Tatiana Faia, uma escrita em devir

O São Luís dos Portugueses em Chamas e Outros Textos da Tatiana Faia é um livro de um só fôlego, sempre a lutar contra a opressiva perfeição da linguagem (há alguma coisa que ela não possa dizer?). Rasga com precisão, e alguma crueldade, os véus que ocultam o agon arcaico que preside, sem que muitos o saibam, a todos os jogos florais do entretenimento social. Antes da domesticação dos humanos só havia centauros, cada um com o seu hibridismo particular. Pegando nisto, Tatiana Faia bane os clichés, cada figura, cada frase, cada palavra, cada gesto, cada silêncio… determina por si só um mundo inteiro. A sua escrita, comprometida, abraça-nos, com compaixão ou erotismo, às vezes as duas, cada uma a seu tempo, e deixa que nos enterneçamos, mas subitamente desloca-se dos afectos para um criticismo que incendeia tudo. É, por isso, uma escrita em devir que nos obriga a sair da toca.

Projecta uma voz polifónica, mas não foge da órbita, embora imperfeita, onde se dá a conhecer como puzzle ou patchwork identitário. Dizemos facilmente, e simploriamente: “é a voz da Tatiana!”. Apesar dos cambiantes que uma só jornada aventureira imprime em cada estrato dos seus textos. Viaja-se através do tempo para experimentar uma androginia pouco comum (talvez se aproxime do Orlando de Virginia Woolf). Vai-se mesmo, se ansiarmos por explicações, para além, ou aquém, do humano, acompanhados pela sabedoria grega, que muito antes de Darwin já sabia que toda a vida se misturava. Tatiana Faia é uma autora/narradora em devir, devém gato, ou homem, mulher ou coisas inorgânicas... Esta capacidade e vontade de ser outra, outra coisa, permite-lhe escrever sem muitas condições, mesmo estilísticas, Tatiana ainda vive embriagada pela liberdade artística. Além disso, vindo e indo da poesia, a sua escrita não se presta facilmente nem ao comentário nem à discussão, ela agarra-nos num gesto rápido de lutadores de judo e atira-nos ao tapete. Mesmo se depois concede algum espaço para a análise crítica, a sua vitalidade é de pegar ou largar, sem mediações. Quanto a ela, a “vida que não é examinada não vale a pena ser vivida.” É isto que faz, examina a vida. Mesmo quando o delírio toma conta das suas personagens, trata-se de examinação. Olhar para cada pormenor a partir de todos os ângulos com mil olhos, como queria Nietzsche. E isto exige mestria e coragem, uma vertigem analítica que conduz para lá do bem e mal, isto é, um lugar onde até os santos podem ir para o inferno, ou os assassinos para o céu.

            Estes contos são simultaneamente actuais e inactuais, intempestivos, no sentido em que sopram sobre as brasas que ateiam labaredas no interior da normalidade quotidiana, e ao mesmo tempo procuram oxigénio noutros sítios. Por outro lado, Tatiana Faia usa bem a liberdade que o conto consente, quase tudo é permitido neste género, até a lentidão da hesitação interminável, mesmo se nos parece à primeira vista, e dentro de preconceitos muito resistentes, que aí se deve ser rápido e surpreendente.

Finalmente, Tatiana Faia deixa-nos uma magnífica colecção de máximas, ela conhece a arte de concentrar numa frase visões que demoraram séculos a serem formuladas e explicadas, recorrendo-se normalmente a livros inteiros. Por exemplo: “Errar serve para nos lembrar de que precisamos de merecer o amor dos outros.” Nesta frase condensa-se uma ética completa; ou “O mundo vai estar sempre cheio de gente disposta a dançar no escuro e vai sempre haver amendoeiras em flor ao longo de certos caminhos.”; ou “a única inteligência que importa é a amadora.”; ou “Algum amor pelo precipício é necessário para passar dos limites.” E tantas outras, ao virar de cada página, prontas a sacudir os leitores mais atentos. Faltando falar de vós, leitores, sugiro que entrem destemidos, por qualquer porta, está tudo acordado e pronto a receber-vos. 

As Aventuras do Senhor Lourenço (§19 música álcool e Dioniso, Bacanal parte II)

(cont.)

À meia noite, a discoteca começou a encher. Lourenço estava perto do balcão, virado para a pista com a Manuela ao seu lado. Os colegas cumprimentavam-no depois de entrarem, todos o fizeram com sinceridade. O Dj tinha uma playlist entre The Neighbourhood e Artic Monkeys, talvez recomendada por Lourenço, mas não estou seguro disso. Manuela irradiava felicidade, ondulando levemente o corpo com um copo de whisky na mão. Tinha um decote magnífico e a maquilhagem de €100 elevou-a à perfeição. Lourenço amava-a, mas não acreditava que ela ficasse com ele para sempre. Aliás, o sintagma “para sempre” cheirava tanto a vulgaridade que era melhor isso não acontecer. E Lourenço fez bastante para que Manuela o abandonasse.

À uma da manhã a pista abriu com Celebration. As colegas mais gaiteiras, quase todas meio embriagadas com baileys, saltaram para o meio e, suportadas pelos laços de cumplicidade feminina, dançaram com entusiasmo. Depois veio Everybody Wants To Rule The World dos Tears For Fears e a pista encheu. Foi a noite do Pop 80s, até Lourenço que não gostava de dançar, digamo-lo assim, entrou na confusão ao som de Funkytown, e nem o Uspide Down de Diana Ross o pôs novamente no lugar. O Dj animava a multidão nomeando o “herói Lourenço”, a quem “devemos a nossa liberdade” e que “mais algumas das nossas lágrimas não tenham ido salgar ainda mais o mar”. Um Dj culto? Competente, mas já meio surdo. Que importa?! Com Come On Eileen entrou-se em delírio, todo o Plateau, agora com muito mais clientes, pegou fogo.

Dioniso compunha e tocava música, só esta arte podia conviver com a sua desmesura, excesso vital, e mortífero, que nascia em cada um dos seus gestos. E Dioniso ressuscita constantemente, já não no aparato estético das Grandes Dionisíacas, mas em cada noite mais vibrante de todas as discotecas, de todos os festivais de música, de todos os bailes de aldeia... Dioniso preside aos histrionismo erótico que invade os corpos anti-cartesianos das noitadas de música, dança e alguns psicotrópicos.

Quando passou o incontornável Addicted To Love, Lourenço já ia no quinto whisky e Joaquim tinha-se juntado à festa (com ar carrancudo e sem um botão da camisa, umbigo à mostra), descobrindo, para seu espanto, uma nova simpatia por seios fartos. Mas em vez de se atirar à mamalhuda que dançava insidiosamente à sua frente, deixou que o empregado, cheio de gestos efeminados, se roçasse cada mais nele. A página tantas, perguntou-lhe, meio a sério meio a brincar:

– Queres chupar-me?

– Não, respondeu. Para logo a seguir, no que pareceu ser uma desculpa, acrescentar que o podia sujar.

“A vontade de perfeição leva à inacção”, pensou, um pouco a despropósito, Joaquim.

Foi a partir desta altura que tudo se precipitou, um feixe de loucura emergiu quando entraram The Rolling Stones e o seu Sympathy For The Devil. Os corpos emanciparam-se e assumiram uma esperança inverosímil em amanhãs radiosos, a discoteca tinha uma comunidade espasmódica com formas tensas e contorcidas, oscilando entre o esticado e o dobrado, pareciam seguir o tirso imaginário de Dioniso. Chegara a vez de se falar a língua dos relâmpagos, lançados, porém, ao acaso e sem a potência fulminante da mitologia. Como dizia Nietzsche, em quem esta língua era autêntica e importante, mas por razões mais nobres, “O corpo entusiasma-se, deixemos a alma fora de jogo.” No meio disto, Joaquim auto-dissecava-se à procura do pecado pagão que impulsionara irremediavelmente a sua decadência social, um apátrida sem génio. Lembrou-se de Álvaro de Campos: “Não posso estar em parte alguma. A minha / Pátria é onde não estou.” Mas num assomo de dignidade varreu tudo para debaixo do tapete e declarou-se fiel absoluto do pessimismo da força nietzschiano. Não por ser o mais duro, mas por ser o mais complexo, que a força em Nietzsche nunca teve que ver com domínio, tratou-se sempre de abrangência, da máxima abrangência possível.

Uma colega de português, adorável até ao ponto em que não era adorada (aí, em perplexidade furiosa, atirava-se à vítima como se fosse a única responsável pelo Pecado Original. Dizia, sem o dizer, “como te atreves a não me achar adorável, mas quem és tu para deslizares da unanimidade em relação à minha santidade?) meteu-se com ele.

– E se te apalpasse?

Lourenço, surpreendido, mas não muito, respondeu:

– Faça o favor, colega.

E a colega pôs-lhe a mão no sexo e apertou. Ao mesmo tempo tentou beijá-lo, mas Lourenço recusou, argumentando, mais mimeticamente do que foneticamente, que estavam pessoas a ver. E estavam, talvez mesmo a Manuela.

A colega prosseguiu na conquista.

– O mais histericamente histérico de mim, como vivia Álvaro de Campos em Pessoa, está aqui hoje para cometer uma loucura, Lourenço, vem, vem foder-me!

Lourenço ouviu vagamente o nome de Campos, histriónico e melancólico, e por isso aceitou, sem saber o que aceitava. Entraram na casa de banho feminina sem que ninguém se espantasse, parecia ser habitual naquele lugar a mistura de géneros. Tiveram que esperar que alguém saísse de uma cabine. Chegada a vez deles, Lourenço com a cabeça à roda, mais interessado num analgésico ou em vomitar do que em foder a colega. Alguns riram quando os viram entrar, justificando-se a velha tese de que com gracejos gratuitos se ordenou grande parte do mundo. Por outro lado, não havia nada de novo nesta escapadela, vazava-se num odre velho vinho novo.

Ninguém sabe o que se passou lá dentro, Lourenço jura que só vomitou e dormitou no colo da colega. Ela nega inclusive que alguma vez tivesse ido para a casa de banho com alguém, ela que nunca faltou ao respeito ou deixou de se dar ao respeito. Manuela estava, porém, furiosa. Gritava muito, mesmo junto ao ouvido de Lourenço:

– És um merdas, sabias, um merdas total.

Lourenço sabia que se saísse para a rua poderia olhar as estrelas sem medo de nada, mas tinha-se enrolado numa teia que talvez o prendesse para sempre no Plateau.   

(cont.)

Notas sobre a dilaceração do eu (entre Nietzsche e Pessoa)

Alguns sonhos, pelo conteúdo e pela forma, obrigam-nos a pensar uma e outra vez sobre a identidade, a frágil evidência de que somos uma individualidade plenamente constituída capaz de olhar para os outros e para o mundo a partir de um centro de inteligibilidade intrínseco: a nossa soberania racional. Só que o cogito cartesiano ou o Ich hegeliano e kantiano, subjectividade totalizante e reflexiva, primeiro garante das certezas que temos ao habitar na vida (justapondo-se-lhe Deus, em Descartes e Kant, e o historicismo em Hegel), este “eu” que usamos sem duvidarmos da sua consistência, é, afinal, um dispositivo narrativo (e mais do que isso) que funciona porque nos comprometemos, em geral inconscientemente, a não questionar a sua validade. Ontem, por exemplo, passei o dia todo sem dúvidas de que eu era eu, até que durante a noite um sonho me pôs numa situação tão rocambolesca que a minha noção de realidade foi torcida até ao absurdo. Dir-se-á que recuperei a crença básica na identidade mal acordei, mas não foi bem assim, se é verdade que não contaminei a vigília com o onírico, o que se passou no meu cérebro durante o sono introduziu uma dúvida irresolúvel sobre quem sou eu.

A questão elementar da identidade nasceu provavelmente nos primórdios da humanidade, é impossível raciocinar sem questionar quem raciocina. Mas talvez só muitos anos depois, a filosofia grega – com Heraclito, Parménides e, entre outros, Sócrates –, desenrolando um pouco mais o novelo dos mitos dramatizados (Édipo julgava-se outro, Agave perdeu tragicamente a noção de si...), tenha desenvolvido uma autêntica inquirição ao eu. Posteriormente, simplificando bastante, o Cristianismo com a sua história total, do início ao fim do mundo, sugou-nos muita da vontade de continuarmos a escavar um tema secundarizado pelas controvérsias teológicas, Deus abafou quase tudo. Talvez Shakespeare e Cervantes tenham escapado à monocultura teológica, talvez também Velasquez e Goya, mas foi preciso esperar pelo século xix para que o problema renascesse, aí Kierkegaard e Nietzsche inventaram, cada um à sua maneira, um “sujeito como pluralidade”. Kierkegaard com uma mascarada, escondendo para melhor revelar o que estava claramente para lá da identidade simplista, o que até podia permitir alcançar um sujeito ainda mais pleno, mas onde o velho eu perdia as honras de evidência e clareza (para justificar esta aparente contradição, citemo-lo: “o pensador sem paradoxo é como o amante sem paixão.”[1]). Nietzsche, que também se mascarou, de Zaratustra a Jesus, iniciou a mais séria e consequente viagem filosófica pela pluralidade subjectiva, em 1885: “A hipótese de um sujeito único não é talvez necessária […] As minhas hipóteses: o sujeito como pluralidade [das Subjekt als Vielheit]”. Por isso, o seu “Tornar-se aquilo que se é” exigia uma incessante formação de si mesmo, construindo e desconstruindo (Penélope à espera de si).

Na sequência disto, Walt Whitman formulou o seu “Do I contradict myself? / Very well then I contradict myself; / (I am large, I contain multitudes)”. Aproveitado por Joyce (em Ulisses cita Whitman; recorde-se também que aí refere Assim Falava Zaratustra e O Anticristo de Nietzsche) e, claro, Fernando Pessoa. Logo a iniciar a Tabacaria de Campos: “Não sou nada / Nunca serei nada. / Não posso querer ser nada. / À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. […]. Mais claro ainda: “Be plural like the universe”. Ou, da Ode Triunfal, “Giro, rodeio, engenho-me”. Por isso, Ode Marítima, “A vida flutuante, diversa, acaba por nos educar no humano.”

Como escreve Bartholomew Ryan no soberbo “Orpheu e os filhos de Nietzsche: caos e cosmopolitismo”[2], justapondo de maneira inteligente Zaratustra e Campos: “Pessoa e Nietzsche transformam a subjectividade numa pluralidade. Para Nietzsche, a condição final da transmutação dos valores é ‘uma enorme multiplicidade, que é, contudo, a contrapartida do caos’ (Ecce Homo, ‘Porque Sou Tão Perspicaz’, 9). Este é um dos requisitos para o seu pensamento.” (p. 78) O mesmo se passa com Pessoa, multiplicar-se sem se perder, um caos controlado, mas um caos. Identidade fragmentada numa pujante heteronomia, muitas vezes indomável. Tudo porque, como escreve Bernardo Soares no Livro do Desassossego: “Nós nunca nos realizamos. / Somos um abismo indo para um abismo – um poço fitando o Céu.”

O século xx apanhou a seta e atirou-a para muito mais longe (chegou ao além da pós-modernidade), da psicanálise à “morte do homem” de Foucault, do desaparecimento do sujeito de Blanchot ao homem colectivo do materialismo dialéctico, do cubismo picassiano às personagens grotescas e decompostas de Francis Bacon ou Egon Schiele, dos romances polifónicos aos filmes de Kubric ou David Linch, dos nicknames das redes sociais ao camalionismo de David Bowie, da crise geral de identidade que se vive na Europa ao frenesim, quase patológico, dos viajantes incansáveis (de resort em resort)... com a aceleração vertiginosa de quase tudo e os prolíficos simulacros de ubiquidade, com tudo isto e mais tanta coisa, sempre pletoricamente quantitativo, o eu, esse insignificante e tantas vezes improdutivo eu, parece ter os dias contados. Sobre isto, embora com imagens impróprias, foi o meu sonho premonitório.

 

 

[1] Migalhas Filosóficas, p. 84.

[2] Nietzsche e Pessoa, pp. 51-83. 

Tatiana Faia, São Luís dos Portugueses em Chamas e outros textos

Tatiana Faia
São Luís dos Portugueses em Chamas
e outros textos
contos

Enfermaria 6, Lisboa,
maio de 2016, 122 pp.
Capa de João Alves Ferreira

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FOTOGRAFIA DE MELIKE SABA AKIM, EPIDAVROS, 2014.

Portugal (1986). Vive e trabalha em Oxford (Mississippi). É doutorada em Literatura Grega Antiga com uma tese sobre aIlíada de Homero (Back Across the Barrier of the Teeth. Studies on Homeric Characters: The Iliad).

Com José Pedro Moreira e André Simões editou a revista Ítaca: Cadernos de Ideias, Textos & Imagens(2009-2011). Actualmente é editora, com José Pedro Moreira, Paulo Rodrigues Ferreira e Victor Gonçalves da Enfermaria 6.

Publicou anteriormente dois livros de poemas: Lugano (2011) e teatro de rua (2013).

Os seus contos, ensaios, poemas e traduções podem ser lidos, entre outros lugares, em A Sul de Nenhum Norte, Ítaca, Caderno: Enfermaria 6, Modo de Usar & Co., Colóquio/Letras e Relâmpago.