Querido trágico

Querido trágico,

   por alguma razão a ópera morreu. Não que estivesses fechado dentro dela, os monstros agora já não estão vazios, decorrem. Há algum tempo dir-te-ia que nunca poderias proibir Turandot de gritar, mas agora não estou securo, sabes, perdi as tuas coisas. Tinha-as demasiado perto e gritavas, casa com a mãe, casa com a mãe, pobre rapaz, tinha pena de ti, as tuas histórias vinham sempre uma oitava acima e tinham ritmo por trás. Escrevo-te por uma razão. Tenho sempre uma razão, nem que seja porque aranha e razão partilham diversas letras. Vivo neste mundo pós-mundo, sabes, a religião agora não tem crucifixos nem ateus, fica parada, estamos todos tão presos, sabes, derramam as letras e elas formam-se em forma de crucifixo. E pensas: lá do oriente, lá do oriente, mas os antropólogos deram cabo disto tudo, sabes, sei que sabes muitas coisas, querido trágico, ficas aí tão no teu milénio, mas eu tenho modernices, sabes, posso “telefonar-te”, e depois tens de me pedir desculpa e dizer: “continua lá a falar do teu trágico”, e eu digo “qual trágico?”, e tu respondes: “não somos todos uma tragédia, meu querido?”, e eu penso, querias que casasse com a mãe, não era, seu porco, mas não, não, nunca matei nenhum pai, quer dizer, matei já trinta ou quarenta, mas nunca um, e tu perguntas, “confessas?” e eu: “confesso o quê?” e tu continuas-me a tratar-me por “trágico” e eu fico confuso, afinal que carta era esta, ouvida ao som de Turandot, eu fico a pensar, querido trágico, nervos e pele, pele e ossos, ossos e pó, pó e nada, nem sombra, sombras-me, e penso, “tragédia, meu querido?”, tragédia nunca vem do oriente, é sempre mais modesta, não tem escalas pentatónicas, nem hexatónicas, queria que criassem escalas sem notas, isto é, vicissitudes de som, desafinadas, queria que criassem, espero que leias estas notas em voz alta, soa sempre melhor, as pessoas lêem demasiado baixo, queria que os comboios se enchessem de pessoas a ler alto, Shakespeare de um lado, A Bola de outro, o Segredo dos Trinta e Sete de um lado, a Jóia de Peterson de outro e mais cinco mil livros que nunca existiram e no fundo o revisor seria verdadeiramente um revisor diria: “ponto e vírgula, senhor”, e outro responderia: “não aceito”, e tu, querido trágico, farias a tua fulgurante intervenção: “o senhor é pai deste senhor?”, e eu, eu seria forçado a dizer, enquanto lia, ou melhor leria do meu livro: “é sobre mim que fala, senhor?”, e o outro senhor ficaria na esquina, isto é, se os comboios tivessem esquinas, faria um leve diminuendo, e diria “Deus, que fazes?”, e outro responderia, “não sabes? sofro, sofro” e tu dirias: “mas vocês sofriam muito no século XIX” e tu dirias “no século xis i xis?” e tu pensarias: “que coisa esta, Turandot, Turandot, Turandoooooot?”. É claro, tens cinco tons. Não te cales por enquanto, estamos dentro da cena. “Deixa-me passar”. Deixa-me passar, não dividas atenções.

 

Com os melhores cumprimentos, e aguardando resposta,

 

Pedro Braga Falcão

A filosofia deve explicar a totalidade

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Jürgen Habermas deu uma entrevista ao El Pais, disponível aqui. Falou da sua linhagem marxista (apesar de agora se inspirar em Emmanuel Macron), ele que é o último sobrevivente da Escola de Frankfurt, das rápidas mudanças provocadas pelos novos meios de comunicação de massa, da atomização da opinião pública, com as múltiplas parcelas que a constituem a lerem e verem apenas o que encaixa na sua visão do mundo, anulando-se a velha figura do intelectual público, capaz de formar opiniões através do esclarecimento (ainda há intelectuais, diz, mas já não existem leitores para eles), referiu-se também às migrações massivas, consequência do colonialismo e do capitalismo, e até se mostrou favorável a um patriotismo constitucional, na medida em que uma Constituição é lavrada pela história de um país. É neste sentido que se vê como um patriota alemão.

Por tudo isto, a entrevista tem o maior interesse para esses leitores que ainda mantêm viva a necessidade de apanhar ideias diferentes das suas, vindas de alguém que aponta cuidadosamente antes de disparar (a metáfora é dele). Mas o que me motiva mais a escrever esta nota é o que diz acerca da filosofia. Como sabemos (força de expressão), a filosofia está em declínio, à força de querer ser mais uma ciência, com protocolos de rigor que decidam da validade ou invalidade do que se diz, deixou de pensar nos problemas tradicionais que durante séculos fizeram dela o espaço privilegiado do pensamento crítico. E para Habermas eles são aqueles que Immanuel Kant formulou no final da Crítica da Razão Pura: o que posso saber? o que posso fazer? o que me é dado esperar? o que é o ser humano? Ora, estes problemas são globais, não é possível responder-lhes com uma filosofia redutoramente especializada em encontrar, através de uma lógica modal, na melhor das hipóteses, o que torna um discurso válido, logicamente válido (mimetiza-se Ludwig Wittgenstein sem o aparato complexo da sua genialidade). Para Habermas, a filosofia “devia tratar de explicar a totalidade, contribuir para a explicação racional da nossa maneira de nos entendermos a nós mesmos e ao mundo.”

Frase primeira; "Que caia o amanhecer"; Cada osso

Frase primeira

E como falar
de outra forma?
de cortar
e reformatar o futuro,
e assim querer
e ser sem par.
Por que ser assim
pura forma?
tanta cor
entre ares dúbios,
ferrugens,
e sorrateiros costumes
de manter
sombras assimétricas,
como a de pensar
antes de ser,
como a de escrever
e andar
por entre cadeiras
que margeiam limites
intangíveis,
formas sem abdômen,
sem retina.
Ainda quero uma frase
primeira,
nua,
ligeiramente inteira.


Que caia o amanhecer,
o raiar do entardecer,
que os dias acumulem-se,
não na incerteza,
mas na pureza do sacrilégio.


Cada osso

 Quando nossos corpos fundirem-se,
cada osso se desintegrará,
o gozo irá surgir aos poucos,
até que nossas almas se toquem,
meus olhos não chorarão de prazer,
meu corpo não soluçará dor,
mas reagirá forte,
a qualquer tentativa de cura.


Açougue; O Parto

Açougue

ao açougueiro,
esse cirurgião
ao contrário,
o corpo
é um mapa

a lâmina
já não exime
alguma dor

seu hábito
é de sangue

o amolador
recobrando
a isenção da faca

a balança medindo o preço
do osso,
bucho, pá, lombo, peito,
cabeça de porco

o açougueiro
vai ao freezer
como um padre
vai ao altar
rezar a missa
eximindo pecados
(entre o ouro do cálice
 e o fio do aço)
da carne


O Parto

 nenhum corpo suporta
outro corpo
por muito tempo

então...

mãos que herdam
o viço amniótico,
paciência e tato
para pernas explosivas,
os separam

a parteira rege
de seu inventário
uma gama de métodos
respiratórios
que precedem
uma boa concepção

acomodando um pano úmido
na testa da mãe,
ela divide e isola
lágrimas extremas:
caligrafia de sal

em seu avental
há um quadro
tingido de sangue
que é mais,
muito mais,
que a certidão de nascimento


Édipo

Quem inventou Édipo? Édipo-rei, Édipo-opera.

Édipo nasceu triste. Triste e maldito. Oráculo: Édipo mataria o pai, Laio,  e marcaria a mãe, Jocasta, com seu sêmen.

Édipo foi exposto.

A exposição era um costume da Antiguidade. A criança rejeitada era depositada numa escada ou num caminho. Édipo foi posto no monte Citeron. Ai de ti, Laio! Que rompeste com a lei.

Conta-se que Laio, certa vez,  foi hospedado por outro rei, em outro reino e infringiu as leis da hospitalidade. Raptou o filho de seu anfitrião. Há quem diga que o violentou. Seu próprio filho, então, Édipo, nasce maldito [Esta maldição é mais antiga. O pai de Laio, Lábdaco, avô de Édipo, havia se recusado a cultuar Dioniso. Que grave, desafiar um Deus! Começa aí o ciclo das maldições da família dos Labdácidas].

Deus do céu! Terão os deuses deuses?].

Édipo é salvo. Exposto na montanha pastores o veem. 

Édipo é dado ao rei de Corinto. Édipo é duas vezes príncipe.

Não há como fugir do destino! O, popoi!! Oh, deuses!!

Édipo vai ao oráculo. Delfos. Vai, Édipo! Vai embora. Revela-se-lhe a sua trágica origem. Seu futuro, seu fado.

E Édipo obediente.

E se Joyce tivesse escrito Édipo e não Ulisses? Talvez nada mudasse. Nada muda neste mundo. A parte é igual ao todo.

Édipo encontra um velho rico no caminho. Rico e atrevido. Não o mate, Édipo! O, popoi! É um ardil.

E Édipo mata-o. Laio Assassinado. Cumpre-se parte do destino. Meio do caminho. "No meio do caminho de nossa vida encontrava-me numa floresta escura" (Dante)... O bom caminho estava perdido?

Só há um caminho.

Laio morto, Creonte-rei. Tebas.

Há uma esfinge no fim do horizonte. Metade mulher, a outra leão. Monstruosa. Devoradora de viajantes. Decifra-me ou te devoro, disse a Esfinge a Édipo.

Creonte entrega a viúva de Laio e o trono a aquele que destrinchar esse nó.

Qual é o animal, diz a esfinge. Qual animal anda cedo de quatro; de tarde de dois e de noite de três? De três patas?

Édipo, Édipo, rogue aos deuses para que sejas devorado!

É o homem, diz Édipo. Cedo, criança, de tarde adulto e de noite um velho de bengala, seu terceiro pé.

oh, Homem, oh. Como te entregas!

Édipo, em seu triunfo/derrota ganha Jocasta.

...................................................

Édipo em seu escritório. Seu terno é muito bem cortado. Creonte é seu cunhado. É seu conselheiro.

Creonte: nada está bem. Crise.

Édipo: o que fazer?

Creonte: "tocar um tango argentino" (Manuel Bandeira).

Édipo: vamos descobrir.

Creonte: sim, para teu mal. O, popoi, popoi, popoi!

Punir o culpado.

Entra Tirésias, velho conselheiro. O culpado está conosco, diz.

O antigo oráculo, responde Édipo.

Entra um mensageiro: Édipo não é filho legítimo. Morreu o pai, de quem não és filho. Fugiste, mas não escapaste. Destino.

Temos que punir o assassino de Laio, diz Creonte.

Entra um dos homens de Laio. Presente na cena. Do crime.

Entra (também) o pastor que levara Édipo-bebê. Ao monte Citeron.

A Édipo não lhe sobra saída. Está claro o seu destino. Nada se pode contra o destino.

Édipo, Oidipus, és apenas uma peça nesse jogo! Bebê dos pés amarrados, amarrada é a tua sina.

A criança dos pés inchados matara seu pai e agora possuía sua mãe no leito que fora daquele a quem tirara a vida. A vida, para que serve a vida? Se ela já está vivida.

Morte e vida. Termos simples deste jogo cruel.

Entra Jocasta. Já sabe de tudo. Está ao par. Suicida-se diante do filho-amante.

Visão atroz. Atriz.

Édipo apanha uma das canetas. Édipo fura os próprios olhos. Gritos lancinantes. É um líquido avermelhado que escorre pelo rosto.

Édipo, Édipo, já viste! Não há como arrancar os olhos da alma.

Édipo sai.

Édipo deixa a empresa. Édipo vai para Colona.

Édipo, morte e vida não te pertencem.

Cada nascimento é um vaticínio. Cada funeral, seu vir a ser. O, popoi, popoi, popoi! Pobres de nós!