A loucura de Nietzsche

Nietzsche com a Mãe, Franziska Nietzsche, depois do colapso mental do filósofo

O colapso mental de Friedrich Nietzsche tornou-se evidente no início de janeiro de 1889. Há um rascunho de carta de 25 de dezembro de 1888 para Cosima Wagner com indícios de loucura, por exemplo assina com Der Antichrist, mas a tergiversação sem retorno começa a 30 de dezembro e acentua-se a partir de 1 de janeiro até à última missiva de 6 de janeiro a Jacob Burkhardt. A 3 desse mês terá protegido um cavalo dos acoites no meio da rua, caindo logo depois desamparado e lavado em lágrimas, sendo posteriormente transportado para a sua modesta pensão da praça Carlo Alberto, em Turim, pelo seu hospedeiro, Davide Fino. Este episódio, real ou não, pouco importa, recorda-nos que os cínicos gregos eram sobretudo criticados por misturarem as formas humana e animal, ignorar os limites essenciais da nossa identidade (na altura, a moral tinha mais que ver com o Ser do que com o dever ser). Entre 3 e 7 de janeiro fecha-se no seu quarto, alguns pensionistas dizem tê-lo ouvido vociferar, proferir longos monólogos em voz alta, ensaiar cantos e improvisações histriónicas ao piano. Escreve várias cartas até 6 de janeiro, aos poucos amigos que ainda julga ter (Meta von Salis, Georg Brandes, Paul Deussen, Malwida von Meysenbug, Franz Overbeck, Heinrich Köselitz, Erwin Rohde, Heinrich Wiener, Jacob Burkhardt), mas também a Cosima Wagner, ao Rei Umberto, ao Cardeal Mariani. Assina com Nietzsche Caeser, Dionysos ou Der Gekreuzigte (O Crucificado). Refere encontros com o Papa, príncipes, heróis históricos. Parece ter o poder geopolítico de sacudir a Europa inteira. Quer nomear os redatores-chefes do Journal des Débats e do Journal des deux Mondes. Assegura que os seus livros Assim Falou Zaratustra e Ecce Homo salvarão o mundo ou matarão quem os ler sem preparação. Mas logo a 31 de dezembro lamenta desconhecer a sua morada (talvez uma coisa menor para quem julga que vai refazer o mundo).

Como disse, a 6 de janeiro escreve ao seu antigo colega Jacob Burckhardt, historiador da arte na Universidade de Basileia, começando por confidenciar-lhe que «preferia muito mais ser professor em Basileia do que Deus» (zuletzt wäre ich sehr viel lieber Basler Professor als Gott), refere também que afinal é Victor Emmanuel, mais, mostrando-se um pouco embaraçado, parece agora não ter dúvidas de que, no fundo, é todos os nomes da históriaWas unangenehm ist und meiner Bescheidenheit zusetzt, ist, dass im Grunde jeder Name in der Geschichte ich bin»), esta dispersão onomástica, laceração dionisíaca da identidade (preparando o mergulho no «Uno primordial») já estava presente numa carta de 3 de janeiro a Cosima Wagner. Quase a terminar a missiva endereçada a Burckhardt sentencia o dever de suprimir Wilhelm Bismarck e todos os antissemitas.

Ao ler a carta, Burckhardt percebeu que Nietzsche perdeu a razão e avisa um amigo próximo, Franz Overbeck, que depois de se aconselhar com o diretor clínico do hospital psiquiátrico de Basileia decide ir buscá-lo a Itália. Primeiro, é internado na clínica psiquiátrica de Basileia, depois na de Iena. O diagnóstico, nas duas instituições, vai no sentido de uma paralisia geral («desordem mental devido a uma paralisia») provocada pela sífilis (uma bactéria patogénica, capaz de ficar latente durante mais de 20 anos, que só terá cura em 1929). Nietzsche deixou o hospital a 24 de março de 1890, ficando ao cuidado da mãe até julho de 1897 e depois, até à sua morte (25 de agosto de 1900), ao da sua irmã (Elisabeth Förster-Nietzsche, 1846-1935), no Nietzsche-Archiv de Weimar.

A queda na loucura originou várias teorias, algumas amigas da conspiração, mas por detrás do dissenso entre perspetivas (sífilis, psicose, envenenamento lento, descompensação religioso-moral…)[1] há uma certeza: a loucura contribuiu para a fama do autor. Podia ter sido ao contrário? Talvez, mas para isso Nietzsche devia escrever e pensar menos brilhantemente, a sua genialidade (ainda podemos usar este termo?) salvou-o da pequena loucura em retrospetiva do «maluco da aldeia». E àqueles que insistem em ver, por exemplo, nos títulos dos capítulos «Porque escrevo livros tão bons» e «Porque sou um destino» (ambos em Ecce Homo) a megalomania de um louco, talvez devamos responder que não passam do efeito de uma «razão ardente», como lhe chama Eduardo Prado Coelho,[2] «para a qual não há “acontecimento em si”, mas uma pluralidade de “sentidos”». Ou atender, respeitando-o talvez mais do que devemos, ao que amigo Heinrich Köselizt disse: «Nietzsche tinha o direito de ser megalómano porque era brilhante». Ou, ainda, recordar a apologia da loucura lúcida de Erasmo de Roterdão. De qualquer forma, Nietzsche sabia que muitos se interessam mais pelo autor do que pelos textos (ele próprio, aliás, defendia a importância indelével da biografia para a interpretação da obra)[3], e culminar na loucura alimenta quase sempre o culto da personalidade, uma santidade invertida, mas ainda assim santificável.

Das múltiplas leituras que, sem dúvida, podemos fazer da loucura de Nietzsche, umas mais centradas na linha clínica (psicanalítica ou neurológica), outras na hermenêutica (interpretações ao discurso com e sem biografia à mistura), Michel Foucault é porventura o autor que mais nos estimula a pensar. Porque analisa a loucura do ponto de vista dos «sistemas de pensamento» e consequente organização sociopolítica e dos «modos de discurso», atendendo ao caso particular de Nietzsche (também de Goya, Van Gogh, Artaud ou, entre outros, Hölderlin), esse filósofo revolucionário (talvez, para Foucault, malgré lui) que marcou a mutação (assegurada pela sua obra mas igualmente por aquilo que estava à volta e fora dela) do sistema de pensamento e regime de discurso filosófico.

Em termos muito gerais, Foucault lê a loucura de Nietzsche em dois registos diferentes em L'Histoire de la folie à l'âge classique[4] (História da Loucura na Época Clássica) e num manuscrito de 1966, Le discours philosophique[5] (O Discurso Filosófico). Entre os dois textos não há linhas irredutíveis de antagonismo, mas a mudança permite compor uma leitura do pensamento nietzschiano mais abrangente e profunda. Na História da Loucura, Nietzsche serve — depois de mostrar como se concebeu uma relação diferente entre a loucura e a normalidade, sobretudo a discursiva — para demonstrar que a partir de um certo momento, primórdios da pós-modernidade, cessa de haver uma passagem da loucura à obra e desta àquela. No Discurso Filosófico, Foucault pensa, já em pós-estruturalista, a mutação do modo discursivo próprio (historicamente próprio, não essencialmente próprio) à filosofia instaurado no tempo de Descartes. O discurso filosófico deixa de procurar a verdade, buscando, analisando e justificando «ideias claras e distintas», através de um eu impessoal, e abre-se a uma subjetividade (não kantiana) capaz, como em Nietzsche, de usar, com objetivos mais performativos de constativos (para influenciar mais do que para revelar), diferentes modos discursivos, já não se distinguindo irrevogavelmente do literário e do religioso, para diagnosticar o presente. Projetando-se, assim, uma mutação que parece atrair a morte da filosofia porque permite, contra a História da Loucura, que a loucura incendeie o discurso filosófico, como o faz na poesia e na religião.

História da Loucura:

Neste ensaio (um estruturalismo entre a história e a filosofia, sendo, por isso, nas palavras de Foucault, uma «arqueologia») mostra como a loucura, esse outro da razão, começou por ser recebida no Renascimento enquanto esplendor da imaginação; com inúmeras práticas heterogéneas, muitas ritualísticas, o louco seria uma figura do limiar. Bosch denunciava o verniz frágil da racionalidade com que nos cobríamos. Os loucos passageiros (muitos andavam em navios à procura de um porto que não os mandasse de volta para o mar, para esse utopos que parecia ser o lugar mais apropriado para um outro humano, o da noite) mostravam as zonas porosas entre a loucura e a razão. Com Erasmo de Roterdão e Montaigne, essa denúncia foi esbatida e o pesadelo do reino do Caos substituído em grande parte pela ironia. Mas o mais importante é que a época Clássica varreu de uma só vez todas as ambiguidades perturbadoras, inventou e justificou o grande enfermement (encerramento), internaram-se os loucos, os mendigos, os vagabundos, os delinquentes, os pobres... A época Clássica, reino da razão, desmistificou a loucura e outros comportamentos desviantes, ao diálogo com o reverso da luz contrapôs medidas administrativas, dessacralizou a loucura e fez dela um problema de saúde pública que, a favor da «ordem social», impunha construir muros altos e protetores. Todavia, nesta época só se é louco «na medida em que a [nossa] loucura não se esgota na verdade do louco. É por isso que, na experiência clássica, a loucura pode ser simultaneamente um pouco criminosa, um pouco fingida, um pouco imoral, um pouco razoável também[6] Isto deu ao louco uma liberdade ambígua: a de ser livre mas investido da respetiva responsabilidade. Cheirando a contradição e a injustiça, os primórdios do Iluminismo decidiram encerrar os loucos para que pudessem exercer plenamente a liberdade sem os riscos da responsabilidade: «libera-se da familiaridade com o crime e o mal, mas para o encerrar [enfermer] nos mecanismos rigorosos de um determinismo. Ele só é totalmente inocente no absoluto de uma não-liberdade»[7]. Por isso, «O louco é agora totalmente livre e totalmente excluído da liberdade[8] Ei-lo alienado, ensimesmado na sua liberdade e na sua verdade, sem exterior. É assim que se compreende esta sentença de Foucault: «A loucura clássica pertencia às regiões do silêncio[9] Descartes foi uma das testemunhas de acusação da loucura, excluindo-a por completo da filosofia: A vontade, e necessidade, da verdade torna impossível o lirismo da desrazão. É isso que nos assegura nas Meditações Sobre a Filosofia Primeira (1641). Para ele, o erro é possível e, até, legítimo (resulta da nossa condição dual: corpo e alma, sonho e lucidez). Mas não a desrazão, o louco não pode (porque não consegue percorrer o caminho da verdade) filosofar. Contudo, esta situação altera-se nos séculos xviii e xix, lentamente a loucura ganha uma linguagem na qual pode falar. Foucault dá o exemplo de Le neveu de Rameau de Denis de Diderot (escrito entre 1762 e 1773) e da poesia romântica, sobretudo a alemã. Nesta última, a linguagem é a do «fim último e do recomeço absoluto: fim do homem que se afunda na noite, e descoberta, no fim dessa noite, de uma luz que é a das coisas no seu primeiríssimo começo.»[10] Com isto, diz Foucault, o louco redobra o seu poder de nos fascinar, a sua linguagem continua a não poder revelar, como a cartesiana, as figuras invisíveis do mundo, mas assume a revelação das «verdades secretas do homem»[11], mas «ele transporta mais verdades do que suas próprias»; por isso, «do homem ao homem, o caminho passa pelo homem louco[12] Neste sentido, as características dos autores, seja a melancolia de Swift, o delírio de Rousseau ou a loucura de Torquato Tasso pertencem às suas obras.

Relativamente a Nietzsche, exemplo, com Van Gogh, Goya e Artaud, do fim da modernidade — quando o homem parece desaparecer do primeiro plano a favor da linguagem —[13], a História da Loucura conclui-se pela definição da loucura como «ausência de obra»:[14] «A loucura é a absoluta rutura da obra».[15] Os últimos escritos de Nietzsche do janeiro de 1889 (as chamadas «Cartas de Loucura»), marcam a ruína total da possibilidade de continuar a produzir obras, limiar a partir do qual reina o silêncio ou as gesticulações inconsequentes. De igual modo, van Gogh e Artaud sabiam que a loucura os afastava irredutivelmente das suas obras. Mas antes do colapso, a possibilidade de enlouquecer alimenta já o receio da catástrofe da dispersão ou da dissolução, do eu e das interpretações. Se para Nietzsche, diz Foucault, as interpretações nunca se completam – sendo a filosofia uma espécie de «filologia suspensa» —, é também pelo receio de poder atingir um ponto de não retorno. A correspondência de Freud mostra igualmente esse escrúpulo. Assim, num trabalho muito próximo da História da Loucura, «O que está em questão no ponto de rutura da interpretação, nesta convergência da interpretação em direção a um ponto que a torna impossível, poderá bem ser qualquer coisa como a experiência da loucura.[16] Regressemos, porém, à História da Loucura para concluir com a tese definitiva de Foucault relativa à loucura de Nietzsche e à ausência de obra: «não interessa muito saber quando se insinuou no orgulho de Nietzsche, da humildade de Van Gogh a voz primeira da loucura. Só há loucura como o instante último da obra — esta repele-a indefinidamente para os seus confins: onde há obra, não há loucura».[17]

O Discurso Filosófico:

No capítulo onze, no qual Foucault nos informa de que a multiplicação dos heterónimos nietzschianos «indicam o estilhaçamento do sujeito filosofante, a sua existência múltipla, a sua dispersão por todos os ventos do discurso.»[18] E isto vai provocar uma mutação (mutation) na relação entre o discurso filosófico e quem o enuncia, abrindo a «possibilidade do filósofo louco[19] «Com Nietzsche, continua Foucault, a decomposição do discurso filosófico deixa-o desprotegido e indefeso contra a loucura. Esta tem agora a possibilidade de o incendiar, tal como pode incendiar a fúria dos poetas, o delírio dos tiranos, a embriaguez dos homens de Deus».[20] Assim, a separação clara entre obra e loucura na História da Loucura é agora substituída pela abertura da filosofia, das obras filosóficas à loucura. A partir disto é legítimo vermos na megalomania nietzschiana presente pelo menos desde 1876-78 (Humano, Demasiado Humano) um sinal de loucura, fornecendo aos textos outras linhas de inteligibilidade. Podemos, inclusive, questionar-nos se Nietzsche teria escrito Assim Falou Zaratustra (1883-85) ou Ecce Homo (final de 1888) com tanto fulgor se não fosse já um pouco louco. É, portanto, outro paradigma do discurso filosófico que Foucault descobre em 1966. E, ao mesmo tempo, como veremos na citação que se segue, a loucura que podia fazer parte do lirismo poético, como em Hölderlin, passa agora a poder habitar a filosofia: «Nas últimas cartas de Nietzsche, na convocação dos soberanos, no postal a Strindberg, na mensagem final a Peter Gast, é, de facto, o pensamento de Nietzsche que se afunda. Mas podemos reconhecer aí os limites da sua filosofia — mais a sua suspensão do que a sua interrupção —, e de, a partir de agora, estarmos dispostos a perguntar a toda a loucura não só o que pode incluir de poético, mas o que pode, no seu abismo, enunciar de filosófico, é um sinal de que o discurso filosófico se desenrola segundo um novo modo de ser e se organiza segundo um novo regime. “Cantai-me um cântico novo, o mundo está transfigurado”».21

[1] O artigo de Éric Vartzbed, «Quelques considérations cliniques sur la folie de Nietzsche» (in Psychothérapies, vol. 25, 2005/1, pp. 21-27), permite enquadrar o problema e está disponível na Web.
[2] Introdução a Michel Foucault, As Palavras e as Coisas de Michel Foucault, trad. António Ramos Rosa, p. 10 na nova edição das Edições 70, 2022 [1966].
[3] «Conto, simplificando-a, a história destes filósofos [Tales, Anaximandro, Heraclito, Parménides, Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates]: só quero extrair de cada sistema o ponto que é um fragmento de personalidade [Persönlichkeit] e pertence à parte do irrefutável e indiscutível que a história tem de preservar». (Werke: kritische Studienausgabe, 15 volumes, Munich-Berlin/New York: dtv-Walter de Gruyter, 1999 — KSA —1, pp. 801-802). Em Para a Genealogia da Moral II, § 7, centra a análise noutro ponto: o do casamento. Nenhum grande filósofo foi, diz, casado, é, aliás, impossível imaginá-los assim (no panteão de pensadores celibatários estão, entre outros, Platão, Descartes, Schopenhauer e Kant). No § 8 da mesma obra, elogia a vontade de silêncio e um timbre de voz suave. Para logo depois se concentrar no recato, os filósofos detestam mulheres, glória e príncipes.
[4] Paris: Gallimard,1961/1964, cito a partir da edição tel de 1972 (há uma tradução em português do Brasil na editora Perspectiva, 2/2022).
[5] Publicado em 2023 pela Gallimard/Seuil com um extenso aparato crítico, da responsabilidade de François Ewald, Orazio Irrera e Daniele Lorenzini, está prevista para breve, meados de 2024, uma tradução minha nas Edições 70.
[6] Histoire de la folie, op. cit., p. 635.
[7] Idem, p. 636.
[8] Ibidem.
[9] Idem, p. 637.
[10] Idem, p. 639.
[11] Idem, p. 640.
[12] Idem, pp. 640 e 649.
[13] É célebre o final de As Palavras e as Coisas, no qual Foucault arrisca dizer que «O homem é uma invenção, e uma invenção recente, tal como a arqueologia do nosso pensamento o mostra facilmente. E talvez ela nos indique também o seu próximo fim.» (idem, p. 497).
[14] Podemos deduzir do que refere Foucault que ele não nega que nestes autores a loucura faça parte das suas obras, mas apenas ao nível da receção, são os leitores que incluem a loucura terminal deles nos seus escritos prévios. (Cf. idem, p 661).
[15] Idem, p. 662.
[16] Michel Foucault, «Nietzsche, Freud, Marx» [1967], in Dits et écrits I, n.º 46, pp. 592-608, Paris: Gallimard/Quarto, 2001 [1967]. O texto foi lido no Colóquio de Royaumont de 1964.
[17] Histoire de la folie, op. cit., p. 663.
[18] Le discours philosophique, op. cit., p. 185.
[19] Ibidem.
[20] Ibidem. No aparato crítico da edição da Gallimard/Seuil, que fará também parte do que vier a ser publicado nas Edições 70, há a seguinte nota importante redigida pelos editores: «possibilidade do filósofo louco» de que falava Foucault em 1963, e que se aproxima mais de O Discurso Filosófico do que da História da Loucura, no seu ensaio sobre Bataille, foi, de facto, (re)aberta por Nietzsche: «É exatamente o inverso do movimento que sustenta a sabedoria ocidental desde Sócrates: a linguagem filosófica prometia a esta sabedoria a unidade serena de uma subjetividade que triunfaria nela, tendo sido inteiramente constituída por ela e através dela. Mas se a linguagem filosófica é o que repete incansavelmente o tormento do filósofo e lança ao vento a sua subjetividade, então não só a sabedoria já não pode valer como figura de composição e de recompensa, como se abre inevitavelmente uma possibilidade, no fim da linguagem filosófica [...]: a possibilidade do filósofo louco. Quer dizer, encontrar, não fora da sua linguagem (por um acidente do exterior, ou por um exercício imaginário), mas no seu interior, no âmago das suas possibilidades, a transgressão do seu ser filósofo» (M. Foucault, «Préface à la transgression»).
[21] Idem, p. 186. Foucault cita uma carta de Nietzsche de 4 de janeiro de 1889 a Heinrich Köselitz (Peter Gast), Turim. A carta completa termina depois de «transfigurado» com «todos os céus se alegram» e é assinada por «O Crucificado»: «Singe mir ein neues Lied: die Welt ist verklärt und alle Himmel freuen sich. Der Gekreuzigte.» Friedrich Nietzsche, Sämtliche Briefe, Kritische Studienausgabe, Band 8, Berlin/New York, Walter de Gruyter, 1986, p. 575.