n.g. despede-se de l.g.

Natalia Ginzburg, Roma, s.d.

pensei em escrever-te para te dizer
que estou sã e salva
com todos os meus demónios no paraíso 

a tempestade da história
despenhou-se contra as janelas
estilhaçando todos os vidros
e arrancando todas as portas e passou
com o seu cortejo de camisas negras
com as suas danças obscenas
de destruição e massacre
com a sua louca sede de sangue
e deixou-me agora em paz para sobreviver 

mas esta noite sonhei que tornava a abraçar-te
toda a gente que nos importa estava presente na sala
e desta vez era eu quem ia partir por longo tempo
e penso que os teus braços à volta do meu torso
paravam completamente o tempo
que ainda assim entretanto acelerava loucamente
em todas as estações de onde partem comboios 

desde que te abracei pela última vez
calada da noite
prisão de regina coeli
evito tornar a tocar em pessoas  

é de perto que o teu rosto é um mapa
com as suas três constelações de incêndio
e a memória não explica isso
é só quando ele se aproxima
que me lembro que é preciso parar de procurar
nos olhos dos outros a morte que virá e terá os teus olhos
e nada me devolve essa inocência
que perdi e que quando ameaça voltar
aprendi a amordaçar violentamente
a troça e cinismo 

há muito que não perturbo ninguém
para não procurar impressões que me torturem 
às vezes vejo claramente os teus pés descalços no chão
as tuas mãos nuas sobre os livros
penso que os teus gestos apagam as datas
tornam inúteis todos os calendários
vou e volto do trabalho
que fica perto de casa
enviei os nossos filhos para turim  

arrasto comigo o peso de todas as tuas ideias
a minha claríssima memória da tua voz invade tudo
e as tuas ideias na minha cabeça
vão continuar a ter para sempre
a duração de uma interminável página acesa
impressa com uma pequeníssima fonte
muito difícil de ler
sob um candeeiro clandestino 

é preciso que me lembre sem suspeita
sem medo de viver
que nos livros e no que escreveste
procuravas ocupar-te
dos incertos recomeços dos vivos
os seus barcos de regresso
depois das diversas mortes

Nimborio, Simi

10 de Agosto de 2021

beco

tréguas nenhumas
ao que fazemos deixamos de fazer
pois tudo se entende vão 
como parece no mero
engenho planeado de querer
prontificar a redoma bonita 
intacta para apreciação
em justa
medida justamente
sem razão pra existir
e depois ainda a sentençazinha 
com ares de sapiência 
máxima de quem viveu
antes de nós

hoje 
qualquer
porta se fecha
assim sem janela 
que valha uma aberta que seja
eis o imbróglio destes dias
a espada face à parede
a aflição em apneia lá metida pelo meio
e resquícios estilhaçados da dignidade:
o disfarce a caraça do sorriso
sempre na urgência de esconder
como se um prego forte sobre a maré cheia
pudesse fixar a fundo essa humanidade

Putin: a loucura da nostalgia imperialista

Traduzo um texto de Michel Eltchaninoff publicado na revista philosophie magazine, 21 de março. É sobre as alucinações maléficas de Vladimir Putin, alimentadas por pulsões e narrações do tempo da URSS.

«Desde a invasão da Ucrânia tenho, por vezes, a impressão, ao ouvir Vladimir Putin, de que ele regressou à infância. Este homem, nascido em 1952, Leningrado, fala cada vez mais da forma como se fazia na URSS. Isso marcou-me logo a três de março, quando reconheceu publicamente baixas humanas na sua “operação especial”. Debitou aí uma narrativa de guerra canónica. Contou a história sacrificial de um jovem oficial do Daguestão, Nourmahomed Engelsovitch (sic) Gadjimhomedov, que “ferido, se bateu até ao último sopro de vida e fez explodir com uma granada os soldados que o cercavam, matando-se no ato. Foi até a este extremo porque soube a quem fazia frente: neonazis que humilham os prisioneiros e os matam selvaticamente.” O presidente russo ressuscita as narrativas de guerra que embalaram a sua infância — recompondo a realidade.

Quarta feira, 16 de março, Vladimir Putin carregou noutra tecla, também ela clássica, do teclado soviético: a denúncia dos traidores vendidos à burguesia imperialista. Diante do governo e dos representantes das regiões, voltou às sanções ocidentais. Para lhes fazer frente, cada um deve participar na economia patriótica do putinismo. O presidente deplora a existência de uma “quinta coluna” composta de “nacionais-traidores” que “ganham o seu dinheiro aqui mas vivem acolá, nem sequer num sentido geográfico, mas nos seus pensamentos, na sua consciência de escravos.” Visa simultaneamente os oligarcas, que poderiam ter a tentação de não apoiar o esforço de guerra, mas também a oposição democrática, “que está, na sua cabeça, além”. Ataca “esses que possuem uma moradia em Miami ou na Côte d’Azur, que não conseguem viver sem foie gras, ostras e pretensas liberdades de género.” É quase um Maïakovski, poeta futurista dos anos de 1920: “Come ananás, mastiga perdizes / chegou o teu último dia, burguês!” Vladimir Putin ameaça os novos russos e quem ousa manifestar-se contra a guerra: “O povo russo saberá sempre distinguir os verdadeiros patriotas do lixo e dos traidores, cuspi-los-á muito simplesmente como insetos absorvidos sem querer.” Poético. Putiniano, mas de tendência hardcore. Completamente leninista, também. Foi Alexandre Soljenitsyne quem recordou, no Arquipélago do Gulag (1973), que o líder bolchevique tinha, também, queda para metáfora entomológica. Num artigo de 1918, afirmava que o objetivo da revolução era a de “limpar a terra russa de todos os insetos nocivos.” De quem falaria? Soljenitsyne admite ser impossível “proceder a um estudo exaustivo dos casos incluídos nesta larga denominação de insetos”. A lista seria muito longa, dos professores de liceu aos padres. E segundo Putin? Por enquanto, aponta para as grandes fortunas e a oposição democrática. Mas e amanhã? Acabo de ler no Telegram que os professores que saíram da Rússia mas continuam a dar aulas à distância vão ser demitidos. Quanto aos padres que se opõem aos delírios metafísico-homofóbicos do patriarca Cyrille, são considerados traidores. Foram lançadas as primeiras acusações por “falsas informações” sobre o conflito. Quais serão as seguintes, na lista dos “insetos” a “cuspir”? Irá Putin iniciar repressões em grande escala, nacionalizar empresas, montar uma economia de subsistência, tentar reconstruir uma lógica de blocos, fechar o país, como no tempo da URSS? Nada é impossível, desde que se iniciou a sua aventura bélica na Ucrânia, parecendo embriagar-se com a gesta soviética — acrescentando-lhe uma pincelada de religiosidade e uma exaltação imperial à maneira dos Tzars.

Quem poderia esperar isto, trinta anos depois da URSS autocolapsar? Talvez a escritora, e Prémio Nobel, da literatura Svetlana Alexievitch, cujo livro O Fim do Homem Soviético [extraordinário], em 2013, me retirou do sono histórico. Dando a ler a voz de cidadãos soviéticos banais, ela exprimiu o desatino de milhões de pessoas normais espantadas por acordarem, no início dos anos 90, num mundo que já não era o delas. Em russo, o seu livro chamava-se, aliás, “Uma época de segunda mão”. Antes de toda a gente, a escritora bielorussa, que na época fui visitar a Minsk, tinha apreendido a irreprimível nostalgia do país natal. “O soviético é um bom homem, era capaz de ir à Sibéria, no meio do nada, em nome de uma ideia, e não por dólares.” Hoje, Vladimir Putin faz reviver esse mito, mas numa repetição trágica e sangrenta, contra o “povo irmão” ucraniano. Ele que proibiu qualquer trabalho de memória sobre o século soviético, reativa este último num gesto simultaneamente demiúrgico e suicidário. Faz-me pensar no que dizia o grande dissidente polaco Adam Michnik, que passou vários anos nas prisões do regime. Quando lhe perguntavam o que havia de pior no comunismo, respondia: “O que acontece depois”. Estamos lá.» 

 

2. (2/3 poemas de Ana C. Joaquim)

2.

este poema é sobre três homens sentados
de repente um deles se levanta e 
diz que a ama: qual dos três?

ele volta a se sentar.

há neste poema três homens sentados
e o modo com que ela os observa com espanto 
(mas por que ela está espantada?)

entram neste poema 
dois outros homens 
eles rondam aleatoriamente
e esperam por uma cadeira vazia 

depois este poema acaba.