Vienna

 

Estábamos volando hacia allí empotrados en los incómodos asientos del avión,
y sin darnos cuenta, 
los adoquines de las aceras se apoderaron de nuestros pies.
Me agarraste de la mano y dejamos que el frio se colara bajo nuestros abrigos, mientras comíamos con los ojos todo lo que se alzaba a nuestro alrededor,
en esa bella ciudad.
Entramos a por un café humeante y unas galletas para saciar el estómago en el primer letrero luminoso que vimos tras un parque,
y hablamos hasta que se hizo de noche,
mientras a través de la ventana nos observaban los viandantes.

¿Dormimos? 
Supongo que si, 
pero recuerdo despertares interrumpidos y dulces somnolencias. 
Tu boca en mi espalda, mi mano en tu pecho.

Los museos pasaron de largo, y sólo veo pisadas en la hierba, huellas en los bancos, giros y piruetas marcadas en el aire de las plazas... Un íntimo restaurante donde me llevaste a cenar, donde apenas probé bocado perdiéndome entre la infinidad de tus ojos. 

¿Volvimos a dormir? 
Creo que sí, 
pero sólo recuerdo el olor de tu cuerpo y el tacto de tu piel.

Coloqué la bufanda alrededor mi cuello y sentí el leve roce de la ciudad diciéndonos adiós. 
El lento deslizar de las gotas que se aferraban a mis botas predecía naufragios, 
pero mis manos siguieron aferradas a las tuyas, 
y tu mirada me pertenecía indudablemente. 
Apoyé mi cabeza en tu hombro mientras las nubes atrapaban las alas del aparato, 
y desperté con chocolate en el sofá de mi casa, 
apoyando mis pies en tu regazo.

Hace un tiempo de eso, 
creo que el frío no ha vuelto a anidar en mi cuerpo. 
Me pregunto si hemos estado ahí de verdad, y dónde estás ahora.

Deixa-me sair contigo

"Estou farta disto, da vida, dos cães, de ti." A esposa golpeia-me a todo o minuto com frases semelhantes a esta. Em sete anos, nunca me agarrei aos tachos, nem me mostrei romântico o suficiênte para mandar o cliché às urtigas e oferecer um ramo de flores. Passeio mal os cães. Troco as coleiras. Quanto ao meu feitio, defeitos mil. "Personalidades incompatíveis", absorvo, indisposto, que é como fico assim que ela desata a dissertar acerca do meu carácter. Procurei ajuda profissional, ajuda que me tem feito arquivar, esquecer ou superar ou agonizar com diversas fantasias do passado. Julguei que a psicoterapia fosse diferente: o indivíduo recostava-se no divã, vitimizava-se sem parança, a minha mãe isto, o meu pai aquilo, o destino mau e os amigos, nenhuns, piores, e no fim (imaginava que se chegava a um fim, que o processo não se arrastava durante anos) recebia abraços, ouvia um "coitadinho" do profissional, coitadinho que o mundo fez-te tão mal. Não desisti de encontrar um bom médico, não por culpa dela mas para lhe agradar ou mostrar que desejava ser diferente: menos egocêntrico e intolerante e o costume, o costume. Custa ouvir que podemos ser amigos, que sou doentio e paranóico. Prometer este mundo e o outro a quem sofre da mesma depressão não é bom remédio: ambicionamos possuir o universo sem esforço, sonhamos com os Estados Unidos ou com o Canadá e com impossíveis que estão à distância de um estalar de dedos. Aprendi, desconfio que deveria desaprender, que repetir sempre e nunca é típico dos depressivos. Tenho evitado o sempre e o nunca para não parecer deprimido, ou melhor, para transmitir a ideia de que, mesmo estando no poço, não me encontro tão enterrado que dele não possa sair. Ela então passa os dias nisto: tu nunca, tu sempre, tu nunca. Chegada a altura de desabafar sobre os males que nos apoquentam, ela não diz "eu", o que se torna deveras irritante. O culpado sou eu. Acreditei que era vilão, que não tinha virtudes, que deveria ser alguém muito repugnante em termos físicos. Procuro acreditar que não sou repugnante, nem feio, nem chato, nem aquele torcer de nariz ou revirar de olhos. Sou assim para ela, mulher que desejava ver-me a mudar, que me levou a tentar mudar e a compreender que para meu próprio bem deveria mudar. Evito aquele turbilhão que desemboca na vontade de suicídio: não arranjarás outra, viver sozinho é impossível, não te aguentarás. Alterar esses pensamentos para um aqui e um agora, é assim que se diz nos livros de auto-ajuda, em alguns livros, naqueles que me vêm parar à toa à algibeira. Amanhã serei diferente, o interlocutor acredita no nunca. Eu é que deveria acreditar que amanhã serei diferente, que posso mudar. Largar leis imutáveis, castigos auto-impostos. Medo da solidão e da rejeição, afirma o psicoterapeuta. Reformulo: "Você não consegue lidar com o facto de não ter podido escolher os seus pais." Você não aceita, não aceita nada. Um funeral andante.

Promessa de futuro

Paul Klee, Kömedie (pormenor), 1921

Paul Klee, Kömedie (pormenor), 1921

Nos comboios lisboetas fala-se pouco, a não ser quando estudantes em grupo abafam com tagarelice o futuro que não vislumbram. Mas sexta-feira um par de utentes conversava sem constrangimentos especiais sobre o estado da nação.

A páginas tantas (expressão da infância), a mais faladora disse: “Preciso de um desafio ao nível da minha ambição”. Não sei a que se referia (o resto da conversa fez pouco sentido), mas a frase encantou-me, como se fosse o leitmotiv justo para ao mesmo tempo descrever os “tempos sombrios” em que vivemos e projectar uma promessa de futuro.

Na verdade, falta-nos um desafio que funcione como uma faísca para despertar novas ambições de vida, de vida afirmativa, de vida sem medos. Parece que este país – e nós, todos nós, somos o país –, preso no ciclo de um niilismo podre, só nos pede para cairmos sem nos aleijarmos muito, nem encenarmos um alarido histriónico de civilizações periféricas, almofadados com lamentos e bodes expiatórios evanescentes (que é feito dos ódios teológicos contra o “Capital”, “Judeus”, “América”, “Patronato”, “Ricos”...?). Pedem-nos que sejamos cidadãos ingénuos, mecânicos e fatalistas, não passando nunca a acção de mera reacção. E assim vamos incorporando imensas negatividades como fado de estarmos vivos.

Não sei para onde vamos nem o que nos fará levantar a cabeça e voltar a rir como a “Criança” de Assim Falava Zaratustra. Estamos numa penumbra infinita e numa ambivalência fundamental. Mas às vezes o “que salva” está nos gestos e nas palavras mais banais, basta purificá-los com a generosidade do que se quer alcançar. Não é preciso continuar a comprar as coisas supérfluas que nos habituamos, ou que nos habituaram, a desejar quase acima da própria vida. Só precisamos de adoptar esta crise nas alturas da nossa coragem, coragem da liberdade antes de mais nada, que é maior do que muito do dinheiro que deixámos de ganhar. Mesmo se, como diz Sloterdijk, “O grande número recusará sempre, em nome do pão, a liberdade que lhe é oferecida.” (Crítica da Razão Cínica).

Sejamos insolentemente livres, é este o desafio que me faço e vos faço, tracemos novas linhas de vida sem pedir licença tanto aos profissionais do protesto como à censura da afirmação e da felicidade. Saibamos construir a nossa promessa de futuro.

Três poemas húngaros (3)

tu agora és dos montes entre os bosques
e eu já das largas avenidas
tu da casa onde arde um grande fogo
e eu, além rio, do quarto esconso 

tu agora buscando o mais da vida
e porventura eu do mal o menos
reclamando à solidão o fraco lucro
de todas essas coisas já sabidas
que aligeiram assim uns quantos dias
que lhes dão enfim uma corzinha 

como a música, bons almoços
olhos lentos, alguma poesia
enganos de contas a meu favor