n.g. despede-se de l.g.
/pensei em escrever-te para te dizer
que estou sã e salva
com todos os meus demónios no paraíso
a tempestade da história
despenhou-se contra as janelas
estilhaçando todos os vidros
e arrancando todas as portas e passou
com o seu cortejo de camisas negras
com as suas danças obscenas
de destruição e massacre
com a sua louca sede de sangue
e deixou-me agora em paz para sobreviver
mas esta noite sonhei que tornava a abraçar-te
toda a gente que nos importa estava presente na sala
e desta vez era eu quem ia partir por longo tempo
e penso que os teus braços à volta do meu torso
paravam completamente o tempo
que ainda assim entretanto acelerava loucamente
em todas as estações de onde partem comboios
desde que te abracei pela última vez
calada da noite
prisão de regina coeli
evito tornar a tocar em pessoas
é de perto que o teu rosto é um mapa
com as suas três constelações de incêndio
e a memória não explica isso
é só quando ele se aproxima
que me lembro que é preciso parar de procurar
nos olhos dos outros a morte que virá e terá os teus olhos
e nada me devolve essa inocência
que perdi e que quando ameaça voltar
aprendi a amordaçar violentamente
a troça e cinismo
há muito que não perturbo ninguém
para não procurar impressões que me torturem
às vezes vejo claramente os teus pés descalços no chão
as tuas mãos nuas sobre os livros
penso que os teus gestos apagam as datas
tornam inúteis todos os calendários
vou e volto do trabalho
que fica perto de casa
enviei os nossos filhos para turim
arrasto comigo o peso de todas as tuas ideias
a minha claríssima memória da tua voz invade tudo
e as tuas ideias na minha cabeça
vão continuar a ter para sempre
a duração de uma interminável página acesa
impressa com uma pequeníssima fonte
muito difícil de ler
sob um candeeiro clandestino
é preciso que me lembre sem suspeita
sem medo de viver
que nos livros e no que escreveste
procuravas ocupar-te
dos incertos recomeços dos vivos
os seus barcos de regresso
depois das diversas mortes
Nimborio, Simi
10 de Agosto de 2021