O funeral de Sarpédon

O sono carrega o corpo de Sarpédon. Vaso vermelho da ática (lekythos) ca. 440 a.C. Colecção do British Museum. 

O sono carrega o corpo de Sarpédon. Vaso vermelho da ática (lekythos) ca. 440 a.C. Colecção do British Museum. 

Konstantinos Kavafis (1898)
Tradução de Manuel Resende

Fundo é o sofrimento de Zeus. Pátroclo
matou Sarpédon; e agora precipitam-se
Menécida e os aqueus para o seu corpo
arrebatarem e o desonrarem.

Mas Zeus de modo algum isso consente.
O seu querido filho — a quem abandonou
e se perdeu; assim impunha a lei
— ao menos honrará, agora que está morto.
Envia, pois, Febo, lá baixo ao plaino
com ordem de cuidar do seu cadáver.

O herói morto, com respeito e dor,
levanta Febo e para o rio o leva.
Lava-o da poeira, lava-o do sangue,
fecha as feridas espantosas, não deixando
visível traço algum e, derramando nele
perfumes de ambrosia, com resplandentes
olímpicas roupagens o amortalha.
Deixa-lhe branca a pele; e com um pente
de madrepérola penteia os seus negros cabelos.
Os seus belos membros compõe e pousa.

Parece agora um jovem rei auriga —
com seus vinte e cinco, vinte e seis anos —
repousando depois de ter logrado,
num carro de ouro e com velozes corcéis,
ganhar o prémio de glorioso certame.

Assim, quando cumpriu Febo
sua missão, chamou os dois irmãos,
Sono e Morte, ordenando-lhes
que levassem o corpo a Lícia, terra opulenta.

E para lá, Lícia, terra opulenta,
ambos os irmãos se puseram a caminho,
Sono e Morte, e, quando chegaram
à porta da mansão real,
o corpo entregaram coberto de glória
e regressaram logo a seus cuidados e trabalhos.

Quando na casa receberam o cadáver,
começaram
— com cortejos, honras e trenos,
libações profusas de sagradas crateras,
e todo o ritual — o triste enterro;
e, depois, experientes artesãos da cidade
e afamados talhadores de pedra
chegaram e erigiram o túmulo e a estela.

Cinco poemas de Leila Andrade

A sombra de uma sombra

E veio alguém que apenas sabia serpentear  
Era tudo  
Algo das intimidades ignoradas pelo velho mundo
Escondido no deus único que era o seu
Inflexível coração
E seus verbos de agora beiravam ao desentendimento. 

***

Areia 

Ter de volta mísera confusão de medos:   
através desta casa, do que ainda antigo e
pendente.  Mãos vazias
de mapas, de acertos, de doses. 
Escandalosa marca  
não sei como cheguei  
nesse ponto movediço.  

Do que é novo
mas de voz tardia. 

*** 

Plano b

Tarde longa
de horas mansas  
lá fora algumas sombras esquecidas  
da manhã, 
do peso do teu corpo. 

Respiro-te como reprise  
e isso ainda não me deixa morrer  
todo dia
os meus pedaços
espalham-se pela sala. 

*** 

Reprise 

Não tenho explicações
sei dizer o óbvio
das coisas que vão passando  
nem sempre lentas
ruins, boas. Circulares.  
Daquele tipo de dor esquisita  
você não saberá precisar o local nas entranhas. 

***

Avenidas 

Todos os dias espantar os mosquitos
escondidos em avenidas da casa
prestar atenção no tempo
mais uma vez. 

Dobrar asas devagar
sem escolhas
escoltas
e atravessar o dia
como se fosse normal.


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