O meu destino é morrer mas primeiro quero estar vivo

Decidido a não mais tomar calmantes, pontapeou a porta que dava para o terraço e, abençoado por um crepúsculo clamando por gestos românticos, atirou para longe um frasco cheio de néctar tranquilizante que voou graciosamente contra a parede de uma vizinha velha cuja existência não servia para muito mais do que para berrar com o fantasma do marido morto à navalhada na guerra do Ultramar. Depois de um dia sem dores, entrou num inferno de cefaleias, de pânico e de alucinações. Enfiava-se na banheira buscando alívio para as têmporas a explodirem, suava e espirrava fizesse frio ou calor, como se tivesse gripe. Procurava agir com normalidade, o seu quotidiano consistia apenas nisso, em fingir que conseguia raciocinar e escutar e responder e sorrir. Estou bem, estou bem, mas estes dedos de mulher, tenho mãos de mulher e umas unhas tão disformes, remoía, colando a mão ao espelho, que nojo, dedos esgalgados, meto nojo, pensava que a sua mão não lhe pertencia, que a sua mão tinha sido roubada a uma lavadeira. Uma vizinha mascarada de piolho visto ao microscópio apareceu-lhe munida de um saco a transbordar de fezes de cão e de um rol de ameaças possível de resumir na seguinte frase: se o seu cão me volta a cagar no telhado, rasgo-lhe as tripas. Ao contrário de outras situações, em que não se inibia de ripostar com intimidações, tais como experimente matar-me o cão a ver se não não lhe entrapo a focinheira à chapada, acenava que sim, prometia não voltar a permitir que o cão se atirasse do terraço para telhado da mulher, engolia a saliva com dificuldade por causa do inchaço nos gorgomilos. Sim, sim, bichanava, procederei da maneira que a senhora considerar mais adequada. Pálido e enfezado, baixava a cabeça e sim, senhora, claro, amanhã de manhã mando montar um caixote de aço e lá dentro enfiarei este reles e poltrão cão. Responda, mugia a vizinha piolha, entre abanões e cuspidelas na cara, mexa-se, um dia destes vem a chuva e os cagalhões do seu cão entram-me pelo tecto. Estirado na cama, o cão dormia indiferente à histérica plantada na cozinha. O animal só se erguia para comer e defecar, dormia vinte e duas horas e ai de quem lhe tocasse, ai do dono que se atrevesse a aproximar-se desprovido de um biscoitinho para amaciar o dente, arcava com tenebrosas consequências. As marcas de dentada eram mais do que muitas, chegar-se ao bicho só se sofresse de idiotia, antes dormir sentado na sanita. Caixa de aço, claro. Daqui a pouco passa a noite e voltas a cobrir as telhas da vizinha de castanho, morres de gordo e enterro-te e evaporam-se as dentadas. Recostava-se no sofá, contava as horas que faltavam para o fim da escuridão eterna, daquela insónia resistente ao cansaço e a tudo, tudinho, excepto aos comprimidos alaranjados, e divagavava sobre as razões que o tinham levado a abdicar do clonazepam:

vontade de sentir até os sentimentos mais negativos, querer estar vivo, foi isso que procurei nos comprimidos, estar vivo e afinal não me encontro entre os vivos, com os comprimidos comporto-me como uma pessoa dita normal, não me excedo, não me enraiveço, tolero o que for, não estou vivo, respiro, que problema, tomar comprimidos é como fazer uma pausa da existência, por fora estou eu, vêem o idiota do costume, e por dentro nada respira, poderia morrer-me um filho que não chorava, coisa boa para alguns, horrendo para quem procurou nas drogas a solução para a ausência de existência, todas as semanas ter medo da reacção do médico, recear comportar-se como um ser vivo, fazer o possível para assemelhar-se a um menino reguila que, consciente da sua rebeldia, das consequências da sua rebeldia, o fracasso, passa a menino de igreja, boa tarde, senhor prior, é a nossa senhora de fátima a rezar por nós, perdão para mim, os remédios não me tornaram no menino rebelde que desejei ser, agudizaram ainda mais a consciência de que deveria ser o bom samaritano, não vivo, caminho telecomandado.

Morria,  desviava-se dos seus sonhos. Sempre à espera, cada vez mais à espera, como uma máquina. Por isso largara o rivotril e largaria o resto até que se sentisse tão vivo como as criaturas da sua espécie que mais invejava. Aguentava as humilhações, a privação, a vizinha e o cão. Sairia mais forte, mais capacitado de que apenas as suas mãos, as mesmas mãos de lavadeira, o conduziriam para o seu destino.

Podridão Poética

Há livros com corpos vertidos dentro,
que só a morfina do olhar
impede de sentir.
Lá dentro
a imundície e a podridão.
As respirações mortas
e os restos de carne ainda pulsante.
Os gritos ainda perfuram.
As lâminas continuam a cortar.
Os corpos vertem-se lentamente 
escorrendo dos dedos do autor.
Sangram gota a gota para as páginas
que, fétidas, me vêm depois visitar.
Mas nenhum livro sem este cheiro
merece ter a oportunidade de existir.

A carta

 Um qualquer dia/ de qualquer mês/ de qualquer ano

           

            A um leitor,

            Esta cidade podia ter um qualquer nome, podia até nem existir. A sua capital é a nossa, não conhece os confins que limitam o mundo. Aliás, posso garantidamente dizer que o mundo habita aqui, não me sinto daqui ou de acolá, mas sim, pedindo licença ao grego mestre, cidadão do mundo, e talvez por esta razão não me é estrangeira. Na verdade, sinto-me como se nunca tivesse saído de casa, não que isso signifique a completa ausência de novidade, há-la aqui e em abundância, seja em que província for; refiro-me à inusitada sensação de familiaridade ao saltar, digamos desta maneira para bem ilustrar, de uma página para a outra. Se fosse possível reunir todas as cidades do mundo numa só, seria este o local. Não me peçam que a localize no mapa, por favor, seria uma perda de tempo, todos vós lá estivestes.

            Podemos em cada região contemplar exemplos sublimes de arquitectura, maravilhas de  engenharia, belas articulações de palavras; podemos misturar-nos nas rumorosas avenidas ou fecundar o sossego de uma viela, abrigar-nos sob as copas das árvores de jardins frondosos de cores de Outono, ou perder-nos nas ruas em descuido e decadência rodeadas de prédios abandonados onde os brados morrem e se sentem as preces de piedade e boa vontade, ou pode acontecer que nos percamos no mais obscuro beco que a nossa imaginação ouse recriar. Afinal de contas, uma cidade não é feita de turismo, não é feita apenas do belo que ofusca o obscuro, muito menos uma plural em cidades como esta. 

           Há, sobretudo, que saber distinguir o turista do habitante, este último, se aguçarmos os nossos dotes de observação, revela a sua verdadeira identidade pela familiaridade com que olha para tudo o que compõe a cidade, para um monumento, por exemplo, como se o saudasse, passada já a condição de forasteiro com que inicialmente aqui se entra, num acto preambular de introdução, e uma vez ultrapassadas as cortesias ali nos deixamos ficar em diálogo, no silêncio que nos conta sobre as pedras de que também somos feitos.

            Nem seria oportuno discorrer sobre os costumes da população, pois note-se que o único hábito verdadeiramente consueto é a alternância do quotidiano conforme o visitante, coisa que parece aplicar-se às próprias ruas, históricas ou novas, aos parques viçosos ou aos bares de eleição que transmigram alegremente a sua existência para outra morada; imagine-se que encontrei o Bar Utopia cinco quarteirões depois do lugar que me fora indicado, e a Praça Calípole ao fundo da rua à esquerda, chegando à encruzilhada, e não à direita. As paredes desta grande metrópole estão recheadas de testemunhos deste tipo, autênticas margens de apontamentos e reflexões de toda a natureza. Quem visita esta cidade fá-lo geralmente sozinho, porém, ainda que acompanhado, a urbe estender-se-á para cada um consoante o modo com que os olhos absorvem a paisagem tingida, que se erguerá com o orto do sol a Este para um, e a Oeste para o outro.

            Os aspirantes a futuras viagens sintam-se perdidos, sem rumo, não importa para onde vão desde que saibam que todos os caminhos vão dar além de Roma. Existem uns tantos que conduzem até cidades inexistentes, com mais população do que aquela que ousamos imaginar, onde melhor e livremente somos errantes a cores através de preto estampado no branco.