João Moita, "Fome"

João Moita
Fome
poesia

Enfermaria 6, Lisboa,
junho de 2015, 74 pp.
Capa de João Alves Ferreira

8€

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João Moita. Nasceu em Alpiarça em 1984. Publicou O vento soprado como sangue (Cosmorama, 2009), Miasmas (Cosmorama, 2010) e Fome (Enfermaria 6, 2015). Traduziu uma antologia de Antonio Gamoneda, Oração Fria (Assírio & Alvim, 2013).

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Tudo será arrumado um dia

Quem sai aos seus, não degenera, grasnava a mãe, estampando chapadas nas bochechas das crias, sulfatando os seus imberbes javardos com saliva mesclada com vinho tinto carrascão. Quem entupiu a retrete? Os irmãos apontavam para o mais novo. Cagas grosso como o pai, tens a fuça igual à do pai, ainda viras bêbedo e impotente como o pai. O mais novo encolhia os ombros, assumia-se culpado e jurava retaliações. Culpado por sonhar ser camionista como o papá, por ambicionar frequentar casas de meninas na fronteira, pernoitar em descampados, beber cerveja do gargalo e arrotar para cima do transeunte que à frente da besta mecânica se atravessasse. Enfronhar murraças no rebento à conta dos sonhos. Proibido sonhar. A mãe assemelhava-se a uma vaca no andar e no mugir. Na impossibilidade de rachar um crânio contra a parede, o mais novo vingava-se das chapadas na viseira rosnando, num tom de voz que só os seus ouvidos escutavam, vaquinha de pasto, putedo, bêbeda, tetas descaídas. O pai camionista, disciplinado, insuficientemente disciplinado para controlar os soluços ou afugentar o bafo de cerveja, apresentava-se no lar nunca antes das onze da noite, batendo continência e queixando-se das incontáveis horas de alcatrão e árvores, afastando com sacudidelas o fedor das camisas abertas até ao umbigo e ameaçando sovar fedelho ou varina que tivesse o infortúnio de incomodá-lo enquanto massajava os testículos a assistir, deitado no sofá da sala, a vídeo pornográfico rotulado de amador. O mais novo espiava, disfarçado de cortinado, friccionava a ferramenta sem experimentar prazer mais forte do que o de imitar o pai. Entre as razões que colaboravam para que padecesse de complexos de inferioridade estava o esperma presente nas mãos de todos menos nas suas. Prepúcio para cima e para baixo, do noviço não jorrava, ou melhor, brotava um pingo que pudesse limpar à grenha, como fazia o papá. Treinava até à exaustão, faltava à escola para aprimorar a técnica de esguicho, sentava-se num tronco de uma árvore, segurando o cigarro com o polegar e o indicador, arqueando a sobrancelha e semicerrando os olhos. Insultava as velhas que trabalhavam a terra, berrava coirão, canhão, mijada. Nem uma gota, que macho, machinho. Quem entupiu a retrete?, a mesma pergunta repetida ao longo da semana, o mesmo culpado, o mais novo, que se vingaria da doce mamã, ébria profetiza, andas a comer areia, fedelho? Naquela casa não existia ordem, as tartarugas desapareciam e nem uma alma se lembrava de perguntar onde estavam as carapaças. As carapaças na sanita, nos tubos, mortas de tanta raiva, de tanta vontade de apertar o pescoço e não poder.