5 poemas

O exterior é uma perfeita paródia do interior. Um arquivo caótico de visões internas. Paranóia é a minha pele de leopardo. Eu uso ela como uma performance. É um enfrentamento. É como eu protejo minha ingenuidade: cobrindo as paredes com espelhos. Elas iluminam e ampliam as tuas mentiras. É esplendoroso. Deus é maior que tudo isso. 


Uma bolsa cheia de roupa suja e memórias. Eu não tenho sido capaz de lavar a roupa.  

Eles xingam e gritam o tempo todo, mas há passe livre aqui.

Quando você se torna um adulto, mãe e pai deveriam parar. Eles terminaram o meu contrato por causa das minhas visões sobre o trabalho. Eu sou diferente dos outros aqui. Este não é o meu meio-ambiente. 

Aprender sobre espiritualidade transforma a direção da eletricidade. Significa ser mais casual e mais humano. 

Se você é uma pessoa secular e e eu sou uma pessoa sagrada, suas crenças estão me dominando, o que é ilegal. Você está apenas usando poder. Você não é o meu guardião.  

Não é contra o meu acordo. Não é uma decisão de tribunal. Está na sua decisão. Você esteve comigo em varias ocasiões. Você deveria me conhecer bem. 

O que é real. Esta é uma situação imaginária?


Se você me dissesse que você era um anjo, eu não julgaria você. Um anjo é uma espécie de inocente.  

Eu sou um indivíduo, eu não sou uma pessoa típica, então a dose da medicação não devia ser típica.  

Está afetando meus direitos de anjo. Minha inocência está sendo abusada. Na realidade eu fui diagnosticado com desmoralização e inutilidade. A doença já era. 

Diferentemente deste estado induzido, eu sou uma pessoa bem-aventurada.

Pensar tem ajudado o meu estado mental, e eu acredito que falar é a forma de resolver as coisas.  


Perdeu a dose matinal de metadona. Pede para tomar agora às 16h. Pede licença para sair, promete que não vai usar droga. Alerta de salvaguarda, traficantes na vizinhança. Eu sou apenas uma grande gigante amistoso. Ele se guarda para si mesmo. Ele vem e assiste TV e passa um bom tempo na área comunal. Agora ele ri se algo é engraçado. Minha comunicação é díficil de pegar se tem alguém falando, mas estou confiante que a revisão terá êxito.  Estou aqui hoje para contar a lenda. Falou sobre uma individualidade, falou sobre se tornar um professor. Expressou o desejo de ler seu prontuário. A urina foi positiva para heroína na semana passada. Está esperando os arranjos da habitação.


Você está vestida como o projeto monarca, toda de oncinha. Não digo nada senhorita. Então você pensa que eu sou uma periguete neurocientista vestida de estampa animal? Talvez você esteja certo. A psiquiatria é só uma técnica de controle mental, a ciência um delírio narrativo baseado em evidência. Sinto muito por seus delírios somáticos. De femme fatale a médica residente? Não posso te liberar. Está indo me denunciar? Está humildemente me oferecendo chá? Você se move tão rapidamente, tão elegantemente. Você é o hipster da enfermaria, o grande viajante do transporte público. Então você tropeça ao lado do Tâmisa com um alcoolismo escondido, e volta sangrando.  


Charles Bukowski, «Lança os dados»

Tradução de João Coles

se vais tentar, vai até ao
fim.
caso contrário, nem sequer comeces.

se vais tentar, vai até ao
fim.
Isto poderá significar perder namoradas,
esposas, parentes, empregos e
talvez o juízo.

vai até ao fim.
poderá significar não comer durante 3 ou 4 dias.
poderá significar enregelar num
banco de parque.
poderá significar cadeia,
poderá significar escárnio,
zombaria,
isolamento.
o isolamento é um dom,
tudo o resto é um teste à tua
resistência, do
quanto queres mesmo
fazer isso.
e tu fá-lo-ás
mal-grado a rejeição e as piores probabilidades
e será melhor do que
qualquer outra coisa
que possas imaginar.

se vais tentar,
vai até ao fim.
não há outra sensação como
esta.
e estarás a sós com os deuses
e as noites inflamar-se-ão com
o fogo.

fá-lo, fá-lo, fá-lo,
fá-lo.

até ao fim
até ao fim.

guiarás a vida directamente ao
riso perfeito. é
a única luta justa
que existe.

in The Singer, 1999


Roll the dice

if you’re going to try, go all the
way.
otherwise, don’t even start.

if you’re going to try, go all the
way.
this could mean losing girlfriends,
wives, relatives, jobs and
maybe your mind.

go all the way.
it could mean not eating for 3 or 4 days.
it could mean freezing on a
park bench.
it could mean jail,
it could mean derision,
mockery,
isolation.
isolation is the gift,
all the others are a test of your
endurance, of
how much you really want to
do it.
and you’ll do it
despite rejection and the worst odds
and it will be better than
anything else
you can imagine.

if you’re going to try,
go all the way.
there is no other feeling like
that.
you will be alone with the gods
and the nights will flame with
fire.

do it, do it, do it.
do it.

all the way
all the way.

you will ride life straight to
perfect laughter, it's
the only good fight
there is.

Dos livros que são empilhados para dar a alguém o mais depressa possível

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Que desanimante é comprar uma pilha de livros e não desfrutar da sua leitura. O altamente elogiado Morte Súbita, do mexicano Álvaro Enrique, que tentei ler uma, duas, três vezes, sempre com vontade de o abandonar no comboio, sabe a Foster Wallace e a Bolaño mas é o sabor a micro-ondas que se sobrepõe, sofre de um mal pós-modernista que à literatura subtrai graça e beleza em prol de uma vontade de seguir estruturas, de parecer inteligente. Obras infestadas de nomes e retumbantes conceitos, personagens históricas, histórias apócrifas – Francisco Quevedo a jogar ténis contra Caravaggio-, e as sagazes lucubrações a puxarem pelo sorriso do leitor, contribuem para a desvalorização de uma das potencialidades da literatura: contar a vida recorrendo a uma prosa elegante, densa em termos emocionais e intelectuais. Livros que figurem como recomendáveis pelos periódicos nova-iorquinos não devem cheirar tanto a bolsa de criação literária. Lendo Guerra e Paz, o leitor é confrontado com a vida vista por cima, a vida da história, dos russos contra Napoleão, e com a vida pequena, a vida do príncipe moribundo, da mulher em busca de amor, do cobarde que enriquece, e é destas duas vidas que se extrai prazer e vontade de reler sempre o mesmo livro. Com Álvaro Enrique, folheia-se a página, boceja-se, diz-se “que escritor tão prendado”, e enterra-se o livro antes da página cinquenta.

Erro típico de quem acabou de chegar ao fenómeno Barnes & Noble é pegar num livro considerado #1 New York Times Bestseller na expectativa de o vir a ler com gosto e talvez aprender, ou pelo menos sair da leitura com a sensação de ser melhor pessoa. Susannah Cahalan, jovem jornalista, sofreu um mês de loucura e publicou, já recuperada, pensa-se, Brain on Fire, My month of Madness. Hipocondríaco e dado a comprar livros em promoção (o livro em promoção em Nova Iorque raramente baixa dos sete dólares e cinquenta), abanquei no parque de Union Square convicto de que resolveria anos de demência e paranóia e enxaquecas, etc. O livro faz sentido para quem o escreveu e para os editores que lhe aplicaram a régua e o esquadro da escrita criativa. Os parágrafos sucedem-se sem que o leitor seja informado de que doença padeceu Susannah, chega-se a pensar que a moça se transformará em insecto a dado momento, tal o suspense e o tom melodramático com que são apresentados os sintomas da “doença”. O thriller desvanece-se aos poucos, ficando o leitor cada vez mais convencido de que esta é mais uma sopa mediática que as boas editoras americanas impingem a quem, como eu, não tem mais que fazer do que gastar dinheiro em banalidades com “a happy ending.” Tudo acaba bem, primeiro porque Susannah recuperou da loucura para publicar o livro e se tornar milionária, depois porque não se chega a saber em que consistia a loucura de Susannah. É muito pouquinho, para um ensaio.

 Escrever sobre o desperdício A Short Guide to a Happy Life, de Anna Quindlen, demora quase tanto como a sua leitura. Foi provavelmente publicado num ano em que as editoras tinham muito dinheiro para gastar em livros de capa dura com meia-dúzia de frases dentro. Entre o supermercado e a mesa onde me sento a comer cereais, percorro cerca de meia milha, mas a leitura deste panfleto carregado de citações positivas para o alto-astral durou vinte metros.

 Para escrever sobre Ben Lerner o cidadão precisa de se benzer e de pedir perdão a James Wood, que em determinada recensão na New Yorker incensou o autor de 10:04, obra que tantas vezes me pôs às avessas comigo e com o mundo que me rodeava. Ben Lerner é escritor talentoso, a prosa é fluida, lê-se prazenteiramente, mas quando se passa do primeiro ou do segundo capítulo começa-se a vislumbrar o breu, as trevas, a cefaleia desata a inchar as têmporas, e só dois analgésicos resolvem a situação. Histórias de amor ou de doenças – há um escritor doente que deseja ter um filho e que sente amor, embora por vezes admita que o que aprecia é fazer amor – descambam nos costumeiros guisados pós-modernistas: biologia, geologia, filosofia, doenças raras, resmas de títulos, de nomes, de conceitos, ideias exóticas, piadas muito bem esgalhadas. Ben Lerner poderá ascender a génio meditabundo caso consiga conjugar uma lista telefónica, a Enciclopédia Britânica e uns fogachos de boa prosa num só volume.

 Sinto falta do tempo em que, adolescente, abria a revista Maria e deparava com celebridade X dizendo que guardava o verão para as leituras, ou leitura, que o verão eram só três meses e o Equador, de Tavares, não concedia espaço para outras literaturas na estante. E antes da adolescência lia o Tio Patinhas e amava. Os irmãos metralha, que primor. Esse mesmo amor regressou com os Tolstói e os Dostoiévski. Mas ler um livro em Nova Iorque, especialmente um livro que seja recomendado, que apareça em tops, é como visitar um desses cursos de escrita criativa, num sábado à noite, no meio de um pesadelo, e só desejar nunca ter lido nada, nunca ter gasto os olhinhos na leitura.

Festa da aldeia

Nas ruas batiam-se em latas, davam-se pinotes, cantava-se, dançava-se, tudo se entretinha enquanto a noite clara clamava surdamente por um pouco de sossego. Eu juntei-me à pândega pois não tinha sítio algum para onde ir nem pessoa alguma a quem agradar. Fiz um furor tremendo com as minhas danças modernas que ninguém conhecia, e olhei as estrelas rodopiantes enquanto eu próprio rodopiava sobre o meu corpo que rodopiava tonto pelo chão dançante. Agarrei uma menina pequena para dançar e no espaço de uma dança ela fez-se senhora, e nós casámos, e tivemos até filhos, enquanto durou a festarola. Nunca percebi porque o tempo não passava por mim, e ainda não percebo mas isso é porque ele ainda não passa. E eu por cá me desencontro de mim. O estranho não é continuar uma criança após tantos anos, o estranho é ser este tipo de criança que fui até há poucos instantes. O ter ganho asas também não é de estranhar, é uma consequência natural da vida. Explodiram foguetes numa miríade de cores e a noite ficou ainda mais clara, tanto que julguei que a festa estava no fim, mas afinal tinha apenas começado. Tudo tinha começado. Pensei, onde me sentia bem, realmente bem, era no meu berço, embalado pela voz da minha mãe, pela mão do meu pai, e pela angústia da vida, que me havia perfilhado. A pândega ainda continua, tudo dança ainda, mas eu recolhi-me no canto mais escondido da aldeia, e assim sigo vivendo, rodopiante pela minha vida afora esperando que a festa termine para eu enfim descansar...

Modos de ler Nietzsche

A Enfermaria 6 publicará brevemente um Caderno sobre “Modos de Escrever”, título que organiza, em diversidade, testemunhos e reflexões sobre linhas de escrita. Nele falarei acerca da “escrita de sangue” de Nietzsche, mas hoje quero retomar um tema que me assombra há vários anos: o modo de ler. Sabemos que há diferentes estilos de leitura, por vezes coabitando numa oposição benigna no mesmo leitor: ler a acta de um Conselho Administrativo ou a bula de um medicamento é bem diferente de ler um artigo de Pourquoi nous sommes nietzschéens. Bom, mas alguns dias atrás fiz pelo menos isso (recordo-me agora que li também, além de outras minudências, as instruções de uma fotocopiadora industrial e um pouco de Peter Sloterdijk – Aprés nous le déluge), e essa esquizofrenia hermenêutica não me tornou insano. Por outro lado, ninguém, alfabetizado, julga ler mal, o que justifica talvez o pouco que se reflecte sobre este comportamento. Seria interessante pedirmos às ciências cognitivas que nos ajudassem a compreender este acto de civilidade, marca indelével da cultura ocidental, forma superior de domesticação. Não podendo, para já, apelar a essa moda epistemológica, capaz, segundo dizem, de definir totalmente como conhece o ser humano, sugiro que leiamos Nietzsche a partir das suas próprias indicações. Bem sei que parece servilismo, mas verão que pode revelar-se uma boa linha hermenêutica. A isso acrescento, já no final do artigo, a indicação de um nietzschiano livre, Giorgio Colli, próxima de um vitalismo que o caminhante de Sils-Maria aceitaria com certeza.

A disparidade de que falei acima deve, porém, ser restringida quando lemos Nietzsche, é essa a minha experiência. Até um certo ponto influenciado, confesso-o, pelo que o próprio autor escreveu no §137 de “Opiniões e sentenças misturadas”, Coisas Humanas, Demasiado Humanas[1], onde assegura que os piores leitores são como piratas, roubam aqui e ali, uma ou outra coisa, consoante as suas necessidades, contaminando aquilo de que não precisam. E mais tarde, no Anticristo (§52): ler bem consiste em “saber decifrar factos sem os falsificar pela interpretação.”[2] Portanto, simplificando muito, um bom leitor fideliza-se a um texto e a um método. Claro que não se trata de uma monomania hermenêutica, o próprio Nietzsche leu diversamente, autores e temas, foi, aliás, bastante prolífico. Mas talvez ele quisesse, naquela obra da segunda juventude (quando se é quase sempre positivista), preparar futuras indicações sobre a sua recepção. Estranhamente, apesar de muito ter feito para se tornar incompreensível, ou pelo menos dificilmente compreensível, deixou inúmeras pistas hermenêuticas; ao mesmo tempo que intensificou um solipsismo vital, criou guiões para ser... compreendido. Nietzsche hesitou sempre, é bom dizê-lo, entre o desejo de ser compreendido e a consciência de que não o seria, ou, pior, de que seria mal compreendido (e mais uma vez teve razão). Simultaneamente, projectou-se como um autor póstumo, porventura a única forma de poder escrever com o entusiasmo e a veracidade patentes no seu último ano de vida mental sã (Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, os libelos contra Wagner e um conjunto inestimável de Fragmentos Póstumos). Aí dirigiu-se para o seu destino com a certeza de um sonâmbulo. Nietzsche cumpriu totalmente o seu pacto com o futuro: dinamitar a modernidade filosófica e política, assente nas ideias de verdade universal e nacionalismo identitário, ele, perspectivista, que sempre gostou do Sul e, apátrida, se sentia somente europeu.

De qualquer forma, legou-nos várias recomendações hermenêuticas respeitáveis, entre elas costuma destacar-se a do prefácio, §8, de Para a Genealogia da Moral: “Evidentemente, para praticar a leitura como arte é necessário algo que nos nossos dias foi absolutamente esquecido – e é por isto que é preciso tempo para que os meus livros sejam legíveis –, algo que exigiria quase que fôssemos da raça bovina, e não um ‘homem moderno’, é preciso saber ruminar...” Cerca de catorze anos antes, numa carta a Cosima Wagner para o Natal de 1872, compunha já intenções inspiradas na sua formação em filologia clássica: “O leitor de que espero alguma coisa deve ter três qualidades: necessita ser calmo e ler sem pressa. Não necessita introduzir-se constantemente entre as linhas e interpor a sua ‘cultura’.” Exige-se, então, um leitor objectivo, pesquisador mais do que criador de sentidos. É verdade que por vezes, ao longo de toda a sua obra, aconselha o livre arbítrio hermenêutico, mas a ideia de um leitor rigoroso, filológico manter-se-á.

            Isto é muito mais do que uma simples metodologia, a hermenêutica incarna um ethos geral que perpassa por diferentes campos da existência. Tese clarificada no §256 de Para Além Bem e Mal, onde elege um “ritmo e uma lentidão aristocráticos” (vornehmen) contra os “trabalhadores desenfreados, quase se auto-dilacerando com o trabalho”. Um estilo de vida que é preciso educar, como nos indica no belo §334 da Gaia Ciência, onde a partir do exemplo do tempo longo necessário para aprender a gostar de uma melodia estranha, diz ser preciso paciência para amar e ser amado: “[…] Acabamos sempre por ser recompensados pela nossa boa-vontade, a nossa paciência, equidade, ternura para com o que é estranho, na medida em que essa estranheza despe lentamente o seu véu e se revela com uma nova e indizível beleza: – é a sua gratidão pela nossa hospitalidade. Também quem a si próprio se ama, tê-lo-á aprendido por esta via, não há outra. É preciso também aprender o amor [Auch die Liebe muss man lernen].”

Mas a condição da leitura lenta, ruminante, técnica e parcela de um ethos aristocrático (decidido na trilogia solidão, coragem e lucidez, em vez de numa qualquer herança classista), não é a única recomendação de Nietzsche. A par disto, é preciso audácia, curiosidade, desejo de experimentar: “Quando imagino a figura de um leitor perfeito, surge-me sempre um monstro de coragem e de curiosidade que, além disso, é também algo de maleável, astuto e previdente, um aventureiro e descobridor nato.” (Ecce Homo, “Porque escrevo livros tão bons”). No §32 de A Gaia Ciência acentua o carácter de combate hermenêutico quando refere que a sua “maneira de pensar exige uma alma belicosa, uma vontade de fazer sofrer, prazer em dizer não, uma pele dura”. Fazendo uma analogia com a materialidade da digestão, recurso metafórico abundantemente usado para explicar processos cognitivos, dedica, na edição de A Gaia Ciência de 1887 (“Scherz, List und Rache” §54), uma pequena rima ao leitor: “Bons dentes e um bom estômago – / É o que te desejo! / Se digeriste o meu livro / Certamente saberás entender-te comigo!” Há ainda outros guiões remetendo para uma materialização, uma vivificação da interpretação: sugere, por exemplo, que o leiamos enquanto andados, em voz alta, atendendo às sílabas rítmicas, respeitando as modulações, pregas do som, a complexidade fonética dos textos.

Para simplificar o ângulo de entrada em Nietzsche (mas é só a entrada) podemos ler o “Vorwort” do Anticristo, numa página resume bem, mantendo a recomendação do rigor filológico, os atributos do seu leitor: a) deve estar acima dos mexericos políticos e egoísmos da época; b) ser indiferente à utilidade da verdade; c) corajoso em relação ao que é proibido e labiríntico; d) ter ouvidos para a novidade, entusiasmo, respeito, amor-próprio e liberdade perante si. Atenção, liberdade e audácia. Apesar das recomendações, não há, pois, codificações categóricas, Nietzsche nunca quis discípulos em dedicação estéril. E preferirá sempre um leitor arrebatado a um burocrático, sobretudo aquele que esteja disponível para ser mudado pelo texto a esse outro que lê para confirmar velhas certezas ou acumular capital informativo.

É por isso que acompanho Giorgio Colli em Sritti su Nietzsche (Milano: Adelphi, 1980, p. 13): “Na realidade, não há nenhuma necessidade de interpretar Nietzsche, isto é, a que seja determinado conceptualmente segundo uma ou outra direcção, justamente porque a sua acção sobre a vida individual é directa. Basta acolhê-lo, não através de fragmentos ocasionais ou diversamente sugestivos, mas na totalidade e unidade que formam. Este caminho mais laborioso deverá privar Nietzsche de uma falsa popularidade. Em compensação, a sua acção – a que ele queria – manifestar-se-á pela primeira vez, e ninguém pode dizer se essa acção será salutar ou nociva.” Não sabemos, é verdade, mas creio que ao ler Nietzsche se adquire sempre um pouco de lucidez e de probidade, entendendo, como se um raio nos atravessasse, que o trágico pode ser radiante. Por outro lado, com ele resistimos melhor às consequências negativas do nosso cepticismo, nomeadamente os impasses que lastram a acção, e ficamos suficientemente livres para não nos tornarmos reféns de certas convicções.

[1] Prefiro traduzir assim Menschliches, Allzumenschliches (seguindo Filomena Molder), em vez do tradicional Humano, Demasiado Humano.

[2] É bem conhecido a afirmação de Nietzsche sobre não haver factos, apenas interpretações (Fragmento Póstumo de 1886-1887, 7[60]), mas as duas afirmações cabem bem no seu pensamento, os factos do Anticristo ligam-se a uma leitura filológica, enquanto os factos deste FP recusam a ideia de uma verdade universal e transcendente ao perspectivismo humano.