Salvar o Futuro ou ser um herói do sucesso?

Karl Valentin

Vivemos com o «stress da nossa imperfeição», diz Peter Sloterdijk numa entrevista recente ao El Pais, no âmbito da tradução para castelhano do seu último livro: Wer noch Grau gedacht hat: Eine Farbelehre (Quem Ainda Não Pensou no Cinzento: uma Teoria da Cor). Acrescenta: «O horizonte é sombrio, o sentimento de que o nosso mundo está condenado é omnipresente». Em vez de desejarmos o futuro, afastamo-nos dele refugiando-nos em «atitudes frívolas».

Parece fácil aceitar esta visão, que no caso do filósofo alemão é a de um niilismo feliz, ou, como ele por vezes diz, de uma poesia da resignação. Tudo leva a crer que o futuro já não tem luz suficiente para aquecer o presente, faz todo o sentido, pois, repetirmos Karl Valentin e o seu «Dantes, o futuro era melhor».

Felizmente a psicopolítica e a psicogestão não param de nos surpreender. Muitas vezes sem querer, acredito que são legião os enganadores enganados que se candidatam a empregos de controlo (de qualidade e de fala de qualidade). É assim que vemos emergir máximas de incitamento à crença alegre do tipo «Inválidos do Comércio», «Heróis do Sucesso» ou «Impulso Fundamental», em, respetivamente, associações corporativas, transportadoras e empresas de construção civil. Os mais epicuristas verão nestes batismos a vontade, talvez ingénua, de lutar contra o cinzento de hoje. Os mais estoicos, incapazes de se iludirem mas acreditando secretamente na vida eterna, confirmarão a suspeita de que fazia mais sentido esperar por Godot. Os otimistas, elogiarão as capacidades dadaístas do humano, continuando a remeter sub-repticiamente para Deus a responsabilidade de resolver os problemas do fim do mundo (fim deste ou daquele mundo).

Para Deus ou para uma Igreja secular que se dedicou a fazer política e tem a convicção, sem porquês muito pormenorizados, de que se governar um país bailaremos e cantaremos até de madrugada, haverá um novo Cântico dos Cânticos, uma religião do amor, não já ditada pelo distante, incomensurável divino, mas pelo homem, pelo homem e para o homem. Seremos, finalmente, bem-sucedidos contra os factos do mundo. Cessará o niilismo, essa obsessão de viver e propagar desvalorizações, da vida inclusive. Sem almas doentes (depois da ação da nova política curativa), o mundo real e o seu potencial de alegria poderão propagar-se e perpetuar-se.

Onde poderemos vislumbrar essa potência psicopolítica da suprema motivação (motivos intensos e justos)? Claro, há muito charlatanismo, já que aumenta diariamente o número dos que querem ser enganados, é essa a economia pujante e basilar das fake news (nunca se tratou verdadeiramente da verdade e da mentira, mas de querermos ou não ser enganados por coisas que parecem aumentar a nossa autoestima), mas há também o trabalho, honesto e ousado, de encontrar uma expressão-dinamite que nos ponha todos a correr para o mesmo lado. Encontrei ontem a minha: «salvar o futuro». Assim mesmo, um partido político português propõe-se, nem mais nem menos, salvar o futuro. Isto é, preservar uma coisa que não existe (a ontologia do futuro só pode ser negativa, mesmo acreditando com toda a força possível na causalidade), mas com a qual as pessoas ainda sonham. Como escreve Silvina Rodrigues Lopes, no magnífico O Nascer do Mundo nas suas Passagens, no futuro dirigimo-nos para o desconhecido, temos a «expectativa de haver futuro».

Será uma espécie de Ética de Responsabilidade à la Hans Jonas? Sim e não. Sim, porque queremos que a vida continue, e nessa continuação seja mais fácil e autêntico viver. Não, porque parece que o futuro se extinguirá se esse partido político não o salvar (Hans Jonas nunca foi tão catastrofista nem megalómano).

Para lá da óbvia contradição (não se pode salvar o porvir, embora o presente condicione as condições de adversidade com que continuaremos a viver), haverá sempre futuro, poderá é ser um futuro de merda (para uma ecologia-geral, esqueçamos os humanismos especistas). Retenho também que estamos perante a evidência de que se trata de um caso de suprema presunção, forjado nos gabinetes de especialistas em comunicação (todos os grupos políticos têm, e valorizam desmedidamente, estes funcionários do slogan): só aquele partido pode salvar o futuro, qualquer outro que ganhe mostrará a impotência profetizada em negativo, mantendo-nos alienados no presente sombrio e no ressentimento do passado, onde fomos todos ou réus ou vítimas, ou colonizadores ou colonizados.

É por tudo isto que prefiro o slogan «Heróis do Sucesso», passado para a arena política podia servir um ecossistema psicopolítico mais à direita, talvez mesmo Trump o pudesse usar com proveito.

As Cidades Invisíveis, Italo Calvino

Esta semana, aguilhoaram-me dois moscardos (para recuperar uma imagem de Sócrates, o filósofo). O primeiro foi Heraclito (VI-V a. C.), que parece ter dito o seguinte: «É preciso apagar a desmesura [húbris] ainda mais do que um incêndio.» O segundo foi Italo Calvino (1923-1985), ou melhor, um comentador deste soberbo escritor, Alfonso Berardinelli, num artigo publicado na revista Electra (nº 24, Primavera 2024, pp. 18-25), «Calvino e o pathos da distância».

Fui aguilhoado e comi uma madeleine (talvez como Proust), ativando a memória de As Cidades Invisíveis, recordo o espanto, o encantamento e a admiração que lhe dediquei. De que darei nota aqui depois de atendermos ao que escreveu Berardinelli.

Diz este conhecido crítico italiano: «É difícil imaginar um destino literário mais bem-sucedido e feliz do que o de Italo Calvino.» Todos o admiraram e amaram (leitores, críticos e académicos). Calvino «desconfiava do romance» e «evitava o espírito das vanguardas». Preferiu produzir textos com «micro-história» e fazer uma literatura acessível, «queria ser um escritor para todos, mesmo quando a sua escrita narrativa pressupunha uma teoria narratológica do mito e da fábula». Por isso, restringia o material narrativo ao mínimo. Sem condescender com o seu moralismo da ordem e da higiene mental, mantendo afastados «os medos, as angústias e as dúvidas paralisantes». Berardinelli coloca-o próximo do estruturalismo, porque quis superar a confusão da sua época: «E o que era o estruturalismo senão uma nova codificação retórica das formas literárias, depois das aventuras anárquicas e do angustiante desafio ao caos expresso pela modernidade?» Além do mais, «É um escritor reconfortante. Na sua narrativa, ninguém sai ferido. Ninguém é vencido, nenhuma lágrima é vertida, nunca é emitido um suspiro ou um grito. Ninguém reclama, ninguém acusa nem é acusado».

Agora, as minhas notas, mais de reflexão do que repetição ou destaque. Em As Cidades Invisíveis, Marco Polo é, primeiramente, um aventureiro que se exila numa China que é quase outro mundo, e depois um viajante por conta do imperador Kublai Khan, com a missão de lhe contar o que vê no seu império, as realidades, invisíveis para o conquistador, do seu imenso território. Visitará cidades, várias cidades, cada uma delas com o seu próprio ethos. As personagens do livro são, pois, Marco Polo, Kublai Khan mas igualmente as cidades que este último conquistou e que Marco Polo visita e descreve. Instaura-se então um vaivém de Marco Polo entre as cidades (só aparentemente de uma China medieval, mais exótica e improvável do que atrasada ou pitoresca) e o palácio, para relatar o que observou ao seu Senhor. Portanto, o princípio narrativo está na impossibilidade, ou falta de vontade, de um imperador conhecer o que detém. Khan desconhece o seu império e escolhe um estrangeiro (ignorante) para lho dar a conhecer. Estrangeiro que, neste caso, terá sempre como ponto de referência implícito a sua cidade: Veneza (são várias as peças venezianas nas cidades do imperador). Mais, no início, Marco Polo não fala a língua de Kublai Khan, inventando um novo código (dança, sons, gestos, objetos…) para descrever o que viu. Esta novilíngua, com uma pureza semiótica surpreendente, tem força literária, mas também filosófica: com que grau de fidelidade é possível pôr algo em comum? Apesar dos esforços e do relativo sucesso da comunicação, Kublai Khan parece interessar-se mais pelo que pensa e ressente Marco Polo do que propriamente pelas cidades. Mostra igualmente interesse pela viagem que Marco Polo fez desde Veneza até ao Oriente. Curiosamente, quanto mais os dois homens se compreendem, mais tempo ficam em silêncio.

Por que razão as cidades são invisíveis? Que estranha forma de apostar no ausente. O óbvio é que Kublai Khan não viu, nem pretende ver, pelo menos in loco, as suas cidades. Mas este critério podia ser invertido: Marco Polo vê as cidades. Porque não, então, chamar As Cidades Visíveis ao livro? Talvez sejam invisíveis porque são utópicas (no sentido literal de não-lugares), cidades exclusivamente literárias, imaginadas, fantásticas, produto onírico mais do que hermenêutico. Não ideais, mas construídas a partir de ideias, em vez de matéria. Talvez sejam uma forma de Calvino construir cidades, de o domador de palavras se aventurar na arquitetura, e na política, e na antropologia… Uma cidade é um ecossistema extremamente complexo e multiforme. Uma cidade de Calvino é-o ainda mais. Porque pode ser uma cidade de memórias, ou de desejos, ou de signos, ou de trocas, ou de olhares, ou de mortos, ou do céu, ou escondida, ou de instabilidade, ou de continuidade, ou… Uma estética «à la De Chirico», como alguém lhe chamou. No fundo — é nos abismos da racionalidade que os enigmas são solúveis ou insolúveis, definitivamente —, tudo pode não passar de uma invenção de Marco Polo, ele pode ter inventado, antes do próprio narrador, todas aquelas cidades. Aliás, o próprio Kublai Khan desconfia das narrações do seu mensageiro. Que pode, inclusive, não ter viajado pelas cidades que descreve, tendo-as simplesmente imaginado desde os seus aposentos. Até porque é evidente, como referi acima, que a representação, imaginada ou vivida, das cidades do império de Kublai Khan é composta por inúmeros fragmentos da cidade de Veneza.

O livro tem uma estrutura serial, cada tema ligado a uma cidade está na origem de uma série de textos. Onze séries com cinco textos cada uma delas. Há ainda uma linha de estruturação assente na divisão do livro em nove capítulos, compostos por cinco textos pertencentes a diferentes séries, exceto o primeiro e último capítulos, compostos por dez textos. Finalmente, a estrutura também resulta de um importante metatexto, constituído pelos diálogos entre Marco Polo e Kublai Khan. Esta estrutura multimoda pode dar pistas de leitura, bem como, para mim mais importante, a ideia, explícita na conclusão do livro, sobre como é importante reconhecer o que não é infernal nos caos citadinos. Recomenda-nos, pois, embora sem realmente se querer intrometer nas decisões dos leitores, uma leitura atenta, única forma de encontrar aquilo que brilha na escuridão ou, mais difícil ainda, aquilo que brilha e se distingue na máxima luminosidade.

Os educadores que nos libertam

Nietzsche leu, em profunda admiração e embriaguez filosófica, O Mundo Como Vontade e Como Representação de Schopenhauer em 1864

Deus morreu, os monoteísmos, foram-no envenenando até o tornarem ou anódino ou fanático (o excesso revela o desespero perante o féretro). Libertos da figura tutelar (iconográfica, bibliográfica e ritualógica), parecia que finalmente corríamos o grande, heroico risco de sermos livres, tornando-nos aquilo que somos. Depois, sem nos apercebermos, surgiram os influenciadores globais, exímios gestores do senso comum. Iniciou-se uma nova era de alienação, aliviando o stress aos mais ansiosos.

Conhecemos o «Como nos tornarmos aquilo que somos» (Wie man wird, was man ist) do subtítulo de Ecce Homo de Friedrich Nietzsche (1888). Mas todas a sua obra é pontuada por uma tensão para se ser o que se é, impondo-nos a responsabilidade pela nossa vida (só tornando-nos aquilo que somos confirmamos o seu valor). A vocação de cada um é, antes de mais, tornar-se aquilo que é, única forma de nos diferenciarmos da massa humana dos iguais, humanos, demasiado humanos. Pelas ações, como queria Píndaro (e os Gregos, para os quais o «cogito ergo sum» de Descartes seria quase incompreensível, viviam num mundo agonístico, no qual cada indivíduo corria o constante o risco de cair na desmesura, dele ou de outrem, humano ou divino, cada grego era mais um elemento do grandioso pathos trágico, feito de uma poiética do sofrimento), mais do que pela reflexão, mesmo reconhecendo a qualidade e a força da autoanálise crítica nietzschiana.

Tornarmo-nos aquilo que somos (werde, der du bist) parece ser um paralogismo, dedicado a manipular uma racionalidade exaurida de dispositivos críticos. Como podemos tornar-nos aquilo que já somos? Talvez Nietzsche queira renovar, noutros termos e noutra trama vital e filosófica, o «Eu sou aquele que (quem) sou» do Antigo Testamento. Manter a potência, talvez trágica, da autonomia individual (sou eu que me torno aquele que sou), acrescentando-lhe (o que é uma revolução ontológica) o processo, dentro do tempo, e da temporalidade, do eterno retorno, de me tornar, de me ir transformando, autotransformando, modelando um qualquer barro original, feito de genética, de social e de vontade.

Na terceira Consideração Intempestiva, Schopenhauer Educador (1874), consagrada à figura solitária do mestre filósofo, o seu mestre, Nietzsche defende, a partir de uma conceção da genialidade romântica, evitando o pessimismo niilista schopenhaueriano, isto é, um pessimismo insolúvel, que se os jovens querem ser livres devem saber o seguinte: «Um homem nunca se eleva tão alto como quando não sabe aonde o levará o caminho que escolheu» (citação de Ralph Waldo Emerson, que foi emulando ao longo da sua vida). E não sabe porque os impulsos que o levam a escolher vão sendo definidos, não por uma qualquer essência, alojada no centro do seu eu, que seria ou não possível reconhecer, mas pelas influências, tantas vezes paradoxais, dos mestres, dos educadores, como Schopenhauer. Mestres que devemos seguir, com certeza, mas também trair, com o mesmo grau de necessidade.

Eis o que Nietzsche diz nessa Intempestiva, cap. 1, depois de perguntar sobre como nos encontramos a nós mesmos («Aber wie finden wir uns selbst wieder?»): «O que é que realmente amaste até agora, que coisas te atraíram, o que é que te dominou e, ao mesmo tempo, o que é que te preencheu? Observa a série completa desses objetos venerados e talvez eles te revelem, pela sua natureza e sucessão, uma lei, a lei fundamental do teu verdadeiro eu (eigentlichen Selbst). Compara estes objetos, vê como eles se completam, se ampliam, se ultrapassam, se transfiguram, como formam uma escada pela qual subiste até ao teu eu. Porque a verdadeira essência não está escondida no teu íntimo, mas incomensuravelmente acima de ti ou, pelo menos, daquilo que tu consideras habitualmente o teu eu. Os teus verdadeiros educadores e formadores (Erzieher und Bildner), aqueles que te formarão, revelarão aquilo que é verdadeiramente o sentido original e a substância fundamental da tua essência, em todo o caso aquilo que é de difícil acesso, como um feixe atado e rígido: os teus educadores não podem ser outra coisa que não os teus libertadores (deine Erzieher vermögen nichts zu sein als deine Befreier).»

Manhã e Noite, Jon Fosse, nota de leitura

Acabei de ler, chegando tarde, como quase sempre me acontece, sem nenhuma virtude especial, relativamente ao que entra em ebulição, Manhã e Noite, um romance do último prémio Nobel da Literatura, o norueguês Jon Fosse, editado pela Cavalo de Ferro, tradução de Manuel Alberto Vieira, com 111 páginas divididas em duas partes. Na primeira, curta, descreve, quase em direto, o nascimento de Johannes, filho do pescador Olaï e da sua mulher Marta, relato pontuado pelas observações, práticas e determinadas, da parteira, uma voz de quem sabe mais do que ajudar a dar à Luz. Johannes nasce no meio de uma frase, o pai ouve os sons do parto, pensa em Deus e no filho que se tornará pescador, como ele. Na segunda parte, o autor narra um dia no qual Johannes, já velho (um salto no tempo que vai sendo preenchido, mas não muito, ao longo do livro), reformado, depois de criar sete filhos e da mulher, Erna, haver morrido, encontra o seu amigo Peter (não se sabe imediatamente se está vivo ou morto), também pescador, na praia, embarcando com ele para pescar caranguejos. No regresso experimenta, entre outras coisas, um encontro espectral com a filha querida, Signe, que passa através dele sem o ver (é um livro sobre passagens). A história começa, pois, com um nascimento e termina com a morte, ou melhor, com o morrer.

Um livro com poucas, pouquíssimas peripécias, aposta antes num movimento fluido entre o mar e a terra, as recordações e a realidade tangível, o sonho e a vigília. O protagonista viaja entre a frugalidade do passado no limiar da pobreza mas com a casa cheia de vida e o conforto de reformado solitário, hoje. Todos os filhos foram bem-sucedidos, Signe mora perto e encontra-a muitas vezes. Johannes ainda pesca, por recriação, agora. Fuma e bebe café. Mas a casa não aquece, por mais lenha que queime. Através de uma escrita minimalista, quase um processo de criação automático, o narrador «descobre as coisas à medida que as escreve», compondo como fosse uma espécie de improvisação musical.

O estilo, marcado pela repetição, pela pontuação inesperada (aproximando-se, sem complexos, da oralidade, mas também de outra coisa que não isso, como se quisesse encontrar ritmos e significados mais arcaicos) e pela alternância de perspectivas (sem ser verdadeiramente polifónico), é perfeito para esta deambulação, lenta e resignada, entre a vida e a morte, com a qual ele diz aquilo que tem para dizer. A derradeira jornada de um impreparado ser para a morte, impressa numa prosa original e honesta. As paixões tristes dominam o romance, mas, contra Espinosa, elas trazem uma vitalidade tranquila (acrescentam ser), a que se pode chamar melancolia criadora, ou bela melancolia, fortalecendo os leitores. Este livro permite sentir as vibrações dos abismos da vida, essenciais para completar o ciclo, ou ciclos, da existência. Sem a intenção, todavia, de abalar, quando nos resgata da banalidade não o faz arrastando-nos para novos mundos, reorienta somente, de forma ligeiramente iconoclasta e através de uma arqueologia sobre o viver, a viagem interior que prosseguimos desde que nascemos. Não pegamos fogo ao lê-lo, é verdade. Mas é um bom mergulho, e podemos tomá-lo por si mesmo ou como um meio para pensarmos sobre o profundo sem a ditadura do fundamento.

Porque choramos e rimos perante a mesma coisa

Regresso a casa e ponho-me à procura de um livro de Montaigne que a Penguin editou há uns anos. É uma colecção breve cujo título traduzido para português significa “Porque choramos e rimos perante a mesma coisa.” Regressei a pensar nesse ensaio que li há muito tempo, porque há uns dias, sentada num café em Siracusa, tive vontade de chorar e rir perante a mesma coisa, esse humor que supõe um rasgão no centro do que quer que seja essa entidade a que chamo “eu,” já sem grandes ilusões sobre coerência total, que é de resto o ponto do ensaio de Montaigne. Ele fala de como não é hipocrisia querer chorar e rir ao mesmo tempo, como isso é por vezes um movimento que acompanha as emoções da incoerência, resposta perante o absurdo que se nos apresenta e faz emergir uma implícita resolução que se torna força constitutiva.

Uma manhã em Siracusa, em cima da mesa comum da cafeteria onde ia todos os dias tomar o pequeno-almoço estavam os jornais do dia. A princípio ver os jornais desportivos fez-me rir, é uma coisa de países do sul. Em Inglaterra isso não existe. Os jornais diários têm uma secção de desporto e é tudo. Na pilha procuro o jornal diário, um qualquer, e os meus olhos batem num título de duas linhas na primeira página que diz algo como: “Papa declara que armas e contracepção são uma ameaça à vida humana.” É então que eu me lembro de Montaigne e começo a ter vontade de chorar e rir perante a mesma coisa. Envio uma fotografia da página a um amigo italiano (por sinal o amigo que trocou de lugar no universo comigo e está agora sentado a olhar para os meus gatos em Oxford) e ele responde num minuto dizendo: “não acredito que haja esperança para o meu país,” o seu desânimo ecoando no meu. Eu, entretanto, começo a ler a notícia que de facto confirma o que sugere o título, o Papa Francisco equipara armas e contracepção, declara-as ambas uma ameaça à natalidade, um problema que de resto é particularmente pronunciado em Itália, que tem uma taxa de natalidade severamente decrescente. Este octagenário, teólogo máximo, teve a estranha revelação de que estes dois objectos, armas e contraceptivos, têm afinal o mesmo propósito e em certo sentido servem-se do mesmo meio para o obter: o propósito é ameaçar a vida humana, coincidindo nesse fim por meio da obstrução da existência humana. As armas alcançam sucesso destruindo vidas humanas já existentes, a contracepção as potenciais. Eu peço um sumo de laranja. Eu sei agora que sou uma ameaça à vida humana, no mesmo sentido em que um soldado russo ou israelita munido de uma metralhadora o pode ser. Para o absurdo funcionar, para termos vontade de chorar e rir ao mesmo tempo, perante a mesma coisa, por vezes, há estruturas lógicas que têm de desaparecer. As armas que o papa Franciso tem em mente não são nomeadas, pelo menos na notícia, em relação com os soldados que as empunham, os mercenários e os assassinos que pegam nelas, mas apenas “armas,” quem está a pensar na Ucrânia e na Palestina sou eu. E quando penso na Ucrânia e na Palestina reparo que não consigo elencar que indústrias exactamente e em que países mais fornecem armas a estes conflictos. Sei que os Estados Unidos fornecem armas a Israel, o que deixa este país numa situação absurda: por um lado, estão a fornecer as armas que estão há meses a matar indiscriminadamente civis palestinianos, por outro, continuam a enviar ajuda humanitária. Sabemos que a Rússia tem a sua própria indústria de armamento. Penso nestas coisas e tenho vontade de chorar e rir ao mesmo tempo. Para a contracepção poder ser equiparada a uma arma o que tem de desaparecer é de outra ordem e são na verdade duas coisas que têm de ser apagadas. A primeira, para mim, por causa do meu preconceito de género,  é o direito das mulheres à sua auto-determinação. Podemos ignorar aqui que, por exemplo, há mulheres que simplesmente não tomam contraceptivos para efeitos anti-concepcionais, que isso não é para elas um argumento relevante. Mas talvez valha a pena notar que o Papa, que nasceu com uma pilinha, nunca vai saber o que é acordar de manhã, cego de dores no abdómen, mal se conseguindo mexer, tomar um par de analgésicos que no fundo não servem para nada, e arrastar-se até ao emprego, tentando permanecer funcional. Ou ir para a escola e tentar fazer uma aula de educação física nesse estado, uma quantidade de sofrimento bastante considerável que um comprimido tomado todos os dias, ou um dispositivo intrauterino, pode resolver facilmente. Certo que não são apenas mulheres que tomam contraceptivos, mas estatisticamente sabemos que os meios mais eficazes de contracepção são consumidos por elas, não por eles, sabemos que historicamente os contraceptivos foram fundamentais na emancipação das mulheres e, já agora, na subida da qualidade de vida globalmente. O que me leva à segunda coisa que tem de desaparecer para o Papa poder fazer esta afirmação: o seu respeito pelo direito à escolha de cada um, algo que alguém que se vê diante de uma arma deixa normalmente de ter. O discurso do papa é também ele potencialmente uma arma, deseja impedir a liberdade de escolha da parte da população que quer tomar contraceptivos em paz, sem matar ninguém, eventualmente para não matar ninguém. Daqui podíamos até falar de mulheres para quem chegar a tomar a um contraceptivo é um absoluto privilégio, eventualmente uma maneira de garantir a melhor sobrevivência de filhos já existentes. Existem depois todas as questões de outra ordem que nada têm a ver com esta e são tão variadas quanto os motivos pelos quais as mulheres resolvem (ou não) tomar contraceptivos – uma decisão que há algumas décadas elas deixaram de ter de justificar seja perante quem for. Um facto permanece. Para mim, perante esta afirmação, eu vejo a misoginia cruzar-se com a narrativa do meu pequeno-almoço: são as mulheres quem tem de desaparecer da equação, com a sua auto-determinação, com a sua liberdade de escolha, para um contraceptivo ser igual a uma arma, para um homem poder dizer que um contraceptivo é uma arma. Ou talvez o problema sejam mulheres armadas de contraceptivos, por oposição a homens armados de espingardas. Mas é engraçado notar a eventual correspondência entre os idiotas que gostam de brandir armas para matar os filhos dos outros e aqueles que pensam que tomar um contraceptivo é um gesto equivalente, que pode ser comparado logicamente. A minha vontade de chorar e rir ao mesmo tempo diz-me que são normalmente pessoas de espírito semelhante que gostam de brandir armas e obliterar a liberdade dos outros. Por algum efeito irónico, tenho um bloqueio qualquer que não me permite fazer uma distinção moral entre estas duas categorias de pessoas: as que brandem armas, as que gostariam de manter controlo sobre escolhas dos outros, tomadas em consciência, liberdade e legalidade. Ambos não costumam ter grande empatia por aquilo que é a trajectória de uma vida humana no sentido em que a vida, plenamente falando, naquele ponto de crise onde Montaigne a isola, no maravilhamento de ela poder ocorrer numa torção que acolhe um sentimento e o seu contrário, não existe sem escolha, não começa sem tolerância e um profundo cuidado, quase veneração, perante o direito dos outros de escolherem como querem que seja a trajectória das suas vidas. Paradoxalmente, de modo quase reaccionário, digo que haveria menos idiotas agarrados a armas se estivéssemos mais próximos desse ideal de ter algum respeito e empatia pelas vidas dos outros, as que já existem, não as imaginárias.