«As mãos em plátana folha»

1.

 

 as mãos em plátana folha
esculpem a água nascente
da fronte ao rosto caído

crisálido rosto transeunte
as mãos em nervura ferida
percorrem do rosto a face

porquanto a face é somente
um rosto que nunca foi olhado.

  

2. 

a fruta envelhece
apodrece-lhe a cor
dentro do pote de
loiça no vime das
cestas as nêsperas
rendadas em glaucas
toalhas furtadas de
tângeras e reinetas
maçãs.

 

3. 

de casa as cântaras
à cabeça guindadas
em coroas de trapo
água ao levante a
sede a marulhar ao
aperto dos lenços o
crânio acrobata cãs 
em tear farrapos de
branco ao alaúde do
vento dedilhado em
adventos chãos de
tojo e de árvores.

 

4. 

água puxada aos furos
água choca nas fontes
a sede morre imediata
à salobre saciedade
das bocas vorazes de
língua esticada para
fora do forno na massa
do pão à côdea à coze-
dura pousam as bilhas
empinam cabaças
estalam-se-lhes as cruzes
na coluna e no peito
(da espinha ao reboco)
genuflectem sem dor.

 

5.

 do cocho sorvida
a líquida nascente
garganta embebida
em cíclicas gotas
vestidas de sangue.

 

6.

 em terra chã
nunca viram
o mar     mal
conheceram
as mães as
velhas sempre
ao colo de
ninguém.

 

7.

as velhas cardam
e acartam à antiga
abancam junto aos
cardos à sombra dos
filhos órfãos de pai
sôfregos de mãe a
pele curtida rugas
que nem vírgulas
a morte esculpida
em recto parêntese  
ao vertical sol desde
o sol de anteontem.


8.

 as velhas temem a deus
peito de fora o glabro
ventre à provecta luz
do dia amam de leite
odeiam de vinho os
filhos das outras à
noite recolhem em
flor mirrados botões
as tetas pra dentro
nos baús inchados
com idosos globos
de naftalina.

 

9.

 as velhas enlouquecem
à esquina do sol
à bainha da cal
no telheiro das casas
no mocho sentadas
pálpebras de coruja
em negro atavio.

 

10.

as velhas enxotam
aos enxames a
canalha ao correr
do vassouro na
rodilha a língua
cerzida aos trapos
junto com o vasculho
o credo deposto no
braseiro recesso as
velhas enxugam as
mãos e as mágoas
esbracejam à noite
acoitadas nos xailes
entretidas de negro
a mata-moscarem
sozinhas no escuro
o frio em lasca no
gume dos ossos.  

 

11.

 os velhos mandam-se
beirados dos telhados
daninhos como ervas
tomados pela loucura
de não quererem cair.

 

12.

 os velhos partem pinhões
nos poais dos pássaros
com calhaus nas asas
velhos desasados nos
peitoris das casas donde
já não saem senão para
ver passar o andor na
mirífica procissão do
senhor da boa-morte.

(haverá morte melhor
do que esta do senhor)

 

13.

 brônquios galhos
em cedro pulmão
a morte em flor:
a noite velha.

(“didascália deveria
ser nome de flor tal
como lírio ou estrelícia”) 

Sobre a fisgada que a gente sente no peito ao ver o museu da nossa própria vida

Teus olhos lembram-me o natal
e todos estes teus dedos
de pontas
finas
compõem os traços
dos esquecimentos


2.
Várias linhas regulares
têm brotado em mim
e nelas reconheço tua terra

E de tua poeira
faço cântaros
que cheiram
a genitálias

E de tais genitálias
faço amores


3.
Teu solo é ígneo e fareja
o sangue no topo da carne seca

Ecosofia e COP-21

 

Vive-se uma euforia quase viral em torno do acordo climático alcançado na COP-21 de Paris. Ele oferece a possibilidade, é verdade, mas não a garantia de superarmos a irresponsabilidade e a inconsciência climática dos últimos séculos (começámos inconscientes e acabamos irresponsáveis). Sabe-se com cada vez mais certezas que, se nada for feito, as temperaturas mundiais vão subir cerca de 3º C em relação à era pré-industrial. Em Paris, consensualizou-se um aumento máximo de 1.5º C, abaixo dos habituais 2.º C. Mais, a monitorização do processo foi desviado da política para a ciência, o que garante muito mais isenção e racionalidade. Terceiro ponto, se é verdade que não há obrigações contratualizadas, imperativos fixados (o passado mostra a dificuldade em impô-las), se num determinado sentido ninguém está obrigado a nada, o acordo abre, porém, a possibilidade de todos os actores sociais fazerem pressão sobre os Estados, sobretudo em cada ciclo de revisão dos acordos (todos os cinco anos). Portanto, crê-se que ao permitir que a sociedade responsabilize o Estado, este se sentirá mais constrangido a respeitar os compromissos.

Ora, para ser consequente com este objectivo é preciso deixar de utilizar rapidamente os combustíveis fósseis, este é o ponto principal que ditará o sucesso ou o fracasso da Cimeira de Paris. Se a ajuda dos países mais ricos aos mais pobres é relevante, se a necessidade de haver planos climáticos todos os cinco anos impõe uma dinâmica de acção permanente, se o sistema de créditos de emissões de CO2 pode ajudar as regiões menos desenvolvidas a superarem a economia do carbono, se a boa-fé dos políticos parece genuína... Se tudo isto traz um alento que nunca se sentiu na Conferência de Copenhaga de 2009, também é indesmentível que o resultado está nas mãos de cada um de nós, mais até do que nas acções ou inacções dos políticos profissionais.

E há muito a fazer no campo da re-ecologização do pensamento e sentimento individuais. A maioria de nós vive alegremente e irreflectidamente como consumidor-poluidor, com pegadas ecológicas muito acima do que é comportável para o Planeta. É por isso que pelo menos tão importante como os compromissos da COP-21 será reflectirmos e agirmos sobre o nosso estilo de vida, individualmente, em micro-política, mudando-nos primeiro a nós, na esperança de um crescimento exponencial, passando do individual ao global, a partir do princípio político da gota-a-gota.

Para isto, talvez seja útil, além de um conjunto vasto de informações científicas disponíveis on-line, reler um pequeno livro de Félix Guattari, texto de fim de vida (1989, Guattari morreu em 1992): Les Trois Écologie (Paris: Galilée, 1989). Neste opúsculo, o pensador que escreveu L’Anti-Œdipe ou Kafka. Pour une littérature mineure a duas mãos com Gilles Deleuze, insiste na necessidade de uma nova subjectivação do indivíduo,[1] articulada com uma mutação social e a recuperação de um meio ambiente degradado e irremediavelmente modificado (vivemos no Antropoceno). Ecologia subjectiva, social e ambiental, pensar as condições de produção de estilos de vida num mundo extremamente frágil, desenvolver lógicas de subjectivação que não se submetam à pura lógica do lucro. A abordagem faz-se a partir de uma Ecosofia (“eco”, entendida na sua raiz etimológica como “oïkos”, isto é, casa, habitat, meio natural), devedora, e suplementadora, do movimento da Deep Ecology desenvolvido pelo norueguês Arne Naess durante a década de 70 (é importante pensá-lo como “movimento social”, não como ideologia). Para Guattari, a Ecosofia permite uma resposta multipolar, de ruptura política, social e cultural, uma resposta “ético-política” (p. 12, também a designa como abordagem "ético-estética", p. 31) articulando três campos heterogéneos: o do ambiente, das relações sociais e da subjectividade. Esta abordagem é simultaneamente pragmática e ética, as três ecologias não pretende revelar uma qualquer essência, mas desenhar práticas mais eficazes na desalienação do humano e na preservação da natureza.

Continuando a sua crítica ao espírito capitalista mais puro, Guattari define como objectivo fundamental a re-singularização dos indivíduos através de práticas de micro-desejo, de micro-política e de acções micro-sociais, única forma de combater as semióticas capitalistas dominantes e os discursos sedativos. Passagem de factos e hermenêuticas de estrutura para factos e hermenêuticas atentas à autonomia criadora. Daí o slogan “Work in progress”, um permanente pensar e agir sobre as condições de produção de estilos de vida (o que inclui já a preservação da própria vida tal como a conhecemos). Contra o modelo único de tudo ser transformável em tudo, rasura dos valores intrínsecos, primado dos fins sobre os meios. A Ecosofia é também uma analítica capaz de compreender a complexidade dos problemas actuais mais recalcitrantes, articulando ética e politicamente os três registos ecológicos: ambiente, relações sociais e subjectividade ("relações da humanidade ao socius, à psyché e a 'natureza'", p. 31). A disfunção resulta da redução da intensidade e complexidade das redes familiares, "uma vida doméstica gangrenada pelo consumo mass-mediático, a vida conjugal e familiar encontra-se 'ossificada' por uma espécie de estandardização dos comportamentos, as relações de vizinhança são geralmente reduzidas à sua mais pobre expressão... É a relação da subjectividade com a sua exterioridade – quer seja social, animal, vegetal, cósmica – que se encontra comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e de infantilização regressiva." (pp. 11-12)

Na ecologia mental, resultante do processo de subjectivação de cada indivíduo, já não se trata de propor qualquer tipo de cura (Guattari era psicanalista, embora pouco freudiano) para o sujeito patológico, mas de pôr em relação o mental singular com as problemáticas colectivas. E nesta relação, em bom construtivista, cada indivíduo vai definindo uma parte da sua própria subjectivação, construindo o seu eu. Uma ecologia que não investisse no problema da subjectivação fracassaria, visto deixar a subjectividade presa aos modos de produção do “Capitalismo Mundial Integrado” (do neoliberalismo ocidental ao capitalismo de estado neo-comunista, ou ainda "O antigo igualitarismo de fachada do mundo comunista", p. 16). Com isto, Guattari recusa pensar o indivíduo a partir de um fundo que fosse “verdadeiramente humano” uma antropologia fixa, conservadora, mostrando à partida o que é e pode ser o humano. Pelo contrário, a subjectivação do indivíduo é um permanente work in progress, envolvendo os três campos, do mental, do social e do ambiental. Um processo que "Longe de buscar consensos estupidificantes e infantis, tratará no futuro de cultivar o dissenso e a produção singular da existência."

Na ecologia social, Guattari aponta a destruição da vida em comum, a fragilização dos grupos e dos processos de subjectivação que nos tornam grupos-sujeitos (onde os indivíduos sejam "simultaneamente solidários e cada vez mais diferentes", p. 72) . A principal causa está no desvanecimento da variedade e divergência das actividades humanas. Hoje só se valoriza o mundo da produção capitalista. A esta homogeneidade pérfida opõe Guattari o princípio vital da heterogénese. Uma ecologia social pensa e age sobre as relações que produzem o socius. Partindo do mental e do ambiental (não é um ponto de partida absoluto, ele desloca-se entre os três vértices do triângulo ecológico, capturando à vez um ou dois pontos para essa função), a Ecosofia propõe-se construir novas modalidades de viver em grupo. Fundamentalmente, porque responder permanentemente e infinitamente ao problema que constitui aceitar o dom do outro e a sua amizade numa perspectiva de abertura e de generosidade, de co-produção. Nada disto deverá, porém, seguir um sentido pré-definido, Guattari dizia muitas vezes que não se devia olhar para um ou outro lado, mas para todos os lados: alteridade, heterogénese, hibridismo... Como tinha pensado com Deleuze, a partir do exemplo de Kafka, não interessa o início ou o fim, mas o meio, construir sínteses, sim, mas disjuntivas. Pôr em perspectiva uma heterogénese onde os contrários não se destroem mas se hetero-alimentam. E depois, questão da velha crítica, continuar a tentar perceber como o poder repressivo é tantas vezes introjectado pelos oprimidos. Agindo sobre a ecologia mental, claro, mas também, Guattari refere-o várias vezes, reapropriando-nos dos meios de comunicação de massa, meio poderoso de alienação do individual e do social. Tudo isto enquadrado na recusa de uma essência humana, para Guattari, seguindo Nietzsche, o homem está em permanente construção, daí que as suas propostas sejam irredutivelmente pragmáticas, o que conta é o efeito não a descoberta da verdade.

Sobre a ecologia da natureza, Guattari acaba por escrever muito pouco, o seu princípio é o de que “tudo nela é possível, o pior e o melhor”. A natureza é maquínica, composta por uma conexão de elementos heterogéneos em constante modificação, sem afinidades especiais com os seres humanos (bem diferente da visão de Arne Naess, para quem o natural se entrelaça vitalmente com o cultural). Mas saber que o pior pode advir exige disposições éticas de combate. As soluções tecnológicas para as crises ambientais requerem que os sujeitos se apropriem dessas mesmas tecnologias para as pôr ao serviço da reparação ambiental, por exemplo: o problema do aquecimento global obriga a uma apropriação social e mental das tecnologias necessárias à mitigação dos efeitos mais negativos.

Num resumo apressado, podemos dizer que Les Trois écologies pode, e talvez deva, ser lida como uma proposta ética, novas formas de pensarmos e agirmos sobre nós, a sociedade e a natureza. Um ética sem moral, visto que as acções são, pelo menos em parte, ditadas pelas circunstâncias, ética variável inscrita em cada caso.

 

[1] Por “subjectivação” entendemos os múltiplos e multiformes processos que fazem de nós um sujeito. Neste sentido, é necessário recriar mitos, servirmo-nos do poder do imaginário e do fantástico (Cinema, romance, música, jogos de vídeo... também contribuem para esse processo) tanto quanto dos discursos das neurociências ou da filosofia.

España saqueada

 

CánoVas del Castillo

CánoVas del Castillo

De todas las historias de la Historia

sin duda la más triste es la de España,

porque termina mal. Como si el hombre,

harto ya de luchar contra sus demonios,

decidiese encargarles el gobierno

y la administración de su pobreza.”

Jaime Gil de Biedma.

                 

A todos los salvapatrias de ínfulas, bandera y conmemoración convendría recordarles la historia de Milo Minderbinder, teniente de la 27ª división aérea de los Estados Unidos destinada en Europa en la II Guerra Mundial. Cuenta Joseph Heller en Trampa 22 cómo Milo se enriqueció durante el conflicto vendiendo ilícitamente toda clase de bienes del ejército en los puertos mediterráneos. Sus pingües negocios privados conseguidos por el contrabando de lo público fueron justificados en clave nacionalista a partir de la consagración de la corrupción como modelo político: si Milo se enriquecía, indirectamente estaba favoreciendo a los Estados Unidos, pues la riqueza del país radicaba en la prosperidad de sus conciudadanos. Con esta lógica, tan familiar para todos los patriotas y padres de la Constitución con números en Suiza, el teniente hizo millones jugando con la vida de miles de soldados norteamericanos. En una ocasión vendió como alimento a sus tropas un algodón incomestible. “Si te metes en algún lío, di que la seguridad del país requiere una industria fuerte en especulación con el algodón de Egipcio”, lo que en términos macroeconómicos y geoestratégicos implicaría una Norteamérica mucho más fuerte. Envenenar y empobrecer a tus soldados a costa del beneficio individual se convertía en un acto nacionalista en la lógica Milo. Llegó al extremo de facilitar coordenadas a los bombarderos nazis para que destruyeran posiciones aliadas. Sus confidencias costaron millones de dólares y miles de vida. En el juicio por traición fue absuelto porque convenció al tribunal que sus acciones fueron un sacrificio patriótico para estimular la industria norteamericana.

El teniente Milo, con diferentes formas y siglas, se presenta a las próximas elecciones y, si las encuestas no se equivocan demasiado, saldrá elegido presidente del Gobierno y jefe de la oposición. Con nuestro voto dotaremos de legitimidad un sistema corrupto e inmoral, refugiado en discursos patrióticos -¡que viene Venezuela!- que los medios jalean para que la ruleta rusa del bienestar no dirija el cañón al que aprieta el gatillo. Ha ocurrido en Andalucía, en Cataluña y el desastre se consumará a nivel estatal. Sucesivamente han sido reafirmados en las instituciones partidos, líderes y conductas criminales, cundiendo el mensaje de la impunidad. En la raíz del discurso político ha estado la cuestión nacional, la patrimonialización o personificación de la identidad, cuando en realidad nos estábamos jugando la victoria electoral del patriotismo Milo.

Encontramos en el último siglo decenas de ejemplos significativos que por vergüenza cívica deberían conducir a la desaparición o reformulación de determinados partidos políticos y sindicatos. Que “Luis, se fuerte” vuelva a presentarse con opciones reales de victoria nos tendría que ruborizar. Como ironizaba El Roto, no votamos, fichamos. Esta democracia-show, tan vulnerable por los imaginarios del terror, el consumo y el desencanto, ha perpetuado el saqueo nacional, demonizando a todo aquel que lo ha cuestionado o denunciado a partir de la lógica nacional.

Cánovas del Castillo, en vísperas de la debacle militar en Cuba y Puerto Rico, afirmó en el Congreso de los Diputados que España emplearía la sangre de su último hombre y gastaría su último céntimo en conservar aquellas provincias. Por supuesto, no se refería a sus propios hijos ni a sus céntimos. Cuando evocaba a España, hablaba del pueblo doliente, de obreros y jornaleros sin recursos económicos para escapar del infierno. Esta España, henchida de patriotismo, debería seguir luchando, agonizando y muriendo por la España mínima que se enriquecía con el comercio transatlántico. En 1919, los conservadores llamaban a reforzar el somatén y la violencia de la Guardia Civil para que en nombre del Dios de España, la (su) familia y la (su) patria, dispersasen a tiro limpio las masas de pobres que rebuscaban bellotas en el suelo o reclamaban mejores derechos laborales. Un ritual de sangre y luto que reconstituiría la nación española en contra de sus habitantes. El mismo que protagonizó Franco décadas después, al iniciar una guerra sin recursos y acabarla con ríos de sangre y oro en sus caudales. He ahí un patriota.

La complicidad y legitimación del saqueo es el gran fracaso de la democracia de nuestro país. La crisis está en las papeletas que depositamos, no en las instituciones. No es extraño que el Juan de Mairena no sea leído ni entendido en los horizontes culturales del patriotismo de pulsera y comisión: “Si algún día tuviereis que tomar parte en una lucha de clases, no vaciléis en poneros del lado del pueblo, que es el lado de España.” El 20D nos han convocado para votar por España, por Cataluña, por la Constitución o por la Autonomía, principios vagos que esconden los beneficios privados de todos los Milo que convierten intereses personales de clase en problemas nacionales. Por ello hemos rescatado a la banca sin intereses y hemos perdido espacio en colegios y hospitales.

Y una vez más, por la España gris, corrupta y traidora, por un erróneo sentido del patriotismo –que no es más que admiración por el cacique y anhelos de burguesía con hambre- refrendaremos en el poder a aquellos que van a enviar a nuestros hijos a morir en Siria, a lavar platos a Londres o a pedir limosna con una factura de agua a los servicios sociales. Y la culpa será nuestra y nos lo mereceremos, porque cuando tuvimos oportunidad votamos a Milo. Llora, España, que lo tuyo es llorar.

                  

Os melhores de 2015

Um poeta escreve

Um poeta escreve

País de jograis e de génios nem a chicote domáveis, Portugal pauta-se por uma fecundidade criativa que desacredita a feitura das habituais listas dos melhores do ano. Ciente da abundância criativa lusitana, a massa crítica que coloniza os nossos (leia-se chegados ao coração) escassos mas valiosíssimos suplementos culturais tende, e bem, a suprimir análises que incluam reflexão. A ausência de fontes credíveis impossibilita-me de descobrir quem tem barrado (um político sinistro, um perverso legislador?) o acesso dos mais reputados críticos nacionais a algo por cá tão pouco massificado como o pensamento, faculdade humana nefasta para indivíduos inexperientes ou inabilitados para agir desprovidos de psicopatia. Quem foram, então, os mais grandiosos prosadores e versejadores deste Portugal mais nascido para sentir do que para raciocinar? 

Da vasta produção poética de José Não-Bebas-Tudo (nome de guerra), que infelizmente não desaguou em mais do que meia-dúzia de versos impressos, sobressai o poema “Complexidade do amor”, dado à estampa pelo guardanapo do café que quis o acaso que fosse eu, atenta às minúcias artísticas, a encontrar. Neste poema, que evito reproduzir para instar o leitor a percorrer os cafés do Chiado em busca de semelhante guardanapo, José, apenas José, quebra as regras da poesia. Soprou-me um anjo que se projecta para 2016 o lançamento em livro de uma recolha dos mais belos guardanapos deste delinquente literário que, a viver à conta da reforma da avó, comprova que Portugal não respeita os seus artistas. 

Do céu caiu uma estrela, o revolucionário Manuel Gandulo, pois claro. Marginal por vocação, desliza pelos balcões do Cais do Sodré numa obsessão pelo vómito da sociedade que o torna personagem central da sua arte. Quem o vê passar durante o dia, encostado às paredes para não tombar de bêbedo, não consegue imaginar que o esfarrapado, malcheiroso e cambaleante barbudo com tiques de arrogante (não me toque, não me toque que sou poeta, brada a cada esquina) representa na verdade o que a poesia tem de melhor: a capacidade de transpor para a arte a bestialidade da vida. Se este piolho andante nunca escreveu, foi por disso não ter necessitado: a sua pose transcende o papel e a caneta. 

Criado em berço de ouro, o jovem António Mais-Subterrâneo-Não-Se-Arranjava não se rendeu a um determinismo que o empurrava para uma carreira na advocacia ou como representante da República no Parlamento. Os sete anos monasticamente cumpridos na Faculdade de Direito foram-lhe essenciais para compreender que a sua missão no planeta diferia da missão que os pais diziam ser a sua. Lidos os primeiros poemas, meteu na cabeça que seria poeta laureado e sisudo. Num afã de ser outro, fez o possível e o impossível para conquistar um lugar ao Sol. Perseguiu, ameaçou e espancou os mais nomeados críticos da praça. Não desistiu até ter revista, editora e livros próprios. Em 2015 consagrou-se como artista de excelência com um livro banalíssimo que, depois de coagida por sms nocturna, direi que me parece promissor se lido de trás para a frente e de olhos fechados. 

Quem quer saber do que de melhor se publica no estrangeiro quando o que é nacional supera o resto? Das subtilezas da intuição e do sentimento sabemos nós, povo fundador de uma ruralidade divina, homens-trovão, descendentes de Neptuno, filhos de Viriato, heróis de uma Expansão futura.