Adriana

E. Munch (1907)

E. Munch (1907)

Adriana, espampanante cinquentona de nacionalidade colombiana, senhora de um majestático rabiosque, estampava o ordenado em extensões de cabelo, vernizes, unhas de gel, preservativos, lubrificantes gelados e escaldantes, e o que lhe sobrava gastava no sustento do marido, crustáceo dado à preguiça, obcecado pela ideia de chegar à idade da reforma sem trabalhar um único dia. Jóia preciosa, Adriana meneava-se dentro de umas calças de ganga apertadíssimas, uns três centímetros mais curtas do que era suposto, e sorria com uns lábios que revelavam meio palmo de seio. A clientela do bar, uma mescla de ogres armados ao pingarelho, capazes de agrafar garrafas em testa alheia, e de finórios ou pretensiosos empastados de brilhantina, digladiavam-se por raspões de lábios ou apalpõezinhos nas maminhas que esta corpulenta funcionária e as suas parceiras, sedentas de gorjetas, gentilmente aceitavam. Pablo, poeta cantante e explorador de um aparelho de karaoke constituído por computador, colunas portáteis e bola de espelhos, enrubescia ao avistar a mulher dos seus sonhos, a colombiana, no colo do Manuel, do Chico e do Chouriço. Todas as sextas-feiras, noite de espectáculo, o ciumento Pablo diluía o mal de amor no fundo de um copo de álcool quase puro. Era isso ou arcar com aquela nojice de beijos e amassos em que Adriana participava. O choque do dono do karaoke ao constatar com os próprios olhos que a musa tatuara «Joaquim», nome do marido, meio palmo abaixo do umbigo, duraria três vidas, três, a vida de escravo, a de pedinte e a de gato. Um choque seguido de ataque cardíaco, seguido de paralisia facial, seguido de coma, seguido de fisioterapia. O transtorno de Pablo assustou Adriana, pela primeira vez apercebida dos poderes maléficos da sua tatuagem, da sua singela homenagem ao calão, o Quim peludo. Uma tatuagem assassina, uma tatuagem terrorista. Tantos haviam passado por aquela estrada vaginal e, aceitando que a tatuagem poderia conter propriedades nocivas para almas impressionáveis, a Adriana não chegavam notícias de problemas similares, pelo contrário, a malta apreciava um pitéu pintalgado, o seu pitéu. A decisão de camuflar a tatuagem, seguindo o método primitivo de deixar de raspar os pêlos púbicos com a gilete, desestabilizou a paz conjugal, pois Joaquim adorava contemplar a sua Mona Lisa privada, isto é, o seu nome esculpido no sexo da esposa, mas salvou a galáxia de imprevistos cataclismos. A mais ninguém espantaria o Joaquim sublinhado com bigode.

 

una forma de arder, 9

PUÑO CERRADO QUE NO SE COMPRENDE
 


Tengo un nombre que me pesa
la tradición del apellido del abuelo
y de la casa
siempre de la casa.
 
Vuelvo a esta niñez
como quien vuelve a un puño
cerrado
que no se comprende.
 
Vuelvo
a la madre que no tiene tiempo
pero que siempre trae
algo
 
al piano que nadie toca
porque sus manos están muertas
y con ella mi ternura.
 
Vuelvo a esta casa
sacrifico un paraíso.
 
Vuelvo yo
regreso siempre
la infancia no.
 
Nunca.

Oriette D’Angelo


Oriette D’Angelo (Caracas, 1990). Estudió Derecho en la Universidad Católica Andrés Bello (UCAB). Editora y fundadora de la plataforma literaria www.digopalabratxt.com. Con su libro Cardiopatías ganó el Premio de Autores Inéditos de Monte Ávila Editores, mención Poesía, 2014 (por publicarse). En 2015 obtuvo el segundo lugar en el I Concurso de Crónicas de la Fundación Seguros Caracas, Venezuela y en 2016 el tercer lugar en el Concurso Iberoamericano de Poesía "Letras de libertad" de Un Mundo Sin Mordaza. Sus poemas aparecen en diversas antologías publicadas en Venezuela, Argentina, México y Ecuador. Maneja el blog personal http://www.oriettedangelo.com.

Não tenho nada pra te enviar

Não tenho nada pra te enviar.

Já é tarde e ainda não preparei
nem a roupa nem o sapato.
Já perdi o prazo de inscrição.
Estava no modo silencioso.
Deixei a planta morrer e fui à praia
pegar areia. Não aguei os pés.
Estava de luto e queria
ir à missa, ouvir a homilia dominical.
Rezar na romaria, sentir o cheiro
das velhas e misturá-los aos das velas.


Agora não dá mais. Sou protestante.
Da vertente neopentecostal brasileira.
Ou quase isso.
Agora não dá mais. Já é tarde e escuto Nina Simone.
Irei a Nairóbi, não serei turista. Serei algo de útil.
Irei até a esquina e direi bom dia ao seu Geraldo.
Darei a ele uma marmita com duas carnes,
arroz, feijão e duas guarnições.
O sorriso do seu Geraldo é mais forte que Xanax.

Não tenho como te responder agora. Desculpa. Não tenho
o dinheiro do estorno. Confesso: gastei comprando quibes
e pretzeis. Mas se quiser te faço um bolo de cenoura.
Enfim.

 

2.

Nesse momento, uso a aliança
na mão esquerda. No dedo anelar.
Gosto da imagem.

Agorinha mesmo, precisei respirar
 e às vezes não sei como isso é feito.
A mão esquerda me ajuda nessas horas.
Ela é mais lírica por observação.
Meu tato, decerto, é uma lixa,
e com o uso se desgasta.

O ar não tem tanto peso,
mas o espaço que ele ocupa
é dolorido de se atravessar.

 

3.

De qualquer forma,
o meu sartório tem apresentado falhas.
Mas a garantia não cobre mal uso.
          - me enfiei numa esfera helicoidal.
          Era de noite e não percebi. O vinho
          tem parte nisso, mas são detalhes. –

Certos aspectos do amor são mais cândidos
quando não são alardeados. Outros são fome.

As Aventuras do Senhor Lourenço (§8 Complexo de Édipo)

(cont.)

Lourenço pensa ter superado bem o Complexo de Édipo. Quando chegou à idade das grandes revelações, isto é, aos 30 anos, leu o Das Ich und das Es de Sigmund Freud e não reconheceu nenhum traço patológico na sua infância, nem sequer um Über-Ich extraordinariamente dominador. Se alguma vez quis matar o pai, foi ao de leve, sem o aborrecer muito, que lá em casa o patriarca é intocável. Lourenço tem uma mãe que sempre esteve ao seu lado, que o amou, e ama, profundamente, que vê nele um prolongamento de si própria. Mas há duas irmãs, gémeas, as meninas dos olhos do pai. Mais novas 4 anos, casadas com dois suburbanos novos-ricos, cada uma já com 3 filhos. Portanto, Lourenço tem 6 sobrinhos, todos rapazes, para orgulho dos pais, que mal sabe distinguir. Às vezes acredita que uma conspiração biológica os fez nascer todos ao mesmo tempo.

Lourenço especializou-se em sofrer por antecipação. Sofrimento sem verdadeiro objecto, como nas neuroses freudianas. E ultimamente atribui isso às projecções catastróficas que o pai fazia para si: “Não vais ser nada na vida, meu meliante”, ou: “Nem para comer vais ganhar”. E Lourenço via-se a passar fome, indigente numa Lisboa cheia de indigentes. Ele o mais indigente de todos, demasiado gentil e fraco para essa vida. Por isso, pensou ter uma conversa com o pai, de filho crescido para pai velho. Já não arriscava nada fisicamente, o pai mal conseguia andar.

Entretanto, a cerimónia religiosa foi rigorosa (acrescente-se a ausência da libido, com 70 anos estamos quase só preocupados com os instintos de morte), quase austera. O padre não gostava muito destes eventos, uma perda de tempo, o importante era fazer proselitismo junto dos infiéis, evangelizar, converter e reverter (do consumismo para a sacristia). Os sobrinhos, em bando, levaram as novas alianças, que avô e avó puseram no dedo um do outro. E fizeram-no com sinceridade, não se conhece qualquer desvio a estes cordeiros de Deus. A igreja estava cheia, entre os convidados e os fiéis da missa. Todos gostaram, pelo menos foi o que disseram. No final, Lourenço sentiu-se aliviado (“primeira etapa concluída com sucesso”) e os pais cheios de inspiração divina para continuarem a praticar o bem entre eles.

A festa prosseguiu num restaurante na zona de Cascais. Lourenço apanhou boleia com um primo, emigrado em Angola, e a conversa foi de completa chacha. No almoço, comportaram-se civilizadamente. Só o António, cunhado mais novo, já bem bebido, ousou chamar àquele dia “uma perda de tempo”. Mas não passou daí. Entradas, primeiro prato, segundo, sobremesas, café. Uma factura honesta. E “vamos para casa que se faz tarde”.

– Janta connosco, filho. – Pediu a mãe a Lourenço.

– Talvez não, tenho uns testes para corrigir. – Respondeu sem convicção Lourenço.

[quem quiser viver a vida arranjando desculpas para isto e para aquilo vá para professor, as pessoas acreditam numa resma infinita de testes para corrigir, creio que o fazem não por especial credulidade, mas por secreta vingança: gostariam que, como castigo pelas maldades que um ou outro professor lhes fez, estivessem quase sempre a ler e a corrigir coisas que os infantilizam e frustram]

– Vá lá, meu filho, meu querido filho.

– Depois não tenho transporte.

– Dormes lá em casa, o teu quarto está sempre preparado.

– Mãe, mãe...

– Está combinado, vou já dizer ao pai!

Lourenço nunca experimentou a embriaguez da liberdade. Um terror biológico impede-o sempre de arriscar escolher contra semi-determinações, como esta da mãe. Talvez seja porque nele a retina tinha o poder verdadeiramente total, Lourenço é quase surdo e não faz qualquer confiança ao tacto. O pai costuma dizer-lhe “pareces surdo, ou mouco, como dizem nas aldeias, és surdo e tens pouco cérebro”. De tanto lho dizer, talvez tenha inibido esse sentido. Por submissão, Lourenço adaptou-se à crítica do pai, ficou quase surdo.

– Então, continuas nas aulas? – Perguntou o o pai no início do jantar.

– Sim.

– E com tanto mulherio ainda não arranjaste ninguém para casar, continuas parvo e solteiro.

– Só solteiro.

– Isso querias tu... – A mãe interrompeu a discussão questionando-os sobre o que achavam da comida. Fez muitas vezes isto, cortar a linha de fúria do pai sobre o filho. Proteger aquele rebento que demorou mais de 9 meses a nascer e que nunca mais chorou depois de o pai o avisar que o atirava pela janela, tinha ele 2 meses.

Silêncio durante o resto do jantar. Um tímido “boa noite, vou deitar-me, estou cansado”, do Lourenço pôs fim ao embaraço da reunião. Não se lembra de ter sonhado durante a noite, mas o seu inconsciente encenou várias vezes a morte do pai.