«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
Fuck You: A Magazine of the Arts
/E aqui estava ele sentado ao meu lado, pernas afastadas. Eu não conseguia aguentar mais. Toquei-lhe no interior da coxa. Ele aproximou-se. Eu tremi. O meu coração bateu e saltou e os meus dedos dirigiram-se à braguilha. Avaliei o tamanho e a força apertando a mão. Juntei os dedos e rodei-os na cabeça do pénis. Acariciei-a de cima a baixo. Pus-me de joelhos. Baixei a cabeça. Abri a boca. Alinhámos as nossas bocas. Entrelaçámo-nos. Todo o acto era aperto. Todo o facto contacto, o ataque e a ligação das línguas, dos encantos dos braços. Eu tremi com o toque da carne fresca. Estremeci com a investida do pénis dele. As suas sensações ansiavam pela consumação. Ele descontraiu as pernas e deitou-se ofegante, quente como um adolescente. Nu, dilatado, cheio, à espera de ser chupado, agarrando o lençol, todos os seus poros abertos à alegria. Fiz pressão no ponto em que a virilha se une ao pénis. Pus um dedo no ânus dele e massagei. Ondas de prazer imensuráveis subiram ao seu membro rapidamente. Espasmos. E eu continuava na dobra da virilha a inalar o seu suor.
É um poema e não é meu. A versão original, com o título “The Platonic Blow, by Miss Oral”, ou “A Day for a Lay”, ou “The Gobble Poem”, ou “The Blowjob Poem”, tem mais versos e foi escrita por W. H. Auden, o poeta anglo-americano, pensa-se que em 1948. A tradução é minha. O autor não o quis publicar, mas também não o destruiu, e o resto da história, a do caro-editor-por-favor-destrua-todos-os-meus-manuscritos-quando-eu-morrer, e o editor do outro lado a esfregar as mãos como quem diz espera-lá-que-vais-ter-sorte, já se sabe: alguém o encontrou e decidiu publicar, neste caso Ed Sanders, poeta, editor e activista, na revista Fuck You: A Magazine of the Arts, no número de Fevereiro de 1965. Na folha de rosto, em subtítulo, lê-se “Mad Motherfucker Issue”.
A revista fazia três anos e, não tenhamos dúvidas – era verdadeiramente um mad motherfucker issue, dedicado aos “deprimidos e aos arruinados” e aos que foram apanhados pelos fascistas, freaks da guerra, draft boards (grupos de civis que escolhiam os homens para o serviço militar),“académicos idiotas” e pelos fanáticos do “Cancro Totalitário”. Senão vejamos: capa de Andy Warhol, com imagem de uma cena de sexo filmada na Factory e usada no seu filme Couch, um anúncio aos The Fugs, banda de Ed Sanders e Tuli Kupferberg, que também escrevia na revista, poemas de Lawrence Ferlinghetti, LeRoi Jones, Gerard Malanga, Ted Berrigan, Gregory Corso e Norman Mailer. Allen Ginsberg também contribuiu, com um poema sem título e data de 19 de Dezembro de 1962 publicado anteriormente nos seus Jornais, e um texto com o título “Dreams”, sobre um sonho que teve com Peter (provavelmente Peter Orlovsky, poeta e seu companheiro). É também Peter Orlovsky que assina uma série de desenhos publicados neste número; há um de Charles Chaplin num ecrã numa sala de cinema em Damasco (Síria).
“I’ll print anything”, escrevia Ed Sanders, que na altura era também proprietário de uma livraria em Nova Iorque, a lendária Peace Eye Bookstore. Enviem-me o que quiserem, poemas, manuscritos banidos, os vossos planos para o “holocausto pacifista”, que eu publico tudo. A ideia era mais ou menos esta. A Fuck You foi durante três anos (1962-1965) editada numa “localização secreta”, em Lower East Side (Nova Iorque). As cerca de 500 cópias eram imprimidas nos mimeógrafos da altura. É também por isso que a revista é considerada uma das mais importantes da chamada “mimeo revolution”, nos anos 60 e 70, em que se assistiu a uma espécie de boom de pequenas publicações independentes graças à utilização desta ferramenta, o mimeógrafo, que permitia imprimir a baixo custo. De repente, qualquer um podia publicar o que lhe desse na gana. A revista The Floating Bear, editada por LeRoi Jones e Diane Di Prima, figura central da geração Beat, é exemplo disso.
Outro mad motherfucker issue talvez tenha sido o n.º 5 de Setembro de 1964. A capa é de Robert LaVigne, que desenhou um bebé alienígena com pequenas roldanas nos olhos, letras no corpo e os órgãos à vista. Há poemas de Robert Creeley, o poeta americano normalmente associado ao Black Mountain College, “Two Times” e “Something” (“Eu aproximo-me com um tremor tão cauteloso / sinto sempre no fim a idiota / questão do que é / então, suposto ser sentido / e por quem”), Robert Duncan, William Burroughs, Norman Mailer, Gregory Corso e Gary Snyder – “Hymn to the Goddess San Francisco in Paradise”, do seu Mountains and Rivers Without End, poema épico dividido em quatro partes e publicado pela primeira vez em 1996 – Carl Solomon e uma tradução de um poema de Artaud, sem título e aparentemente inédito.
A Fuck You começou mais ou menos assim: Ed Sanders estava num bar com alguns amigos do Catholic Worker. Tinham acabado de ver o Guns of the Trees de Jonas Mekas (1961), e Sanders anunciou que ia publicar uma revista chamada Fuck You: A Magazine of the Arts. Os amigos ficaram desconfiados mas no dia seguinte ele começou a fazer stencils e ao fim de uma semana estava o primeiro número aviado. Comprou um pequeno mimeógrafo e instalou-o no apartamento. Distribuía gratuitamente as cópias, mas chegou também a enviar algumas. A Allen Ginsberg (que estava na Índia), Nikita Khrushchev, Fidel Castro, Picasso e Beckett. O nome da revista era catchy, Sanders ganhou notoriedade e rapidamente começou a receber manuscritos dos seus heróis, como referiu numa entrevista publicada no site Literary Kicks.
Em A Secret Location on the Lower East Side, de Steven Clay e Rodney Philips (1998), Sanders explica que o objectivo dele, com a revista, era levar às “melhores mentes” da sua geração uma mensagem de pacifismo Gandiano, partilha, mudança social, liberdade individual e as ideias revolucionárias de libertação sexual. Diz-se por isso que a Fuck You permitiu a aproximação de duas gerações distintas, a dos Beats nos anos 50 e a da contracultura no final da década de 60.
Saíram treze números, grande parte deles com textos escritos por uma equipa mais ou menos fixa de colaboradores que incluía Nelson Barr, Al Fowler, Ed Sanders, Taylor Mead, John C. Harriman, C.V.J Anderson (o editor da Crawdaddy!, considerada a primeira revista americana sobre música rock), Charles Olson e John Wieners. Menos assíduos, Harry Fainlight (cujas publicações na revista incluem um poema chamado “Mescaline Notes”, dividido em quatro partes, a fazer lembrar as experiências com mescalina de Henri Michaux), Diane di Prima, Frank O’Hara, Jean Morton, e outros. O último número foi publicado em 1965, sem que o seu fim tivesse sido anunciado. Da noite para o dia, por assim dizer, a Fuck You deixou de ser publicada.
Este texto foi originalmente publicado no site The Airship, da editora Black Balloon Publishing. A versão original pode ser lida aqui.
Quase a sair da gráfica
/capa de João Alves Ferreira
Estado de Natureza
/Diamantino andava cada vez mais melancólico e nem os passeios ao canavial em frente da azenha o alegravam. De cada vez que pensava em Fernanda sentia uma dor alastrar pelo peito até à garganta, deixando-lhe a voz embargada.
No dia seguinte ao jantar na Associação, passou no bairro das Vivendas várias vezes na esperança de a ver. Diamantino sabia que mais dia, menos dia, ela iria apanhar o comboio e regressar à cidade, e por isso achava que não teria muitas oportunidades para lhe dizer o quanto a admirava.
Na quarta vez em que arrastava o passo junto ao muro da casa da Médica, depois de outros tantos bagaços, viu Fernanda pendurar roupa no estendal do alpendre e acenou-lhe da rua. Fernanda respondeu-lhe e Diamantino aproximou-se do portão e entrou sem esperar que ela o convidasse.
Era uma tarde muito quente e Fernanda vestia apenas uma camisola larga, o que o fazia suar ainda mais ao vê-la. Diamantino tentava secar as mãos nas calças e pensava: “Se ela me deixasse ficar com umas cuecas para recordação já ficava satisfeito.”
Quando se dirigiu a ela sentiu a voz falhar:
- Hoje sonhei contigo, Fernanda.
- A sério?
- Morra já aqui fulminado.
- Isso é… tão lindo, Diamantino.
- Sonhei que fazíamos o amor…
- Nunca pensei que pudesses sonhar uma coisa dessas.
- Bom, na verdade foi um sonho acordado, mas estava cheio de sono, por isso acho que pode contar.
- Acho que sim, mas o que interessa é que agora já estás acordado, não é?
- O que eu gostava era de voltar a ter o mesmo sonho esta noite. Mas se calhar não tenho sorte.
- Pois, se calhar não, como sabes os sonhos nem sempre se repetem.
- Tu podias dar-me uma ajuda.
- Pois, pois, mas isso é que não pode ser.
- Podias deixar-me ver-te as mamas…
- E porquê uma coisa dessas?
- Disseram-me que tinhas umas mamas bem boas.
- Quem foi que te disse tal coisa?
- Dizem por aí, eu só ouvi, não sei quem foi.
- É pena, já agora gostava de saber.
- Se me esforçar acho que posso lembrar-me de quem foi.
Propôs Diamantino enquanto se aproximava de Fernanda e lhe barrava o caminho.
- Sabes uma coisa, acho que afinal não é assim tão importante. Podes deixar-me passar? Tenho coisas a fazer lá dentro.
- Mas qual é o problema, não somos amigos?
- Os amigos não andam a mostrar as mamas uns aos outros. Se eu te pedisse para me mostrares o rabo no meio da rua mostravas?
- Mostrava, queres ver?
- Não era isso que eu queria dizer.
- Ó Fernanda, assim eu não percebo. Então, se a igreja já não manda e cada um faz o que quer, porque é que não deixas?
- Ó Diamantino, tu não tens mais nada que fazer?
- Ando tão consumido que nem consigo trabalhar.
- Pois, mas eu não tenho nada a ver com isso.
- Mas eu olho para ti e só vejo curvas, vou para os montes e é só curvas, até fico agoniado com tantas curvas.
Fernanda olhava para ele enquanto segurava a bacia da roupa, como se fosse um escudo de defesa, mas Diamantino não desistia:
- Só de pensar que a ti não te custava nada. Afinal qual é o problema? Não é nada de especial, posso ficar a ver de longe, se quiseres. Vá lá, Fernanda, ninguém fica a saber, é só levantar a camisola. Não podias fazer isso por mim? Temos andado tão divertidos esta semana, era uma coisa que podias fazer pela nossa amizade.
- Pois podia, mas não me apetece.
- Mas a mim apetece-me pelos dois, queres ver?
- Não, não quero ver nada, só quero passar. Diamantino, tu não tens vergonha do que estás a fazer?
- Daqui a nada começas a falar em pecados outra vez. O que eu acho é que és uma mal-agradecida, confesso que não estava à espera.
- Tenho pena, Diamantino, eu também não estava à espera de uma desfeita destas. Afinal parece que nos enganámos os dois.
- Cada vez percebo menos, palavra de honra. Então fez-se a Revolução para quê? Agora vós também vos armais em esquisitas? Uma pessoa aqui a fazer-vos as vontades todas, a tratar-vos bem, a levar-vos nas palminhas, sempre simpáticos, a deixar os nossos afazeres para vos satisfazer, a abrir as portas das nossas casas e a oferecer o melhor vinho e a melhor comida e todas as coisas típicas e agora, na hora da verdade, é assim? É que para ti nem era nada de especial e para mim significava muito. Nem imaginas, desde que te vi ao pé da igreja no primeiro dia que ando aqui cheio de vontade e tu nada. Ouve lá, tu se calhar não gostas de homens? É isso, não é? Ouvi dizer que isso era moda nas cidades. Mas olha que eu trato-te bem, tu sabes que eu sei preparar muito bem uma mulher, é uma coisa natural para mim e nunca tenho pressas. Mas se tu não queres aproveitar, lá se vai a oportunidade, mas olha que acho mal. Até estou a sentir-me desprezado e isso é um sentimento negativo, acho que estás a criar mau ambiente sem necessidade.
- Se não me deixas passar chamo o Gabriel.
- Podíamos chegar a um acordo, tu mostravas-me as mamas daí e eu não passava daqui.
- Eu vou fazer de conta que isto não aconteceu e vou andando para dentro, está bem?
Disse Fernanda enquanto tentava ver se havia saída do outro lado da casa.
- Fernanda, se quiseres posso ajudar-te a subir o muro e depois vamos ali para trás de umas giestas.
- Olha lá, mas tu estás bom da cabeça? Por que é que não vais pedir à tua irmã?
- Agora estás a ser cruel, Fernanda. Tu não sabes que a minha irmã morreu quando tinha cinco anos?
Fernanda ficou sem saber o que dizer durante alguns segundos antes de retomar a ofensiva, mas Diamantino não a deixava passar:
- Não queres reconsiderar? Eu acho que se devem dar sempre mais duas ou três hipóteses a uma mulher até ela ter a certeza de que não quer.
- Eu tenho a certeza absoluta, Diamantino.
Disse Fernanda depois de conseguir passar por ele e entrar em casa, mas Diamantino continuou atrás dela:
- Pensa lá bem. Ainda vais a tempo, vê lá, se queres vamos até lá abaixo à ribeira, ouvi dizer que gostavas de te meter na água sem roupa.
Diamantino ainda ficou a olhar para a porta que se acabava de fechar à sua frente e antes de sair lembrou-se da roupa que Fernanda tinha estendido e ficou a olhar para algumas cuecas, sem saber ao certo qual delas escolher.
In Mil Novecentos e Setenta e Cinco, Tiago Patrício, Gradiva, Lisboa, 2014, p.300-4
Sexta Conjugação, 5
/Mandem fechar o mundo.
Sentem-se e insultem-se. Porquê esperar?
Se lá fora não morrem,
nunca se acaba de comer,
têm sempre fome, que desgraça,
que suma inconveniência.
Mandem trancar os relógios,
façam filas certas para a revolução,
levem-na até aos salões
e discutam-na na Assembleia.
Mandem fazer pouco do futuro
e exijam tudo por escrito,
não vá o diabo fazê-lo feito.
Que outros descarreguem nos vossos ombros
a solidão dos que vos acompanham.
Não sejam fortes. Não se usa
a força quando batem.
Empunhem vossas loucuras
com a vaidade dos certos.
E mais do que tudo, façam-se,
façam-se doutores em política
e generais em estratégia.
Rasguem os quartéis
e bombardeiem o Senado,
com toda a humanidade,
para bem deles. Os coitados.
Mandem pôr um mapa na cabeça
aos que se abrigam da chuva
e calem-nos quando houver sol.
Orientem o norte para longe
e o conhecimento para a vossa imagem.
Ronquem, ressonem, apareçam
que no fim a mesa estará cheia.
E mandem acabar com os finais.
Assim como está, está muito bem.