Polarização

Quadrado branco sobre fundo branco, 1918, Museum of Modern Art

A crónica da Philosophie Magazine de 30 de abril de 2024, escrita, e pensada, por Martin Legros, foi sobre a «polarização». Parece-me excelente. Traduzo-a para trazer um pouco de sentido aos que lutam, sem saber muito bem como, contra as engrenagens do niilismo, agnóstico ou militante, do «I would prefer not to» bartlebyano ao fanatismo desbragado do «basta querer!». Ambos são niilistas porque se esgotam na forma, não conseguem produzir, ou reter, nenhum conteúdo. Um pouco como a arte contemporânea. Um niilismo que preside à polarização, como é entendida por Bart Brandsma, quando sai dos eixos.

 «“Não sou a favor nem contra a polarização. Sem ela, não haveria democracia nem civilização. Mas pode ficar fora de controlo...”, diz Bart Brandsma, que cunhou este conceito tão em voga. Nascido em 1967 nos Países Baixos, Brandsma tornou-se realizador de documentários depois de estudar filosofia na Universidade de Groningen (“o meu objetivo era usar o jornalismo para levar o poder e a beleza da filosofia à sociedade”). Começou a sua vida profissional na Dutch Muslim Broadcasting Corporation, onde era “o único não muçulmano” – um estatuto e uma experiência que o inspirariam a desenvolver o seu modelo teórico de “polarização” (Polarisation. Understanding the Dynamics of Us Versus Them, 2017). Em seguida, colocou-o à prova como “formador”, uma vez que era cada vez mais solicitado por pessoas envolvidas na vida pública – agentes da polícia encarregados de traçar “perfis étnicos”, professores sujeitos às dificuldades de integração [dos alunos], presidentes de câmara e até ministros confrontados com as divisões em relação ao terrorismo.

O que é a polarização? É uma divisão baseada na oposição entre “nós” e “eles”. Deve ser distinguida do conflito – e um dos erros fundamentais, de acordo com Brandsma, é acreditar que a polarização pode ser tratada com as velhas e conhecidas ferramentas de gestão de conflitos. Qual é a diferença? Um conflito envolve partes diretamente envolvidas e identificáveis do exterior – os “donos do problema”. “Quando uma briga começa a meio da noite num bar, há ‘donos do problema’ e, portanto, um conflito. Toda a gente com um olho negro ou um ferimento qualquer pode ser considerada envolvida”, escreve Brandsma. Enquanto na polarização os indivíduos têm a opção de se considerarem ou não envolvidos. “A escolha de participar é mesmo um momento crucial para os ‘atores’.” No rescaldo de um atentado do Daesh, por exemplo, os muçulmanos europeus são chamados a condenar esses atos, mesmo que não se considerem co-autores nem adversários. Ao mesmo tempo, outros posicionam-se como porta-vozes da civilização ou da liberdade.

Para caraterizar a polarização, Brandsma não hesita em formular três “leis fundamentais”. Primeira lei: a polarização é uma “construção mental”; a oposição entre “nós” e “eles” não é observável na realidade, é uma abstração, baseada essencialmente em identidades. Mesmo que se baseie em grupos reais (homens e mulheres, europeus e migrantes, defensores e opositores do laicismo, etc.), “o ponto de viragem para a polarização ocorre quando estas diferenças são acompanhadas por significados que são apresentados como típicos das identidades em questão”. Segunda lei: a polarização precisa constantemente de “combustível”. “Se deixarmos de a alimentar, ela definha. Diminui de intensidade e acaba por se extinguir”. Terceira lei: finalmente, a polarização é regida por uma “dinâmica emocional”. Isto explica por que razão a argumentação, factual ou racional, tem pouco efeito sobre ela. Quando os factos põem em causa a crença dos apoiantes de Trump na sua vitória, “continua a ser possível recorrer a teorias da conspiração”.

Mais interessante ainda é o facto de, ao formalizar o seu modelo, Brandsma desenvolver personagens conceptuais reais que não podem deixar de aparecer no cenário da polarização. Distingue cinco. Em primeiro lugar, o instigador [the puscher]: movido pela convicção moral de que tem razão e de que o outro está errado, resistente à moderação ou às nuances, fornece incansavelmente o combustível para cada nova polémica que surge. Depois, há o aderente [the joiner], que toma partido sem concordar com tudo o que o instigador diz: “Nem sempre concordo com ele, mas tem o mérito de pôr os pontos nos is”, diz para justificar a sua posição. Depois vem o grupo dos silenciosos, a maioria silenciosa que não toma partido, por vezes por razões profissionais (polícias, professores, juízes, presidentes de câmara, etc.), mas mais frequentemente por prudência, e que, para Brandsma, é o alvo principal do instigador – este último não procura convencer o seu adversário, ao contrário do que parece, mas influenciar a maioria e trazê-la para o seu lado. A lógica continua com o construtor de pontes, que tenta manter o diálogo entre os dois campos, salientando pontos de convergência ou propondo contra-narrativas. Por fim, o bode expiatório: quando as tensões aumentam e o risco de guerra civil se aproxima, qualquer pessoa que não pertença a um dos dois campos pode ser acusada e tornar-se alvo de ataques (polícias, professores, etc.).

Como desativar esta dinâmica infernal, perguntamo-nos, num universo mediático – o das redes sociais – expressamente concebido pelos seus operadores para fornecer o máximo de “combustível” de que a polarização necessita para se inflamar? A resposta de Brandsma não é moral ou mesmo política, mas intelectual, poder-se-ia dizer. “Para despolarizar”, defende, “é preciso compreender que não é preciso lutar contra os polos, mas sim reforçar o grupo silencioso do meio”. Dito de uma forma um pouco mais ofensiva, não será o mesmo que dizer ao partido das nuances e da moderação que deve encontrar uma saída para o silêncio no qual está confinado?»

25 de Abril, parte 2

Salgueiro maia, naquela fotografia de eduardo gageiro em que ele explica que está a morder o lábio para não chorar (Lisboa, 25 de Abril de 1974)

Têm sido vários os podcasts sobre o 25 de Abril que foram lançados nos últimos meses. Tenho seguido alguns religiosamente. Destaco Operação Papagaio do Observador, Retratos de Abril no Expresso e Clandestinos no Público. Num dos episódios de Clandestinos, numa entrevista feita a Manuela Juncal, ela conta de como ouviu a uma colega da fábrica onde ela se infiltrara a seguinte frase: “Sou uma mulher séria, não preciso de liberdade.” É todo um mundo numa frase e é um mundo de facto pior do que aquele em que cresci. Escutei-a e lembro-me do lema da revolução francesa, “liberdade, igualdade, fraternidade,” três coisas sem as quais não me parece que valha a pena viver.

Nascida em 1986, Portugal não existiu para mim enquanto país não-Europeu ou isolado do resto do mundo por manter um regime político condenado, quando não detestado, internacionalmente, por causa do colonialismo e da guerra colonial. Mas a memória desse país anterior, no entanto, cruzou-se comigo e está a começar a desaparecer. Era visível, por exemplo, na vila onde cresci nos corpos de homens que voltaram mutilados da guerra. Existiu em dimensões que não imagino, que me escapam, que assomam, por exemplo, ao escutar um marido de uma amiga contar de como era preciso ter muito cuidado nos cafés porque nunca se sabia quem estaria à escuta. Os totalitarismos prosperam na paranoia, a divisão social é a sua harmonia, a mediocridade moral é sem dúvida uma das condições a partir das quais proliferam. É preciso rejeitá-la.

Voltei a Portugal na semana do 25 do Abril, também para poder descer a Avenida da Liberdade com o Victor. Gosto de caminhar ao lado dos meus amigos vagamente agorafóbicos quando eles resolvem juntar-se às multidões. E faço parte daquele grupo de pessoas que pensa nunca ter visto um 25 de Abril assim. É verdade que, como comentava com ele, não era o proletariado que estava na rua e é verdade que me pareceu haver nesta manifestação, tal como a ele, um certo défice de revolta social. As montras das opulentas lojas da Avenida da Liberdade, os hotéis, que são parte da turistificação massiva que devagar transformou a cidade de Lisboa numa espécie de caricatura de si própria, escaparam incólumes e talvez merecessem a nossa revolta. Via-se pouca polícia, não era possível cheirar gás lacrimogénio. Há uma explicação óbvia para isto, claro. O que se viu na tarde de quinta-feira passada foi verdadeiramente uma celebração do 25 de Abril, por parte daqueles que se sentem representados pela revolução, por quem reconhece que a democracia melhorou as suas vidas, que foi uma conquista e permanece o melhor sistema governativo que temos. E se é verdade que a homogeneidade social de que falava o Victor no seu texto da semana passada é mais ou menos óbvia, o mesmo não é verdade acerca das faixas etárias. Via-se o mais variado espectro de idades pela avenida. E quase toda a gente em modo de festa, com os cães, os filhos de colo, com copos de cerveja na mão. Vi muitas caras conhecidas, o que talvez queira dizer que a larga maioria dos meus amigos sente o mesmo que eu.

No dia seguinte, uma amiga faz-me um telefonema com uma pequena nota pessimista, diz-me que talvez seja o último 25 de Abril em que aparece tanta gente e acrescenta: “depois já ninguém vai querer saber disto para nada.” Eu esqueço-me de a lembrar de um poema de que me lembro depois, já no avião de volta a Londres, de Margarida Vale de Gato, que se pode ler em Atirar para o torto, onde a pessoa que narra o poema percorre toda a cidade de Lisboa em busca de cravos para celebrar o feriado e sem os encontrar. É um poema anterior em alguns anos à enchente que se viu ontem. Esse símbolo da nossa revolução que comoveu o mundo, o único feriado nacional de que sinto um orgulho sem quaisquer reservas. Esta multidão existe na semântica de outro poema, de Jorge de Sena, escrito durante a ditadura, é também ela uma luz, talvez nem assim tão pequenina. De resto, só vi mulheres sérias que precisam de liberdade a descer a Avenida da Liberdade.

25 de Abril Sempre! 1ª parte

Estivemos na Avenida da Liberdade, ritual de atualização da nossa Revolução. Havia mais gente, ou melhor, mais cidadãos, do que em anos anteriores. Mais em número e em convicção. Caramba, o 25 de Abril foi maior do que alguma vez imaginamos. Maior porque atualizou, sem grandes níveis de violência e de revanchismo, uma mudança de regime político-social, maior porque nunca confundiu a revolução com os revolucionários. Foi, à falta de melhor termo, uma revolução civilizada (continua a sê-lo, bastou ver todas as lojas de luxo abertas ao longo da Avenida, como se nada fosse). Se os seus ideais são a priori, se existem de forma autotranscendente, tiveram, contudo, de ser materializados. É aqui que muitas vezes, por exemplo na Revolução Francesa, tudo se precipita para o abismo do terror, porque se liberta a vingança acumulada numa enorme economia do ressentimento. No nosso caso, a Revolução foi conduzida por ser humanos calmos, com sentido do relativo e do finito, não impuseram uma redenção, antes projetaram um futuro radioso e bondoso, longe, bem longe, do passado e do presente. É por isto que devia ser, simultaneamente, um ritual de atualização (continuação) e de iniciação. Vincando que ninguém é dono do 25 de Abril, somos nós que lhe pertencemos. Pertencemos-lhe, mas sem nós não se cumpre. Portanto, quando se afirma que «falta cumprir Abril», queremos dizer que nós, cada um de nós, ainda não o cumpriu, nos gestos e ações de cada dia.

Faltará, então, o povo (como gostava de repetir Gilles Deleuze)? Um povo que mereça esta Revolução? Sim e não. Sim porque se nota cada vez mais que uma franja significativa da população portuguesa não vai, ou já não vai, ao 25 de Abril. Eu e Tatiana Faia comentávamos que a manifestação era da burguesia, média burguesia (desculpem-me a categorização apressada), a que mais facilmente se revê nos ideais da liberdade e da igualdade, a que reconhece as vantagens de uma sociedade cosmopolita, a que lê e reflete, sabendo, por isso, que a omnipotência messiânica só quer dizer brutalidade e miséria, a que não se deixa facilmente embriagar com promessas de ordem e progresso guinando em direção ao passado. Sim porque, em concreto, não esteve nem a alta burguesia (sem surpresas), nem o proletariado (continuo a simplificar as categorizações sociais). Este último deixou-se alienar pelo canto das sereias desafinadas da direita populista, que lhe prometem, literalmente, este e o outro mundo, uma união mística. Quanto à alta burguesia, ela vive no céu, quer lá saber dos problemas humanos. Por outro lado, não falta o povo. Esteve na manifestação quem devia estar, um povo que representa o que de melhor foi possível fazer com a massa humana, com um aglomerado de forças tanto inventivas, cooperativas e construtivas, quanto destrutivas. Um povo a que tenho a sorte (e trata-se mesmo disto) de pertencer.

Mas esses que faltam são um sintoma do enfraquecimento do sopro democrático, desta vez faltaram não por indiferença, mas por repulsa. Não será tanto porque querem substituí-la pelo 25 de Novembro, as duas datas são compatíveis, devem, aliás, ser tomadas como irmãs que se complementaram para construírem a nossa democracia parlamentar. Os que agora combatem o 25 de Abril são, antes, os verdadeiros reacionários, nacionalistas primários que apostam tudo numa velhíssima luta de raças, produto da dialética sem saída do «nós» contra «eles», «puros» contra «impuros». Mas esses que se julgam únicos nada mais fazem do que cavalgar a onda antidemocrática que agora percorre o mundo, sobretudo a Europa, Continente onde a democracia estava, está, mais consolidada. Se tomarmos O Choque das Civilizações de Samuel Huntington como referência, revemos aqui o princípio da ação-reação: uma onda democrática tardia que começou, justamente, no 25 de Abril, seguindo-se a Grécia e a Espanha, passando depois para a América Latina e a Europa de Leste, substituindo regimes autoritários por democracias representativas; uma onda reacionária, antidemocrática, com claras tendências autoritárias, iniciada em França há cerca de vinte anos, depois Itália, Áustria, alguns ex-países de Leste, Países Baixos, Suécia, Alemanha, Espanha e, entre outros, Portugal (com uma aceleração incrível).

Não pretendo ver nisto uma qualquer variação do materialismo histórico, sou muito pouco historicista. Parece tudo simultaneamente mais simples e mais complexo. Por um lado, como aconteceu nos anos que antecederam a Primeira Guerra Mundial, um cansaço relativamente ao statu quo político, do regime e dos políticos que o incarnam, dispostos a quase tudo para manterem os privilégios, fazendo da política um emprego sem termo fixo. Por outro, uma má gestão de expetativas, exigindo demasiado à democracia, querendo que ela roce a perfeição, no sentido de dissolver todas as disfunções e antagonismos. Oscila-se, pois, entre «antes a barbárie do que o tédio do mesmo» e o «estamos muito longe de o melhor dos mundos possíveis». Lassidão (o cansaço pessoano) e euforia reivindicativa. Quase ao mesmo tempo, na brecha que se abriu, a esquerda abandonou a questão da identidade à direita, deu-lhe de mão beijada os campos nos quais se prolongam as narrações sociopolíticas e míticas do Estado-Nação, mas também a simbologia, principalmente iconográfica. Bastante do que define horizontes de sentido, emoldurando-os com uma esperança incondicional (modus operandi do populismo).

Afastemos, porém, o fatalismo. Podemos mitigar a embriaguez de fantasias oferecidas, sem esforço, pelos antidemocráticos. Mostrando, demonstrando que a omnipotência, a pureza étnica e a riqueza abundante não passam de slogans retirados de uma cartilha que tem tanto de velha quanto de funesta, uma distopia revisitada. Regressando, também, ao espírito conciliador e utópico dos pais revolucionários, em vez de cair na tentação de exacerbar antagonismos, os sectarismos estão mais do que testados, nada de bom proveio deles. Lançar uma onda de veracidade, honestidade, respeito e solidariedade. Um antídoto contra a vociferação dos pequenos esbirros ungidos pela miséria moral. Devemos projetar um futuro mais do que mitificar o passado. Mesmo que o mundo pareça dobrar-se sobre si e não arrastar-se obstinadamente para a frente. Mas são dobras em espiral, um eterno retorno que seleciona, capaz de edificar uma ética, um ethos no qual cada vida só valha tanto quanto outra vida, nunca mais, nunca mais.

25 de Abril sempre!

Peter Sloterdijk, Europa, um continente sem qualidades

Peter Sloterdijk, lição inaugural no collège de france, 4 de abril de 2024

Peter Sloterdijk, o filósofo que melhor agita as águas, cada vez menos claras, do pensamento atual (em filosofia, o «atual» tem pelo menos um século), proferiu a lição inaugural do Collège de France neste último 4 de abril, o jornal francês Le Monde publicou um excerto que retomo, em modo de comentário, mais abaixo. É sobre a Europa, continente bem e mal-amado (ambivalência que faz parte da sua própria condição de possibilidade), cada vez menos capaz de corresponder às expectativas que ele próprio criou.

Sloterdijk é um autor bastante traduzido em Portugal (quase sempre na Relógio D’Água), aconselho, por exemplo, a Crítica da Razão Cínica (entre muito outros, Jürgen Habermas saudou-a efusivamente), Palácio de Cristal, Morte Aparente no Pensamento e Tens de Mudar de Vida. É verdade que, por enquanto, ainda nenhuma editora se atreveu a perder dinheiro traduzindo a sua opus magnum, Sphären (Esferas, três volumes, 2004 e 2009), mas o que há é suficiente para termos a clara noção da sua genialidade (na análise, no comentário e na poeisis conceptual). Mais clarividente e profundo, mais dentro, e fora, da história da filosofia do que Byung-Chul Han (a outra rockstar da filosofia alemã), pouco alienado ao anticapitalismo pós-extremista, como lhe chama, mais prolífico do que a maioria dos académicos e, já agora, incrivelmente livre (resistiu ao canto dos mandarins, alguns bons diga-se, da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt), apesar da carreira canónica na Hochschule für Gestaltung (Universidade das Artes e do Design de Karlsruhe, na qual chegou a ser reitor). Só ele se aproxima, porque sabe e não tem medo de se queimar, de uma gaia filosofia, que, longe do rigor mortis da filosofia analítica, assume a importância do conto filosófico (um eros discursivo que reconhece a necessidade de discursos longos e multiformes para explicar um presente complexo, ambíguo e pós racional).

«Nietzschiano de esquerda», como gosta de se apresentar quando quer inaugurar uma polémica, preferia que a dicotomia ética se baseasse no par «pesado e leve» em vez de o «bem e mal». Este último foi até hoje o motor incansável do pensar e do sentir humano, um transcendental, à sua maneira, com incríveis poderes performativos. Mas seria bem mais fértil distinguir o que torna a vida humana leve do que a torna pesada, as paixões felizes das paixões tristes. Construa-se, pois, uma nova ética a partir do que eleva e do que rebaixa, do que exulta e do que angustia e petrifica. Mas, claro, talvez o ser humano, que regressou aceleradamente às pulsões destrutivas (o fim da história só pode ser projetado num pós-humano, ou no fim do humano), não esteja ainda preparado para sair do conforto maniqueísta; como esclarece Sloterdijk, retomando Friedrich Nietzsche, aquilo que escolhemos (refere-se à filosofia, mas podemos usá-lo igualmente numa ética prática) «depende do homem que somos». (Temperamentos Filosóficos). E Sloterdijk é um homem permanentemente inspirado, sem os habituais preconceitos (bondosos, dizem) do intelectual engagé.

II

Na lição inaugural do prestigioso Collège de France, Peter Sloterdijk (namorando há muito com a França) falou sobre a Europa, esta em que vivemos, cheios de esperança e receio, gratos e ingratos por existirmos num palácio de cristal que já não consegue (alguma vez conseguiu?) ser a estufa perfeita que nos aquece mesmo quando um frio distópico atravessa alguns dos vidros partidos (ou ausentes, desde sempre).

Há uma certa amargura pela sensação de declínio europeu (somos o «velho mundo» desde Cristóvão Colombo), o «resto do mundo» mudou muito, já não é o «menos», mas o «mais». Não soubemos, não sabemos fazer a transição do colonialismo para o ensimesmamento continental, um continente fragmentado que ainda não conseguiu compor o seu corpo dançante. Assediados pelo distante e pelo próximo, temos, num paroxismo dissensual, uma Rússia que recuperou os instintos imperais que pareciam irrecuperáveis depois do malogro soviético. Mas temos também imigrantes, presentes e potenciais, a bater constantemente, esfomeados, à porta. E nós cheios de medo, numa angústia étnica sem precedentes. Somos, pois, um corpo, já não monstruoso, mas talvez frankensteinniano, vinte e sete órgãos sem uma cabeça que verdadeiramente os coordene. Como renovar, por outro lado, este continente sem colónias (e com poucos amigos), com uma história de domínio, político e espiritual, tão pesada? O passado em vez de trampolim forma um lastro de chumbo que nos impede de avançar (neste tempo seria antes «galgar»). Mas bem, somos os especialistas da decadência, sabemos, como ninguém, sublimá-la, fazemos, como Baudelaire ou Fernando Pessoa, poemas sobre o cansaço, a beleza metafísica da renúncia e do desvanecimento. Mas também a tememos tanto que estamos prontos a saltar para qualquer abismo se nos prometerem que nos afastamos dela.

Desta forma, diz Sloterdijk, quem ousar repensar a Europa «deve saber que haverá que formar conceitos para uma novidade política e cultural. […] conceitos para um continente sem qualidades» (próximo da ideia de ausência de qualidades do Ulrich de Robert Musil, não por falta de inteligência, pelo contrário, mas por um viés analítico que o conduzia à passividade, ao relativismo moral e à indiferença). Com 500 milhões de habitantes, refúgio para imigrantes porvir, clama por uma nova definição, para si e para os seus povos. A União Europeia é uma improvisação política, um grande corpo político sem «as convicções e postura imperiais». E se os seus habitantes assumem e, na sua maioria, validam este novo europeísmo, isso não os conduz às mesas de votos das eleições europeias. Talvez falte o sentimento de uma pátria vivida, ou talvez isso justifique alguma cólera contra a realidade opaca, quase extraterrestre, da burocracia das instituições europeias. Mas, no essencial, muitas incarnam uma ingratidão fácil e desmiolada: «O Europeu de hoje é frequentemente o consumidor final de um conforto do qual desconhece as condições de existência». Por isso, «na sua existência perfurada pelas falhas de memória» há uma frase de Stephen Deladus (no Ulisses de James Joyce) que se tornou realidade: «A história é um pesadelo do qual procuro sair.» Melhor, quem sabe, do que o «I would prefer not to» bartlebyano.

Talvez seja a altura de regressar à A Ideia de Europa de George Steiner, que nos reconforta com uma genealogia da civilização europeia sem nenhum lugar para o ressentimento. Mas assim perdemos o espetáculo de autodestruição que vai percorrendo, sempre percorreu, a Europa e o dever de a filosofia constituir, como pensava Nietzsche, a má consciência do seu tempo.

O motivo pelo qual não consigo ver "20 dias em Mariupol"

Neste mundo existe a arqueologia enquanto ciência e a guerra enquanto coisa supostamente justificável e depois existe tudo o resto que circula no meio. Eu estou no meio, confortavelmente na minha bolha de classe média burguesa, de quem de vez em quando acha que o mundo vai acabar porque determinado tipo de caneta comprada há muito tempo ficou sem tinta e agora não se sabe onde ir comprar modelo igual. Aqui há uns dias, por outro lado, um amigo fez-me ir ver o documentário 20 dias em Mariupol. A minha dificuldade em assistir ao filme começou na primeira cena em que aparece um ser vivo morto. Esse ser outrora vivo era um felpudo gato preto, por sinal bastante parecido com o meu, um buda opulento e hipersocial, gato de meia-idade algures no Oxfordshire. Há uma parte de mim que sente uma tristeza absurda ao contemplar este gato ucraniano morto, cuja vida foi injustamente interrompida. Não merecia morrer, não há razão nenhuma de estado neste planeta que valha a vida de um simples gato. É absolutamente monstruosa a imagem de um gato atingido por uma bomba. Todo o absurdo do mundo é para mim esta imagem deste pobre gato morto. O mundo tem muitas arqueologias e está cheio de coisas completamente injustificáveis porque são obscenas e a obscenidade não é necessariamente uma questão de pornografia. Quando uso a palavra obsceno, na verdade, frequentemente ocorre-me o uso perigoso que os gregos antigos tinham para ela: obsceno era aquilo que acontecia fora de cena na tragédia grega, por ser demasiado violento para ser representado em palco, mas talvez seja ingénuo e perigoso pensar que devemos desviar os olhos do mal ou pensar que não é igualmente obsceno saber que ele existe e fingir que não o estamos a ver. É assim que ele vai sobrevivendo. Aqui há umas semanas reli Os Grão-Capitães de Jorge de Sena. Em 1971, pouco menos de uma década depois de ter escrito estes contos, que ele achava que nunca iam ser publicados por causa da ditadura em Portugal, Sena escreveu-lhe um prefácio (o livro acabaria por ser publicado em 1976). Copio aqui um excerto.

Não há valores transcendentes que mereçam mais respeito do que qualquer vida humana; e se por acaso esses valores alguma vez existiram, estão hoje a tal ponto impregnados de falsidade baixamente humana (ou melhor, a tal pontos eles degradaram a dignidade humana), que são ainda piores do que inexistentes. Porque não é deles que a dignidade humana é feita, mas de muitos singelos e modestos valores imanentes: respeito e tolerância, honestidade e simpatia, horror do mesquinho e do medíocre, e outras destas coisas mais, como a consciência de que o mal só nasce e só existe de haver uma ideia de bem que, sendo imposta, martiriza e mutila o esplendor de existir-se. . . O mal não se perpetua senão no pretender-se que não existe, ou que, excessivo para a nossa delicadeza, há que deixá-lo num discreto limbo. É no silêncio e no calculado esquecimento dos delicados que o mal se apura e afina – tanto assim é que é tradicional o amor das tiranias pelo silêncio… 

Por estes dias ando a traduzir um ensaio sobre o amor escrito por uma classicista na década de 80. Nesse texto, particularmente hedonista porque delirante em relação a textos do século V a.C. sobre a função social do amor, lê-se a dada altura que o modo como reagimos ao início de uma paixão, o modo como reagimos ao seu exacto princípio, como estamos ou não dispostos a ser mudados por esse momento, diz muito da qualidade, do decoro e da sabedoria das coisas que estão dentro de nós, se somos ou não capazes de aceitar viver segundo coisas que não controlamos, sem medo de um fim. Os contos de Jorge de Sena, escritos durante uma ditadura e sobre ela, estão cheios de corpos oprimidos e reprimidos, de gente que vive mutilada nas coisas que existem de mais privado. O mundo de Os Grão-Capitães divide-se entre oprimidos e opressores, e ficamos a saber que até uma infecção de ouvidos num regime totalitário é uma coisa potencialmente letal. Estes contos dizem mais ou menos abertamente que não há nada que viver sobre um regime totalitário não corrompa. As pessoas representadas neles são vítimas de todo o tipo de apagamento. É contra esse apagamento que agora releio esses textos. Prolongam o meu mau humor e o meu azedume, a minha indignação, ao pensar que ao contrário das populações que viveram na Europa na década de 30 nossa nem sequer é a desculpa de poder dizer que não sabemos quais os fetiches desta onda populista de pendor reaccionário, se não as consequências de lhe dar força.

Parei de ver o documentário 20 dias em Mariupol ao terceiro morto, um rapaz que estava a jogar futebol junto a uma escola com uns amigos. Não na cena onde se mostra os seus ténis Nike, exactamente o mesmo modelo que uso para correr quase todos os dias, ensanguentados, mas no ponto em que se vê o seu corpo tapado com um lençol branco e o pai, com uma idade já muito avançada, chora sobre ele repetindo incessantemente “meu filho, meu filho, meu filho.” Tenho-me sentado com gente que tem discursos a fazer sobre a guerra, que tenta justificar a sua obscenidade, que a debate academicamente, que tenta justificar a Rússia, condenar a Ucrânia, condenar a Rússia, justificar a Ucrânia, como se qualquer palavra que pudesse ser dita ou uma situação parecer fazer sentido pudesse justificar este nojo e este terror absolutos de ver um pai chorar sobre o corpo de um filho que não regressará nunca mais. Fui ver este filme porque há muitos meses que tenho medo de que o meu amigo, que vai com frequência a Kiev, por lá morra. Na verdade, tenho pesadelos com isso. O meu amigo não é um soldado nem um espião. É um estudioso de literatura russa e grega. É um tipo impaciente, a quem pareceu que seria compactuar com uma coisa que o horroriza não fazer nada perante o terror de ver o país de onde saiu a cultura que ele mais ama na vida ser de novo usada para justificar uma forma extrema de indignidade humana, de barbárie. Nas primeiras semanas que ele passou numa estação de comboio na Polónia o trabalho dele foi ajudar os refugiados ucranianos que ali iam chegando a tentar encontrar um sítio para onde ir na Europa ou a chegar onde já tivessem quem os acolhesse. Velhas com gatos e cães e netos, mulheres com filhos, mães horrorizadas de deixarem os filhos e os maridos para trás, raparigas jovens e sozinhas, e, até, num dado momento, o que o meu amigo nunca conseguiu entender se era alguém transsexual, um homem disfarçado de mulher a tentar fugir do alistamento obrigatório, ou apenas uma mulher extremamente masculina, a quem ele no entanto, diligentemente ajudou a carregar as malas. Entre viagens o meu amigo falou-me de como os discursos das pessoas que ele foi ajudando a escapar da guerra se foi alterando, como de repente, por exemplo, as mulheres com quem ele contactou nos primeiros meses conversavam com ele normalmente, não tinham qualquer receio de falar com ele ou entre elas e de como à medida que as semanas foram passado as pessoas que chegavam saltavam de terror ao ouvir uma porta bater ou, as mulheres, simplesmente tinham medo de ficar sozinhas com um homem desconhecido, falante fluente de russo, na mesma sala, de como essa consciência, ao meu amigo, lhe causa uma tristeza indizível e que tem nome, o reconhecimento de que a violação também serve como arma de guerra. Pergunta-me o meu amigo, que tipo de homem alguma vez faria isso a uma mulher e chamaria a isso o trabalho de um soldado? Falo-lhe de um poema de Álvaro de Campos sobre justamente isso, ele começa a falar do poeta que estudou na tese de doutoramento, Brodsky. Não temos emenda. Será justificável? Há algum tratado que possamos citar, algum pedaço de terra de que alguém se possa afirmar como justo dono que nos retire um pouco do nojo e do horror que sinto em relação a pertencer a uma espécie capaz de ser tão predatória e tão estúpida, quando o meu terror intercepta o do meu amigo, que quando está em Kiev diz à mãe que está na Polónia? O que é que me poderia possivelmente tirar a tristeza de viver num mundo onde a alegria da arqueologia e professores de grego antigo que escrevem tratados sobre o amor coexistem com gatos ucranianos mortos por obuses russos e pais que choram os filhos sem talvez nunca terem lido As Histórias de Heródoto, onde a dada altura é possível ler que a grande indignidade da guerra, o ponto em que sabemos que ela vai contra toda a natureza, é que em tempos de paz os filhos enterram os pais e nas guerras dá-se o horror inexplicável de os pais enterrarem os filhos.

A série mais vista no Reino Unido por estes dias é a muito digna e edificante narrativa de Tom Hanks Masters of the Air, que, não caindo numa glorificação acéfala dos heróis, glamoriza, quase por convenção do género, muito do que é o horror da destruição que representa, caindo na falácia de que a sobrevivência dos soldados no centro do enredo é alguma forma de força expressiva de um sentido de carácter e personalidade que talvez nunca emergisse sem esse horror. Isto em parte é consequência de ideia de que alguma espécie de mérito defende os heróis de morrer, entra nesse grande mito do nosso tempo, o da meritocracia e por aí do génio – duas coisas que sem dúvida não existem sem as comunidades e os seus contextos. Para que os heróis sobrevivam, no enredo de películas como a de Tom Hanks, é necessário que existam personagens que são secundárias, acessórias à sua caracterização. É aqui que a ficção não funciona de todo como a realidade e seria interessante questionar um pouco a história daquilo que é o conceito de personagem secundária, das suas representações mais e menos complexas nas ficções que usamos para entender o mundo em que vivemos. Ninguém, idealmente, é acessório no enredo da sua própria vida, é um pouco obsceno pensar na categoria de personagem dispensável para efeitos de caracterização de terceiros. Por outro lado, que o mérito é uma categoria ilusória em relação à sobrevivência é algo que fica completamente explícito num livro que se refere ao mesmo período histórico desta série, Se Isto é um Homem de Primo Levi. Não há fim para o absurdo do que Primo Levi tem a narrar e a total ausência de relação entre mérito e sobrevivência fica completamente explícita num dos primeiros episódios do livro, quando Levi conta que sobrevive a ser enviado para uma câmara de gás porque o oficial nazi encarregado de fazer a triagem entre os prisioneiros mais fortes e mais fracos sacrifica por um erro cometido num número um prisioneiro mais saudável do que ele e por isso mais capaz de trabalhar. A minha crítica aqui não é à série de Tom Hanks em si, que de resto tenho visto com interesse semelhante ao dos meus semicompatriotas ingleses, é ao facto de que, no seu lado de producto de entretenimento e consumo ela glamorizar o sofrimento humano, passar a mensagem de que algumas pessoas muito excepcionais são o modelo a ser seguido, que o mal não as destrói, não as corrompe, quase não toca a sua beleza e que isso basta para que tudo corra bem, para que ganhemos, quando numa guerra ninguém ganha nada.

O motivo pelo qual eu não consigo ver 20 dias em Mariupol não é por me querer manter desinformada, é porque há coisas que para mim têm de continuar a ser recebidas com a consciência do seu extremo horror e isso é porque preciso de me continuar a lembrar exactamente do que é o mal para o conseguir nomear, porque o pouco que me reste fazer talvez seja dizer que não quero que o sofrimento humano se torne para mim apenas televisão. E isso é para não ter a ilusão de que qualquer coisa neste planeta, qualquer ideologia de merda sobre fronteiras e bandeiras e posse de territórios e desrespeito por aquilo que Sena nomeia no seu prefácio como singelos e modestos valores imanentes, possa servir para dizer que alguém merece continuar vivo enquanto outros não.

Oxford, 16 de Março de 2024