MUSAS
/Músicos itinerantes, Mosaico Romano, Séculos II - I d.C.
«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
Músicos itinerantes, Mosaico Romano, Séculos II - I d.C.
Escrevem, desenham, fotografam
esculpem, filmam, tudo reinventam
e esperam que esses nados vivos
feitos de matéria morta (Wyndham Lewis
assim o disse) vivam para sempre. Mas
não têm conta os poemas desaparecidos
as canções esquecidas, as estátuas
apeadas, histórias desfeitas
pelo fogo e pela água,
casas destruídas
onde as chamas devoraram
o cerne das gavetas;
não têm conta as fotografias destingidas
o celulóide ardido, os dados apagados por engano
nos jogos de fortuna e acaso que nos regem,
às coisas vivas e mortas.
Há nisto menos fracasso
do que seria de esperar. Gostávamos
de ter lido mais Safo, e todavia
tudo parece estar certo, mesmo assim.
Mais leve, pelo menos.
Um minuto de silêncio
por quantos na linha do tempo
se perderam
com todos os seus pertences;
e outro ainda, por até a linha do tempo
perdermos tantas vezes
Poemas lidos por Vítor Teves, Julho 2019:
Tira-me este ecrã da frente e
traz-me um
lápis e um papel para
traçar um risco e depois
parar
pairar
como as avós nos seus sofás
um dia inteiro
em loop
a primeira letra do nome de um amor
vindo à baila
a pé coxinho e já
não se lembra
só que fazia calor
ou então muito frio, depende
da geografia de que queres saber
aqui só está mesmo o naperon
pousado ele também
pois sentada é justamente uma boa posição
para não enlouquecer
olhos em frente, passos em redor
o doutor do outro lado do ringue
ou um filme de maxilar anquilosante
uma estaca aqui plantada sou
esgrima, sono,
lago ou fogo de artifício
tudo pode ser
no fim do dia
mãos vazias
a não ser pelas cascas de batata
salvadoras no seu descascar
os pulsos rodam, a lâmina desliza
o produto do motor é rapidamente concretizado
manuseável, precioso por um segundo
pronto para a varinha mágica que o
desfará
já está, agora limpar e
fechar a gaveta
fumar um cigarro que nunca acontece
porque ontem deu na televisão uma
emissão sobre o fetiche
a atribuição do desejo a um objecto
como se fosse um recurso estilístico
dos dias e das mãos
não é batata mas ocupa
e teatraliza o espelho
o mesmo do cabelo que cresce
cresce
e sai da moldura
ocupa a sala envolvendo os habitantes
que não estão
antes:
quantas áfricas, navios
plantações de geada
chícharos, café
exóticos congos e jindungos
o terço na mão e o costume de
papelote português debaixo
da saia e nas patas dos
frangos muito chiques
quantos cinemas arejados do
modernismo tropical
e suspensórios bem penteados,
uma madeixa loira por conhecer
quantos retornos, primeiros de maios
páginas forrando o chão de paris
e cabines telefónicas semanais
quantos quilómetros e termómetros
terra revolta, luz
para que eu chegasse a esta cadeira
que é feminina
que é casual
que é o anti-tempo
que é a mãe sentadamente completa
e o congeminar de um nomadismo
paradoxal erguendo-se na bacia
que a genética me legou, com
mais ou menos ginga, inusitada,
dançante porém raíz
pois sentada é talvez uma boa posição
para enlouquecer
zoom in, zoom out
laboriosos píxeis
ou a supressão das horas que
se virmos bem é tudo o que sabemos ter
ou não sabemos
fingimos, como eu que tendo
a espacializar o tempo e a culpa
situando-me entre um pretexto e um
muro de pedra cheio de musgo
por isso não me encosto
faço figas a que a sorte
me conceda meio de
fazer jus
à fabulosa fusão biológica e
consuetudinária que aqui se deu
parece ficção isto de viver
enceno pois o necessário para
ordenar: papéis de esquisso
contas por pagar
o pai a avisar
e memórias, essas empilham-se
no lava-louças e outras vezes
não, eclipsam-se
e planos, esses pairam até me
apanharem numa esquina
e me agarrarem com
ganas de atenção
atenção às horas
não te atrases
ou pelo menos abre os olhos,
bebe um copo
é a ordem possível, digo
saltando entre as colinas de
tralha em espera
ou sentada
escavando túneis de sentido
ligando os pontos
Ao pintar delicadamente
(a óleo sobre madeira)
um ramo de anémonas num copo de água,
Aurélia incluiu no quadro a pequena tesoura
que usara um pouco antes no jardim.
É um pormenor apenas,
uma breve tesoura de corte,
mas une o vidro, o vivo e a morte:
nas flores brancas e lilases faz fluir
o nosso frágil retrato
Livros, filmes, ideias.