses alguém me disse: «agora só leio ensaios!», imaginei aquelas formas de embriaguez que avivam o Dom Quixote habitando nos limites da loucura pessoal. Hoje, creio compreender melhor a vontade bizarra de não voltar a tocar na ficção, no lírico ou num sistema de ideias codificado em conceitos. É porque no ensaio, como disse Montaigne, lemos o autor, o autor em funcionamento (e isto é mais do que uma «função autor»), mas lemos também tentativas de decifração de alguma da nossa coleção de enigmas. Tudo sem qualquer fatalismo epistemológico, porque somos humanos, demasiado humanos, mas igualmente porque tememos descobrir por detrás de um carpe diem um memento mori. Decidimo-nos pelo sonambulismo.

No café filosófico, que pela sua natureza não se interessa muito por sistemas, procuraremos, essencialmente a partir de João Barrento e do seu «Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis», pensar acerca do ensaio, de porque e como ensaiamos. Pode ser para chegar a «verdades relâmpago» como esta de J. Barrento: «sempre considerei igualmente actual o que, sendo de ontem, actua sobre mim hoje e me transforma». Ou, nas palavras de Maria Filomena Molder (uma superior ensaísta), «Escutaríamos nós um carvalho ou uma pedra, se eles dissessem a verdade?». Mas pode ser também para apanharmos um génio na sua nudez involuntária. Ou uma máquina pensante que se desvinculou da grande fábrica do positivismo lógico.

Veremos aonde nos levam a dialética e os ensaios.