Niilismo 0/c. 10

Sebastião Salgado, Serra Pelada, 1986

Sebastião Salgado, Serra Pelada, 1986

Nestes tempos sombrios onde se desbaratou quase todo o capital de esperança, vou escrever cerca de dez quadros sobre o niilismo. A melhor forma de conjurar o mal, o que entendemos por tal, passou quase sempre por convocá-lo. O niilismo deve, pois, ser combatido através da análise e, como queria Nietzsche, aproveitando as suas forças para fazer nascer uma nova vitalidade (depois de extirpar o que está caduco): superar o niilismo pelo... niilismo.

A magnífica foto de Sebastião Salgado revela bem que é preciso jogar com os paradoxos para apanhar as linhas duras do esqueleto niilista: os milhares de pessoas e a natureza morta que encenam uma quase insuportável visão da humanidade são atravessados pela esperança de cada um daqueles indivíduos vir a enriquecer, isto é, nos termos da nossa cultura híper-consumista, de tornarem a sua vida valiosa.

Se o nihil latino quer, em primeiro lugar, designar a ausência de valor, e concomitantemente de sentido, as modernidade e pós-modernidade usaram, e abusaram, da descoberta estético-filosófica da redenção do nada (distinto da “ausência” oriental, bastante mais espiritualizada). Os séculos xix e xx entretiveram-se a esticar o sem-sentido e o não-valioso até ao ponto em que se transfiguram nos seus opostos. Às vezes por pura brincadeira, como em parte do Surrealismo, outras por necessidade de sobrevivência ou de cálculo político, como nas experiências de desolação singular ou no projecto tenebroso do nazismo.

Por outro lado, nunca estivemos, cronologicamente e talvez emotivamente, tão perto do “fim dos tempos”. O mito apocalíptico nasceu com a cultura, vertido em inúmeras narrativas que povoam o imaginário humano da Mesopotâmia até hoje. Mas talvez seja a partir do século xix, alimentado pelo espectáculo faustiano da industrialização, os impulsos revolucionários e o prenúncio das guerras totais, que verdadeiramente, e inelutavelmente, se instala a ideia de Fim. Acresce agora a convicção de que o Planeta deixará de nos suportar, depois do Antropoceno o ter desafiado até ao limite. Perante as cada vez maiores, e mais frequentes, evidências de que diminui rapidamente a capacidade da Terra acolher uma biodiversidade alargada, será ainda possível pensar um qualquer tipo de redenção?

É sobre isto, directa ou indirectamente, que quero pensar e escrever, uma micro-forma de superar a melancolia deste novo fin de siècle que se adiantou muito no calendário habitual dos spleens milenaristas. 

Cities

In a crowded city
You have to run – to impose your nonexistence
Otherwise they'll swallow you
I'm falling down
Into a black black hole
This city does not accept my sorrow
I cannot see my tears dropping down
I cannot taste them
Or they taste of nothing
You are looking for a cursed village
lost somewhere in an unwanted country
Named by the deadly silence of the close by forest
You cannot stay here anymore 
The shadows which sun gives to the small hidden path,
The fireworks in the sky next to the lights of a luna park
And a dance under some balcan rythms
All, reminds you of the wrecks of your life
Ruins of another decade
All this wasted life
A journey with no meaning
An Ithacan with no journey
All well locked into an old treasure chest
And you try again to go
And again
But all these roots cannot be cut
The cutting produces new roots
Bigger and stronger
Ropes which tie up your wrists
They keep you here
They attract you
As a magnet attracts pins
The further you are going
The faster you return
With the force of this universal attraction
Like a natural low
And yes here I am again
Walking the same old streets
Sitting on the same rock
Drinking in the same bars
Sitting even in the same old chair
With your name engraved in its wood
Listening to the same music
Telling the same stories
Drinking again
But you still remember
But you still remain here
Trapped in an unknown but familiar world

 

Rua das Gáveas / Relâmpagos

Era de noite na rua deserta.

Estávamos a escassos metros do ponto exacto

(e de mau gosto)

onde noutra noite menos negra

as nossas bocas enfim se saciaram.

Tenho esta infeliz inclinação

para fazer as melhores coisas nos piores lugares

para escolher as piores frases

para as conclusões mais importantes.

 

Não te peço a salvação, quero apenas que existas

ao meu lado:

serei instantaneamente melhor

e melhor a cada momento em que possa beber das tuas frases

e meditar no teu sorriso

e suar no teu pescoço

e respirar pelos teus olhos.

 

Era de noite na rua deserta onde

eu consegui fazer o impensável:

como se tivesse uma arma de balas de borracha

a disparar contra o teu corpo

e esperasse que ao esgotar as munições me abraçasses

e me dissesses que compreendias

aquela absurda forma de te dizer:

 

quero-te na minha vida.

 

Esperasse que ao esgotar as munições

o teu corpo não sofresse as convulsões

que a tua voz dissimulava em frieza.

 

Que ao esgotar as munições

não tirasses do teu coldre tu também a tua arma

(e como doía

cada bala que eu merecia).

 

Como se esperasse que ao esgotar as munições

não me invadisse num relâmpago

o pânico e a lucidez e um relâmpago,

 

um relâmpago a rasgar-me o diafragma quando as tuas

mãos feridas

me envolveram o corpo ferido e a tua boca

sôfrega buscou a minha

e por uns segundos um minuto uma vida a eternidade

a todas as feridas veio a salubridade.

 

Depois partiste pela rua deserta.

Era de noite.

 

(Eu estava errado e tu estavas certa.)

 

Deixa-me crer nesta ornitologia de bolso:

antes falhar um golpe de asa ao descolar

do que quebrar estrondosamente em pleno voo.

 

Pousemos pesadamente sobre o chão.

 

Agitemos os braços com força até lhe apanharmos o jeito

há tantas cores que não conheço nos teus olhos.

 

Dá-me a tua mão

voamos juntos para dentro deles

pelo meio dos relâmpagos que nos alumiam o peito.

Contra a diversão na escrita e na leitura

Jovens poetas vivendo a vida louca

Jovens poetas vivendo a vida louca

Ler não é divertido. Ou não é divertido da maneira que apregoam livreiros e editores que querem chegar a um público mais jovem. Ler não é sexy, não engata. Quem apresenta os livros como produtos que emanam sensualidade pretende apelar a um público que considera quase tudo o que se escreve aborrecido. Um público que não lê. Um público ansioso que não aprecia o tempo longo, que quer viver agora. Para existir agora não se pode fruir com Ulisses, de Joyce. O livro sensual é o livro de Bukowski ou Kerouac, o livro de fácil leitura que nos faz crer que ser escritor é beber e fornicar imenso e andar com quem e como queremos. Autores com muita probabilidade de serem vendidos por quem apregoa a sensualidade do livro são os publicados em editoras extintas, ditas subterrâneas. Estes autores cavernosos têm muitos méritos literários, mas não é pela escrita que encontram compradores: é pela imagem rebelde, por muitas vezes terem sido marginalizados em vida, por não terem tido o reconhecimento que mereciam, por se desviarem da norma e serem considerados "loucos". Ler é, então, divertido quando se está no campo do subterrâneo, do subversivo, do clandestino. Quando imitamos os nossos heróis no que estes tiveram de mais supérfluo. Quando lhes copiamos os gestos e as frases politicamente incorrectas. 

Escrever é ainda menos divertido. Mas quem lê desta maneira, quem confunde a vida do escritor com a escrita, ao ponto de saltar por cima da escrita, não quer saber da dor. Escrever não pode ser difícil. Carlos de Oliveira escreve o seguinte a propósito de um livro seu: "obra lenta, elaborada com todo o vagar na "alquimia" dos papéis velhos. Quase sem eu dar por isso o livro surgiu-me pronto, é certo, mas levara três anos a construí-lo. Papéis acumulados, experiências para aqui, para ali, vários livros a crescer lado a lado. Coisas reescritas até à saciedade, e por fim a pequenina explosão já entrevista, pelo menos sonhada" (O Aprendiz de Feiticeiro). Quem demora três anos a concluir um manuscrito? O rapaz que escreveu cinquenta páginas e as enviou para todas as grandes editoras, esperando a partir daí viver da sua genialidade? O rapaz que lê Herberto, que sente Herberto, que só sente Herberto? O artista que fumou dois cigarros de enrolar com os seus amigos iniciados na poesia e decidiu virar poeta? Qual o tempo da escrita para quem vive da diversão literária, para quem encara a leitura e a escrita como algo que não pode ser chato? Três anos é muito tempo. Reescrever é demorado. 

A fama deve ser instantânea. Deve demorar o tempo de chegar a casa e escrever três versos. Quem entra na arte procurando a rapidez e a risada e a camaradagem não espera dificuldades. É preciso aparecer no facebook, receber centenas de likes, ser fixe. Quantos amigos perdemos se demorarmos três anos a reescrever? Saramago começou tarde, Fernando Campos e outros também. O tempo da escrita, do aperfeiçoamento da escrita, varia. Não evoluímos da mesma maneira. Para estes talentos  não há tempo a esperar, é necessário ser famoso e já. Abre o bar e temos de lá estar. Não podemos faltar a certa apresentação. Temos de apertar as mãos certas. Se não aparecer no suplemento cultural, perdi o filão da fama. Não é assim. A literatura não faz rir. Não é um trampolim para aparecer no suplemento. Todas as semanas aparecem génios. Portugal encheu-se de génios versáteis, dotados das mais extraordinárias capacidades artísticas. Recenseiam, poetizam, documentam, romanceiam. Sim, multifacetados e risonhos e grandes cavaleiros da luta contra a alienação. Mas Carlos de Oliveira, triste e lento, continua a ser melhor. Qualquer escritor que saiba viver no silêncio, distante da criançada, será melhor. 

Jovens autores sentindo a literatura.

Jovens autores sentindo a literatura.


Do Corpo

Do corpo: poema na pele 

Todas as noites liam poesia
há muito que o sexo se gastara
e o amor era afinal
uma palavra de vidro dentro de um livro
Bebiam chá quente contra o gelo do corpo
esfregando cada poema na pele
como se remédio fosse
à procura de alguma seiva
Alguns ossos foram ficando fora do sítio
e agora apenas se tocavam
para cortarem a carne na dobra do papel
antes de se deitarem lado a lado
Ao ler poesia todas as noites
sentiam a mesma sensação de outrora
a mesma sensação de quase prazer e de impotência 

Do corpo: poema ao pescoço

E uma madrugada acordamos
com um poema ao pescoço
apertando cada vez mais
Já quase sem respirar
levam-nos para uma sala branca
e abrem-nos a cabeça
como se remédio fosse
Remexem e voltam a remexer
mudando os ossos de sítio
mudando a memória de sítio
e até a infância que fomos deixando crescer
Desfazem quase tudo mesmo antes da morte
e do corpo lançado à terra
com um poema ao pescoço que ninguém reparou
Somente as palavras resistirão
mais duram os versos que o vidro
e mais ainda cortam  

Do corpo: poema às costas

Depois daquele poema
depois daquele verso
ficamos logo condenados
É já demasiado tarde para outro destino
que não o de carregar a ruína às costas
tentando cerrar os olhos e a cabeça
como se remédio fosse
Vai-se aprendendo o melhor que se pode
a caminhar sobre o vidro
e a esticar nele certas imagens pesadas
Por vezes acontece partirem-se alguns ossos
na travessia de algumas palavras
ao ponto de ficarmos invertebrados e imóveis
Mas mais depressa se cura um osso que um poema
essa carne viva fora do sítio