Milan Kundera, elogio fúnebre

A morte de Kundera permitirá que toda a cena seja ocupada pela sua obra, era isso que ele pretendia, beckettizar-se (lemos este belo neologismo num qualquer jornal de referência que agora não conseguimos citar), desaparecer por detrás da sua obra.

Em jeito de homenagem, Tatiana Faia e Victor Gonçalves escrevem sobre os seus encontros com o autor da Insustentável Leveza do Ser.

Tatiana Faia

Numa entrevista bastante recente à BBC, Salman Rushdie, falando do ataque de que foi vítima em 2022 em Nova Iorque, recordava, a propósito da morte de Milan Kundera, que ele era um escritor que acreditava que o riso era uma forma de desmontar os extremismos. Isto fez-me ir à procura da última entrevista que Kundera deu à televisão francesa (em Apostrophes, 1984). O tema era o erotismo em A Insustentável Leveza do Ser, sem dúvida o livro mais lido de Kundera, e nela Kundera diz que vivemos numa época onde a intimidade é facilmente exposta e que sem intimidade a personalidade evapora-se. Isto recordou-me uma anedota contada por Philip Roth, que se encontrara com Kundera na Checoslováquia, e que contou algures como aí tinha sido vigiado pela polícia e um amigo seu, Ivan Klima, tinha sido, depois de ele ter partido, interrogado sobre os motivos da sua presença, ao que ele respondeu perguntando ao polícia que o interrogava se ele tinha lido os romances de Roth, que o motivo pelo qual ele fizera aquela visita eram as mulheres. Talvez haja nesta história sobre um outro escritor qualquer coisa do riso de Kundera, o tal que desmonta o extremismo, faz entrar pela porta da violência a normalidade, os traços de natureza das pessoas pelas quais elas vão sendo gente (é com o mesmo amor ao detalhe menor que outro escritor, Saramago, tende a olhar para as suas personagens).

Não me lembro de me ter rido particularmente com A Insustentável Leveza do Ser, mas recordo uma observação que ficou comigo, que mudou uma coisa bastante simples para mim, mas talvez bastante fundamental. Há um momento no livro em que Kundera discute a noção de que a crueldade que exercemos contra os outros continuará a existir enquanto continuarmos a ser capazes de ser cruéis para com os animais. Deu-me uma certa obsessão esta ideia, que é aquela que me ocorre quando de vez em quando sou esmagada por uma verdade que não quero ou não posso combater. Ter lido Kundera, que não sei, nem me importa, se era vegetariano ou não, explica então em parte o meu vegetarianismo. Pode parecer pouco esta anedota, mas aqui fica um desses exemplos que por vezes são clichés de marketing, ou frases ditas por críticos em dias de cansaço, quando estão pouco inspirados, e outras apenas uma maneira de falar de uma verdade – simples e dura como um seixo: de vez em quando um livro encontra-nos e muda a nossa vida. Isto é, então, uma pequena elegia para Milan Kundera.

Victor Gonçalves

O que resta das nossas leituras, que partículas permanecem no nosso sistema de pensamento, que partes do nosso cérebro são influenciadas pelos resquícios do que fomos e da forma como fomos lendo? Os bioarquivos contaminados pelas influências heteróclitas da vida e… das novas leituras.  Todos usamos o «li, mas não me lembro», ou «li, mas quase não me lembro». Um esquecimento que empobrece, com certeza, mas sem ele, como nos ensinou Friedrich Nietzsche, estaríamos condenados ao peso de um passado que esmagaria o futuro.

Milan Kundera pensou o esquecimento noutro sentido: esquecer o passado retira profundidade ao presente e torna o futuro previsível (não há futuro que resista ao conhecimento prévio do que vai ser), isto é, um esquecimento que conduz diretamente à ignorância. No imediato, depois da notícia da sua morte, recordei-me de ter lido a Insustentável Leveza do Ser, a Arte do Romance, a A Ignorância e A Imortalidade. Mas estão fora da memória mais ativa, talvez só trabalhem subterrânea e fortuitamente em mim (que força de modelação tem isso?). No campo da semiconsciência, companheiros distantes mas importantes, tenho, então, as quatro obras referidas. Será também por serem bastante conhecidas e citadas? Muito do que julgamos pensar por conta própria não passa de discurso em segunda mão, mais ou menos bem recondicionado. As nossas ideias são o estrato mais recente de um palimpsesto infinito.

Seja como for, ele mostrou-me uma categoria fundamental do mundo contemporâneo: o Kitsch. Uma produção quase industrial de obras que não são nem lúcidas nem belas (o Kitsch vive de um simulacro de beleza fácil de assimilar pelas massas), uma exaltação do banal. Percebi também outras possibilidades do absurdo, do mau absurdo (o sem-sentido que simula ter sentido, próprio ao regime checoslovaco neoestalinista pós-68, mas também à sociedade de consumo do Ocidente rico), distinguindo-se do absurdo que reforça o anti-determinismo, e por isso mesmo a liberdade, de Sartre e, sobretudo, Camus. O de Kundera está mais próximo do de Kafka (que li intensamente) ou Musil (que admiro), por vezes, talvez de Beckett (que me dá sempre muito a pensar). De qualquer forma, o seu absurdo não abafa o riso, Kundera, dizem os que privaram com ele, tinha um bom humor fantástico, e o risível que provoca boas disposições no ânimo habita na sua obra, pressenti-o eu e asseguram-no alguns dos seus maiores leitores. Talvez o risível seja a via entre os dois abismos que descreveu a Philip Roth (admirador incondicional da sua obra): o do fanatismo e o do cepticismo absoluto. Retenho também a erotização, roçando o pornográfico, sem saídas pelo alto (metafísicas ou libertárias, ambas dionisíacas). Ou a identidade, como nos fazemos e desfazemos constantemente, egos esburacados.

Afirmava que não era um escritor, mas um romancista. Nesta arte, pelo seu poder de diagnóstico e criação, cabia toda a cultura europeia. Deste Cervantes, passando por Diderot e Rabelais e acabando em contemporâneos seus de língua checa. Pelo que tenho lido em vários jornais, Kundera é um dos maiores antropólogos culturais do velho continente, mas também um pensador da geopolítica europeia. A escritora Norma Manea disse há poucos dias ao jornal Le Monde «Perdemos uma testemunha fundamental e um grande pensador da Europa do século XX, das suas convulsões e conflitos.» Uma Europa que ele considerava frágil, em perigo, como o referiu a Roth em 1980.

Esta caracterização aliada a uma vaga, mas persistente, sensação de que o devia ter lido mais, que isso comporia alguns gestos imprecisos da minha forma de pensar (olhar para o mundo, para mim e interpretar, com rigor e com excesso, pensar um futuro para a Europa), conduzem-me para leituras por vir, será o meu próximo (2024) autor de cabeceira.

Annie Ernaux, uma entrevista

Na Enfermaria gostamos muito de Annie Ernaux, foi, pois, com grande felicidade que soubemos do Nobel da Literatura, prémio que não desdenhamos, como agora é de bom tom fazer-se nos círculos restritos da mais alta inteligência literária. Há sempre «uvas verdes».

Depois de uma brevíssima introdução, deixamos-vos com uma entrevista ao jornal Le Monde, da jornalista Sandrine Blanchard, com cerca de 6 anos, julgamos que é uma boa maneira de ficarmos um pouco juntos dela, de partículas da sua realidade. A tradução é de Victor Gonçalves

Elena Medel, poeta e romancista, refere, num artigo ao El País (8/10/2022), que Annie Ernaux «transcende as etiquetas de “autobiografia” ou “autoficção”», ela própria recorreu, antes, ao conceito de «auto-socio-biografia», ela que gosta tanto de Bourdieu. Gosta também, o seu feminismo não é secreto , de Simone de Beauvoir, e, por razões agora ligadas às questões de mobilidade social e vergonha de classe, de Dédier Éribon, do seu magnífico Retours à Reims. A própria autora disse, numa entrevista a Mará Sonia Cristoff, Clarín, que «classe de origem e feminismo são dois eixos cruciais na hora de escrever, atravessam tudo o que escrevo.»

Há muito onde ir buscar na sua obra uma frase síntese, que, como é habitual em situações semelhantes, relevará tanto quanto esconderá, gostamos e optamos por esta: «Et je crains toujours de laisser échapper quelque chose d’essentiel. L’écriture, en somme, jalousie du réel.» [Temo sempre deixar escapar alguma coisa de essencial. A escrita, em suma, ciúme do real.] (Annie Ernaux, L’occupation)

 Je ne serais pas arrivée là si… [não teria chegado aqui se…],
… Se a minha mãe! E é sem hesitação possível! Foi fundamental. Pela sua personalidade, a sua força, a sua visão do mundo e em particular do mundo social. Tudo isso me suportou, e também me levou à revolta. Ela queria traçar o meu próprio destino. É largamente responsável por ele.

Esta mãe sempre a empurrou para a frente. Ela queria dar-lhe aquilo que não tinha tido?
Acima de tudo, ela queria dar-me uma vida interessante, uma vida independente — este termo era muito importante. Era menos o sucesso material do que o sucesso intelectual que importava para ela. Quando percebe que a escola está a resultar, fará tudo para me facilitar esse percurso e nomeadamente — o que era bastante excecional para as raparigas da época — impedir-me literalmente de me entregar a uma ocupação feminina. Ela tinha uma espécie de condescendência, quase desprezo, pelas mulheres que ficavam em casa porque os maridos podiam sustentá-las. Fui criada nessa imagem negativa do lar. Quando o meu pai morreu, disse-me, pouco depois, uma frase que achei terrível: «Vou limpar-te a casa». Era para me libertar desses afazeres. Isto significava «ainda estou aqui». É enorme.

Quando pensa na sua mãe, qual é a primeira imagem que aparece?
Materialmente, é a imagem do fogo. É uma mulher que, como dizia, nunca se deixou pisar. O meu feminismo vem dela. A minha mãe não tinha medo de nada. Estava sempre revoltada. Com espantosos excessos de violência. Não vivíamos na doçura na família Duchesne! Recebi muitas chapadas. Neste campo, eu sou a lenda da família!

Porquê?
Porque era fresca! Opus-me rapidamente à autoridade. Só pensava em desobedecer. Estava bastante inclinada para as questões sexuais. A minha mãe achava que eu continha todas as possibilidades do mal, e eu também estava convencida disso.

A sua excelência escolar foi para agradar à sua mãe ou porque gostava da escola?
A escola fazia-me feliz. Como filha única, encontrei finalmente colegas de turma. Era uma faladora inveterada. E adorava ler. Mas separava as minhas leituras, os livros comprados pela minha mãe e os das aulas de francês.

Quais são as suas primeiras memórias marcantes de leitura?
E Tudo o Vento Levou
[Gone with the wind] de Margaret Mitchell, que li quando tinha nove anos. A minha mãe tinha-o comprado para ela. Acho que foi a maneira como ela falava dele com os clientes na mercearia que me fez querer lê-lo. Porque eu adorava estar debaixo do balcão a ouvi-los discutir. Este livro representava um mundo para mim. Acreditava na realidade dessa história. Eu até procurei o nome Scarlett O’Hara no dicionário! Queria saber mais do que o livro! Jane Eyre, de Charlotte Brontë, também me marcou muito. Este livro na primeira pessoa é como um fio condutor da existência. Trata-se, também aqui, de viver uma vida de independência, sem dominação. Estes modelos estruturaram-me.

Quais são os seus sonhos de jovem?
Em criança, não tinha nenhum desejo específico, o futuro estava em aberto. Com os meus amigos, os meus primos, havia o imaginário do amor. Nas cartas que escrevi aos dezasseis anos sentia repugnância pelo casamento. Na época, não podíamos imaginar outra maneira de estar com um homem. Tenho a sensação, desde muito cedo, de que o casamento nada mais é do que quase o fim da vida. Talvez tenha sido a influência da leitura de Une vie de Maupassant que me abalou. Li-o aos treze anos às escondidas e fiquei completamente alterada.

Desenhava-se um desejo profissional?
Eu sabia que ia fazer alguma coisa. A minha mãe sempre me recordou de que na escola primária uma freira lhe disse: «Annie é uma futura professora.» Não falhou! Nos trânsfugas sociais, os milagrosos passam por aí; por uma profissão na qual não há necessidade de ter uma herança económica.

Desde quando tem essa consciência de classe?
Nunca foi totalmente formulada. Mesmo no meu diário íntimo. Vem da sensação e da certeza: pertenço a um meio modesto. Tenho essa consciência de classe na escolha dos amigos, na diferença que sinto perante outrem. Sei tudo o que me separa de alguns deles e ao mesmo tempo tenho essa vontade de os conhecer. É um mundo que me parece maravilhoso, porque há a música clássica, aquela que eu ignoro. A música é realmente, na época da adolescência, o signo de exclusão. É dela que eu mais me quero apropriar.

De que sente mais falta?
Muitas coisas! Mas nunca é ciúme social. É a sensação de uma falta, de uma imperfeição. A ideia de injustiça vem muito depois.

Chega quando?
Eu não sentia isso em mim, mas nas situações. Quando fiz a minha comunhão no internato católico de Yvetot, perguntei se a minha prima — que estava na escola pública — podia vir. Chega o dia, estamos em maio, ela levou o vestido mais bonito que tinha e um casaco de pele de coelho. A diretora chega ao pé de mim: «Onde está a sua prima, não a vejo?» Respondo-lhe: «Está ali.» Então, o rosto da diretora... era desprezo. Nunca me esqueci. Histórias assim, tenho toneladas delas. É a força dos trânsfugas quando admitem que o são: eles sabem muito mais sobre o mundo social, pela posição que ocupam, do que aqueles que estão naturalmente no mundo dominante.

Em que momento teve a sensação de ter mudado de classe social?
Principalmente ao morar longe dos meus pais e ao casar com um rapaz que era de classe média burguesa de direita.

O que mudou então na vida diária?
Temas de conversa; o facto de sentir a condescendência do meu companheiro pelos meus pais e meio social; as famosas maneiras à mesa e, o que imediatamente me impressionou muito, essa segurança no mundo, da qual eu estava completamente privada. Tem-se a impressão de que o mundo é feito para essa classe dominante e que lhe pertence de direito e de facto. Também está ligada ao corpo: essa estranheza de ter um corpo plebeu, um lado «campónio».

Qual foi a primeira pessoa a quem falou sobre o seu desejo de escrever?
A uma nova amiga, que encontrei quando me matriculo na faculdade de letras. Em junho, quando fui aceite na propedêutica, lembro-me de escrever inventando um nome para mim: «Anne Saint-Claire vai publicar o seu primeiro romance.» É muito estranho. Posteriormente, sofri recusas justificadas. As coisas não aconteceram de forma linear. A consequência dessas recusas é a fuga em busca de um relacionamento com um homem. Depois, uma série de coisas um tanto dramáticas, como o meu aborto. Finalmente, vejo-me casada e depois mãe. Não consigo escrever, mas nunca paro de pensar nisso. O meu marido, Philippe Ernaux, leu o meu primeiro texto, com comentários pouco agradáveis. Depois disso, nunca mais pedi a ninguém para me ler. Muito rapidamente, questiono-me sobre a escrita: não há história para contar. Não é a história que conta, mas o que estava em jogo na história. No que vivenciamos, há algo que faz avançar o conhecimento. Há mais no escrever do que no recordar.

Tinha «o desejo de visitar o planeta». Fê-lo?
Este desejo foi rapidamente canalizado pelas necessidades da vida. Finalmente, viajei principalmente por causa dos meus livros. Mas fiz uma viagem extremamente importante com o meu marido em 1972. Tinha 31 anos. Foi organizado pelo Le Nouvel Observateur (antepassado de L'Obs) para conhecer Salvador Allende no Chile. Essa viagem durou duas semanas. Graças ao contacto com as poblaciones fiz uma viagem de regresso extraordinária à minha infância.

Porquê?
Porque percebo o quanto vivi num mundo próximo do que às vezes via nas poblaciones: o bairro operário, a família da minha mãe no qual o álcool era devastador, etc. Tenho a sensação de ter coisas para dizer. E depois, a acompanhar o grupo, havia um jornalista literário do Nouvel Obs, Jean-François Josselin. Conversávamos muito com ele. Não sei como nem porquê, revelei-lhe o meu segredo: já havia escrito um texto. Além do meu marido, ninguém sabia. Jean-François Josselin queria que lho enviasse. Prometi fazê-lo. Mas não mantive a promessa. Esse primeiro texto de 1962 era muito extravagante. Eu não contava a realidade, não tinha nada de social, era uma forma que procurava. Finalmente, comecei a escrever um mês depois dessa viagem ao fim do mundo.

A política sempre lhe interessou...
Pertenço a essa geração que se alimentou das histórias das guerras do século xx. Na família, mas também na aula, na qual o meu professor de história nos leu Os Sinos de Nagasaki [Takashi Nagai, 1949]. E depois, desde a infância que ouvi falar de política, à maneira das conversas de café. No café do meu pai. E a minha mãe sempre votou. Acompanhei-a pela primeira vez a uma urna em 1945. Ela ia assistir até à contagem. Continuo à espera de uma mudança profunda. Constato há várias décadas um movimento irreprimível da sociedade em direção a uma espécie de isolamento. Não há uma real aceitação dos outros. Dei aulas em Pontoise entre 1975 e 1977. Lembro-me de uma turma difícil do 9.º ano, agitada. Debatemos. Ainda tenho em mente os discursos já populistas dos estudantes que me diziam: «A minha irmã não teve um uma habitação social enquanto os árabes tiveram.» Arrastamos a questão do racismo há muito.

Quando teve o sentimento pleno e completo de ser escritora?
Tenho antes a consciência de um privilégio, uma oportunidade de poder fazer algo que é — talvez como a minha mãe teria dito — o que há de mais belo. Não procurei fazer carreira, mas preservar a possibilidade de escrever. Aliás, é muito difícil. Perante cada livro a ser escrito, não sou nada, de cada vez é uma luta. Realizei esse sonho de escrever e ser publicada. Mas não é o nirvana, a felicidade, não é nada do que eu imaginava.

Quer dizer?
Nunca imaginei que seria um compromisso tão grande; a forma quase mística que a escrita tomaria. É preciso sacrificar muitas coisas: vida sentimental, um pouco a família também. Eu não sou uma avó muito disponível! Quando agarramos a dobra, acabou. A existência é informe e vazia sem a escrita. Não se trata de dizer «nem um dia sem uma linha», mas de procurar, de ter um projeto e de que tudo esteja centrado em torno dele. Viver com um livro que terá de ser escrito. Mémoire de fille, teria sentido uma grande culpa se não o tivesse feito. La Place, também.

«É assim que vivem os homens»: Sempre se colocou esta pergunta...
Sim. Imergi desde muito cedo numa comunidade de pessoas. Conviver de manhã à noite com os fregueses de uma mercearia-café, com pouca ou nenhuma intimidade familiar, tinha a sensação de ser atravessada, desde muito cedo, por todo o tipo de conversas e linguagens. Depois, mudar de classe social, ou seja, mudar de mundo, dispõe para a observação, a fazer perguntas. As clivagens sociais continuam muito fortes. A sociedade francesa permanece uma espécie de aristocracia com os seus fastos, o seu cerimonial, as suas categorizações...

Que lugar teve a religião na sua vida?
Um grande lugar. No internato havia todos os dias história sagrada e orações. Para a minha mãe, o importante era haver religião: acreditar em Deus e comportar-se de acordo com uma regra moral. Ela acreditava na eficácia da oração. Mas quando a minha irmã morreu de difteria, a oração não fez muita coisa. Fiquei realmente marcada pelos sacrifícios a fazer e pela culpa sexual da minha primeira confissão aos sete anos: acusei-me de ter tido gestos indecentes e recebi uma saraivada de vergastadas do confessor. Portanto, entendi que era praticamente maldita.

O que sobrou?
Resta o que poderia chamar-se hipotexto. É também como um primeiro mundo [a religião]. Mesmo estando convencida de que o nada [néant] nos espera, ajo como se houvesse algo que deve ser salvo e do qual sou a guardiã. Não é a minha alma, é o que faço. É muito diferente. Pode dizer-se que a literatura ou a escrita substituíram, de certa forma, Deus. Ou que escrever é a missão que me foi dada.

Como experimentou os ataques? [ao aeroporto Zaventem, por islamistas, 32 vítimas]
Esta manhã, no rádio, fiquei impressionada com o que um rapaz muito composto e calmo disse na France Inter: sim, há violência, mas não tanto quanto nas grandes guerras anteriores ou na Síria. Não foi dito por passividade, mas como uma espécie de sentimento do que é o curso da história. O mais difícil é tentar entender e saber que não seremos capazes de o perceber no momento presente; será mais tarde. O que também chama a atenção — e é terrível dizê-lo — é a facilidade com que integramos o que acontece. No dia seguinte aos atentados de Bruxelas, no RER [comboio suburbano] entre Paris e Cergy, um homem e uma mulher usavam apenas boatos sobre o que havia acontecido em Bruxelas. «Parece-me que algo aconteceu», dizia a mulher. Foi só isso. Esta vida que continua impressionou-me. Só falavam de trabalho, férias, filhos... Era um dia como outro.

Livros de 2019 (parte 1)

Ler furiosamente ou lentamente, mas ler. Ler por deleite ou para chupar informação, mas ler. Ler no quarto ou no comboio, mas ler. Ler com prazer ou com fastio, mas ler. Ler poesia ou prosa, mas ler. Ler todas as palavras ou ler na diagonal, mas ler. Ler contra ou a favor, mas ler.

É assim para os editores da enfermaria, um compromisso vital, quase biológico, com a leitura, porque sem ela a vida seria uma erro.

Numa subjectividade que não negamos ou ocultamos, cada um de nós faz a lista das melhores leituras de 2019.

Victor Gonçalves


La Faiblesse du Vrai (Seuil, 2018): um livro dentro do espírito do tempo que nos ajuda a pensar as implicações da pós-verdade. Myriam Revault d’Allonnes questiona as relações conflituosas entre a política e a verdade, monstrando que o problema principal da política não é o da sua conformidade à verdade, mas a forma como se constitui a opinião pública e se constroem os juízos de valor.

Uma Aproximação à Estranheza (INCM, 2017): Frederico Pereira acompanha o rasto e as marcas da estranheza, o seu processo de constituição em modo negativo e os traumas, pequenos e grandes, que se inscrevem em quem a sente. Como diz: “O uso da linguagem envolve o que Wittgenstein designa como a vivência do significado das palavras. Assim, percebemos que a sensação de estranheza decorre de uma interrupção ou quebra nessa vivência e não de algo intrinsecamente estranho na linguagem.”

O Pregado (1977/2011): Günter Grass é quase sempre magistral, apanha com uma facilidade divina qualquer lado do humano. Depois, imaginando e compondo novos mundos (poderosa escrita ficcional), sopra com vida mirabolante as personagens que coloca nos seus escritos. E isto também lhe permite trabalhar a língua em todo o seu esplendor. em O Pregado, como se diz na contra-capa, “Grass tece um interessante [eu usaria um adjectivo mais intenso] e hilariante estudo antropológico da cultura germânica desde o período neolítico até à década de 70”.

Tens de Mudar de Vida (2009/2018): Peter Sloterdijk é o melhor pensador da actualidade (digo-o sem forçar nada). Se quisermos saber o que se passa com o homem, sozinho ou acompanhado, sonhador ou trabalhador, consumidor ou ascético, vivo ou morto, temos de passar por ele. Este livro é sobre antropologia filosófica (daí a importância de se ter algumas bases filosóficas para o compreender bem), nomeadamente as antropotécnicas, isto é, “os procedimentos de exercitação mentais e psíquicos com que os homens das mais diversas culturas tentaram otimizar o seu estatuo imunitário cósmico e social face aos vagos riscos da vida e às agudas certezas da morte.” (Sloterdijk).

Sobre o Poder (2005/2017): Byung-Chul Han compete com Peter Sloterdijk para o lugar de pensador mais influente desta década. Mais sóbrio (no estilo e no manejo dos conceitos), desenvolve uma filosofia da frugalidade, anti-consumista e anti-capitalista, sem que seja, contudo, neo-marxista. É assim que a sua noção de poder, construída a partir dos pós-estruturalistas franceses, nomeadamente de Michel Foucault, deve centrar-se no que pode fazer para tornar os indivíduos mais livres e plenos e não nas técnicas, criticadas ou aceites, de domínio sobre o outro. Por isso diz: “É uma crença errónea supor que o poder opera unicamente inibindo ou destruindo. […] Um poder superior é um poder que configura o futuro do outro e não um poder que o bloqueia.”


Tatiana Faia

Patrizia Cavalli – My Poems Won’t Change the World (Gini Alhadeff, ed.), Penguin Books, 2018
Uma anedota famosa sobre Patrizia Cavalli, umas das mais importantes poetas italianas da actualidade, reza que durante algum tempo ela ganhou a vida como pintora e jogadora de póquer, e não necessariamente por esta ordem. Uma ironia mordaz e um sentido de humor tingido de uma ternura amarga lembram-nos que alguns poemas de repente nos podem tornar demasiado vivos à luz de algumas palavras, à força da representação de umas quantas situações. Há em Patrizia Cavalli a encenação de intimidades decadentes que brincam com as nossas fragilidades, com as nossas falhas morais e emocionais, e há qualquer outra coisa que é como uma inteligência cuidadosa que por gentileza se eleva acima disso e nos recorda que não somos tão óbvios como tudo isso. A poesia de Patrizia Cavalli é sobre a profundidade do humano.

Daisy Hay -Young Romantics: The Shelleys, Byron and Other Tangled Lives, Bloomsbury, 2011
Anna M. Klobucka – O Mundo Gay de António Botto, Assírio e Alvim, 2018
O livro de Daisy Hay tenta contrariar o mito dos poetas românticos como génios solitários, concentrando-se nos laços de amizade que uniram os jovens poetas românticos ingleses. O de Anna M. Klobucka revisita a vida e a obra de uma espécie de poeta tabu do primeiro modernismo português, António Botto, tentando reavaliar a sua relevância. De um modo ou outro, estes dois ensaios centrados sobre a figura de alguns poetas e sobre os laços que eles cultivaram tentam contribuir para que se escreva uma história mais exacta dos movimentos literários a que se referem. Pelo caminho, desarrumam o cânone, pelo menos um bocadinho, e isso não é pouco.

James Merrill – A different person, Knopf, 1993
Rico herdeiro de uma poderosa família milionária americana viaja até à Europa (pela maior parte mediterrânica) em busca dele próprio. Esta seria (e é de facto) a melhor descrição sensacionalista desta autobiografia de James Merrill, um dos maiores poetas norte-americanos do século XX. É difícil de explicar o quão impossível é de não se gostar deste livro. É sobre uma longa viagem conduzida às cegas, sem grandes planos ou objectivos além deste a que alude o título, de se tornar uma pessoa diferente, que termina talvez não com a descoberta mas com a aceitação de si próprio, com uma espécie de epifania sobre a alegria de estar vivo, que chega por prolongada exposição, em modo de tentativa, erro e ansiedade mais ou menos constantes, aos outros. 

Alberto de Lacerda – Labareda, Tinta da China, 2018
Alberto de Lacerda é um poeta que, como notava Pedro Mexia, não está particularmente identificado com nenhum cânone nacional. Nem especialmente identificado com a literatura de Portugal, nem com a de Moçambique, nem com a literatura de outros países onde viveu, a inglesa ou a norte-americana, talvez a pátria de Alberto de Lacerda sejam alguns outros poetas ao lado dos quais ele pertence. Poesia da paisagem e de quem nela vive, do encontro e do espanto, Labareda é uma antologia (relativamente) breve que colige alguns inéditos. Alberto de Lacerda escrevia poemas que são como artes de viver. E continua a ser um dos poetas mais raros do nosso cânone pessoal.

George Seferis – Six Night on the Acropolis, 2007
É o livro que estou a ler agora. Comecei a lê-lo em Julho, não longe da Acrópole, e perdi-o no caminho de volta a Inglaterra e tentei lê-lo numa biblioteca de línguas modernas, mas algures em Setembro o exemplar que lá estava desapareceu. Encomendei-o e levou seis semanas a chegar dos Estados Unidos, onde uma associação de gregos americanos, por qualquer questão de devoção que me ultrapassa, o mantinha em stock, e foi mesmo um dos poucos sítios em que consegui encontrar este romance do prémio Nobel grego à venda. Seferis é de longe mais conhecido como poeta, e tal como Kavafis, poeta de uma obra relativamente circunscrita. Num dos primeiros poemas que estão coligidos nos poemas completos, um homem pesa no colo o infindável peso de uma cabeça de mármore, a pesada herança de um país cujo presente não irá jamais traduzir as noções de glória que se atribuem ao passado. A vida de Seferis foi particularmente exemplar do nosso tempo. Refugiado da Ásia Menor, Seferis foi no seu próprio país, aquando da sua mudança para Atenas vindo de Esmirna, um estrangeiro. Este romance, Seis Noites na Acrópole, é sobre alguém jovem que, precariamente instalado em Atenas, se tenta encontrar a si próprio, entre um grupo de amigos literatos e diletantes, uma exploração do que poderá querer dizer isso, estar em casa ou estar em casa em qualquer parte do mundo. Um romance para hoje.


Vítor Teves

Diderot e a arte de pensar livremente (Círculo de Leitores, 2019) - Numa altura em que as figuras do século XVIII andam esquecidas (assim como muitos dos seus princípios), esta biografia ajuda a ressuscitá-las. Nela encontramos Diderot, um homem de pulso, a gerir toda uma enciclopédia e resistindo a todas as pressões do seu tempo. É um livro de leitura fácil, cheio de peripécias e humor, quer do tempo de Diderot, quer da sua vida pessoal. Interessante são as relações atribuladas com Jacques Rousseau, homem demasiado sensível, e com Catarina, a grande; assim, como o capítulo dedicado às suas mais importantes obras literárias: O sobrinho de Rameau e os diversos Salons. A ler.

Chalk – The art of erased Cy Twombly (Melville House Books, 2018) – Esquecendo polémicas à volta deste livro, esta pode ser a primeira e mais abrangente biografia até agora realizada sobre o artista norte americano Cy Twombly, falecido em 2011. Embora muito conhecido no meio artístico e literário, continua a ser um verdadeiro mistério. A biografia vem a esclarecer alguns pontos da vida obscura de Cy Twombly, com especial enfoque na sua vida amorosa, nomeadamente o seu relacionamento com Robert Rauschenberg e Nicola del Roscio. É uma boa entrada para quem quer conhecer um dos mais importantes pintores da segunda metade do século XX. .

Paradoxes de Robert Ryman (L’échoppe, 2018) – Este pequeno ensaio do crítico de arte francês Jean Fremón é um importante contributo ao estudo da obra de Robert Ryman, pintor falecido este ano. Fremón coloca Ryman na linha da iconoclastia – Plotino, Bizâncio, Malevitch – mas também em paralelo com a pintura norte americana dos anos 40/50 – Rothko e Newman (sobretudo). Interessante é encontrar um paralelo entre Beckett e Ryman, dois artistas que exploram o Paradoxo, um na escrita, o outro na pintura.  Numa época em que se fala de “pintura sem tinta”, Robert Ryman adquire uma importância extraordinária, como um dos seus principais precursores.

Hot, Cold, Heavy, Light – 100 Art Writings (Abrams Press, 2019) – O poeta e crítico de arte Peter Schjeldahl (1942 -) reuniu este ano, num único volume, os seus mais importantes textos críticos dos seus últimos 40 anos, exatamente 100 textos. Conhecido, sobretudo, pelos seus textos no The New Yorker, Schjeldahl reuniu textos publicados em diversas revistas, desde a Art Forum à Vogue. O livro está dividido em 4 capítulos, cada um correspondente aos binários Quente – Frio e Pesado - Leve. São textos de fácil compreensão, imaginativos e que prendem o leitor. É um excelente exemplo de boa crítica de arte, na linha dos poetas-críticos de arte Frank O’Hara e John Ahsbery.

Antologia dos Poemas (Relógio d’água, 2019) – Desde 2011 que não existia uma antologia de poesia de João Miguel Fernandes Jorge. Digo 2011 porque refiro-me à última Antologia realizada, a Antologia Açoriana. A deste ano tem a particularidade de trazer escolhas das últimas décadas, incluindo das obras híbridas (O próximo Outono e O Bosque). Preciosas são as notas e textos de Joaquim Manuel Magalhães, assim como alguns textos do próprio poeta. Esta pode bem ser a derradeira antologia e introdução à obra de João Miguel Fernandes Jorge, uma antologia que se destina, sobretudo, creio eu, a uma nova geração de leitores.

Anima Mea (Documenta, 2019) – A editora Documenta tem feito um trabalho extraordinário de divulgação dos artistas e pensadores portugueses. Neste ano de 2019 saíram inúmeros catálogos de enorme qualidade, alguns exemplos: o de António Bolota; o de João Jacinto; o de Manuel Rosa, o do Rui Sanches, etc. Entre todos os publicados escolho este de Alexandre Conefey, com textos de João Pinharanda e Maria Filomena Molder. Ambos os autores dispensam apresentações e a minha atenção recai sobre o texto de Filomena Molder, um texto pequenino, é certo, mas delicado. Depois de uma apresentação geral, Filomena passa para uma interpretação desenho a desenho; é aí que ficamos rendidos pela sua sensibilidade. Lido o texto, não conseguimos desprendermo-nos das suas imagens e palavras, este é o poder da boa crítica de arte.  





João Bosco da Silva, Um Tropeço nos Dias Quentes

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João Bosco da Silva

Um Tropeço nos Dias Quentes

poesia

Enfermaria 6, Lisboa
Julho de 2019, 108 pp

Capa de Gustavo Domingues E StudioPilha

10€


As geadas tornaram-se numa memória quente, enquanto o copo aquece,
Longe, perdido, onde só o cabelo e as unhas crescem, sem caixa e pena
E flores secas, velas, por favor, missas, até o nome se tornar um tropeço nos dias quentes.


João Bosco da Silva

João Bosco da Silva nasceu em Bragança (1985). Passou a maior parte da sua infância e adolescência em Torre de Dona Chama. Estudou no Porto. Vive na Finlândia. 

Livros de poesia: Os Poemas de Ninguém (Atelier, 2009), Disse-me António Montes (Mosaico de Palavras, 2010), Bater Palmas E Sete Palmos De Terra Nos Olhos (Mosaico de Palavras, 2011), Saber Esperar Pelo Vazio (Mosaico de Palavras, 2012), Destilações (não edições, 2014), Trepanação de Jerónimo Bosch (Mariposa Azual, 2015), Teoria da Perdição Unificada (Enfermaria 6, 2017).

Algumas participações em antologias e revistas:  Revista Inútil n.2, Meditações Sobre O Fim, HARIEMUJ,  Voo Rasante, Mariposa Azual, Caderno 3, Enfermaria 6, Flanzine 8 - Lol&Pop, Flan de Tal, Bukakke, Copus Dei, Persona, do lado esquerdo.

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Enfermaria 6: Leitura de poesia

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Dia 1 de Fevereiro, pelas 18 horas, na livraria Flâneur Bruno M. Silva, Francisca Camelo, J. Carlos Teixeira, José Manuel Teixeira da Silva, José Pedro Moreira, Pedro Braga Falcão, Rafael Mantovani, Tatiana Faia e Vítor Teves revezam-se na declamação de gesta heróica servo-croata na língua original. É possível que leiam também alguns versinhos seus.