ESTA PUTA NÃO MORRE e outros poemas

     ESTA PUTA NÃO MORRE

Depois de vinte e cinco anos a me

promover nesta esbelta revista de ouro

aqui estou eu de barriga à mostra

neste largo porto pronto para negar que

me tenha aproveitado em momento

algum dos seus serviços. Ela perdeu o

cabelo não traz já as tetas tesas que

me prometeram as musas no meu

encontro no NorteShopping entre a

compra das bolachas marias e a velha

cerveja preta. Esta não é a puta que eu

desejava por isso venho aqui registar

o meu desagrado por tão velhas tetas.

 E sentado o velho aedo na cadeira de

palha azul um jovem de vinte e seis

entristecia os lábios e sorria à velha

puta. Deu-lhe mesa cama lavada e

todo o cuidado que tão bem merecia.

Encheu-a de beijos vestiu-a era vê-la

dia para dia cada vez mais velha mais

feia perdendo a pele do rico nariz os

lábios cada vez mais secos a voz cada

vez mais pobre. E a velha nunca mais

morria. Essa puta nunca mais morre!

diziam os que passavam na triste rua.

E o aedo perdendo forças protegia-a

dia após dia chuva atrás de chuva e

ela a velha puta cada vez mais feia

cada vez mais velha. E quando faltou

forças ao já velho aedo a puta abriu

as pernas e lá estava a mais bela flor.

Morto o aedo a puta cobriu-lhe de

flores e fez do seu túmulo fonte de

pedra para corvos lagartos e larvas.

Sobre o musgo o velho nome da feia

puta que nunca morria: Poesia. Sim

esta puta tão feia nunca mais morre!

O NOVO VELHO DO RESTELO

No passado é que era. Toda aquela

glória todo aquele poder aquele sabor

de frenéticas imagens que nos roíam

as mãos dentro dos pés. Dos louros

corpos flamejantes de metáforas dentro

de metáforas que nos desequilibravam

o fio da espinha dorsal e nos atiravam

para o chão feito charcos em pleno

verão. No passado é que era no tempo

em que eu ia à praia com o meu caderno

de fita azul e o livrinho poético brilhava

entre os dedos. Sempre entre os dedos.

No passado é que era. E hoje o mundo

está perdido totalmente perdido pois as

metáforas mirabolantes as ejaculações

precoces já não nos ferem os olhos a

dentição mais fina da pele as melodias

encantadoras e extasiantes de ser jovem.

No passado é que era. Porque a poesia

já não canta não encanta o encantamento

da vida (da jovem vida) que eu tinha em

tempos. Amanhã à mesma hora aqui no

banco e quero-te ereto como manequim

sobre belos poemas de amor e morte.

No passado é que era. No tempo em que

o tempo era sangue e a pressa aqui não

estava toda apressada dizendo o quão

lento sou o quão lento vejo e o quão

velho estou. E é aqui fechado neste frio

poço onde o tempo parou por momentos

que me sinto finalmente no trono de rico

opressor. No passado é que era porque

a poesia estava viva e hoje está morta. O

pão não tem sabor e esses meus dentes

podres já não seguram o vivo sabor das

maças. E é aos olhos que o sal faz mais

falta perderam o sabor de controlar a

melancolia e sonham a juventude perdida

e nada tem mais sabor tudo sem odor.

No passado é que era meus amigos. 

SOTAQUES DO NORTE

Do Norte para o Norte

dos lhes em i

para os vês pelos bês

E eu ia à ia

verão a verão

e visitava Balongo

de longe a longe

“Os frios do norte

corroem a língua

trazem ao poema

ferros enferrujados”

disse Dona Olga

E eu defendendo as

vivas falas fico (por

momentos) sem saber

se termino a frase que

lhe envio com caraios

ou com caragos

Melhor será enviar-lhe

em caixa aquilo que

mais tem falta: Coiões

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Giorgione - “A velha”, c. 1508.

"NOTAS sobre BACH" - versão 0.0 - (2015)

“tecer uma construção sem testemunhas, sem luz, e sem ar.”

- Maria Gabriela Llansol (“LisboaLeipzig”)

Violin Concerto in E Major, BWV 1042

dedicado a Pedro Eiras

Notas:

Comprei o meu primeiro Cd de Bach nos anos 90. Não me lembro exatamente em que ano foi, mas sei que deve ter sido entre os meus 15 e 18 anos. Usei-o, como a outros cd’s da altura, para desenhar freneticamente. Desenhar ou pintar é um ato de audição, de impulsividade, de transe; toda a razão é desligada. E, no entanto, sei perfeitamente o que estou a fazer; não há vida sem paradoxo. Ou talvez não seja paradoxo, mas apenas saber manter o equilíbrio entre expressividade e pensamento, saber manter a fina linha que separa e une os dois. Tudo, em mim, começa na linha, dizer isso é dizer imenso.

Entretanto, de 2005 a 2015, dez anos, praticamente não ouvi Bach, que ficou adormecido. Em parte porque os Cd’s de Bach ficaram nos Açores, em casa dos meus pais, e também porque estava mergulhado nos compositores contemporâneos - Boulez, Ligeti, Penderecki, Gubaidulina. Falo, aqui, apenas no uso da música como material para a criação, e esta é, sobretudo, e quase sempre, a clássica.

É em 2015, com o livro de Pedro Eiras - “Bach” (livro saído em 2014) que Bach regressa outra vez à minha vida, para não mais desaparecer. É Bach (ou Rameau) que tantas vezes me faz companhia quando os gatos cá de casa estão a dormir - os três. E deixo-me levar pela música, riscando ou apontando ideias e mais ideias, papéis que terão direito ao caixote do lixo pela manhã. Poucos sobrevivem. A presente série, pequena e insignificante série, como é a nossa vida, foi desenhada, nesse ano de 2015, entre a a leitura do Bach de Pedro Eiras e a audição da música de Bach. Um ano depois, já em 2016, fui assistir a um seminário do Pedro Eiras, na Flup, e pedi-lhe um autógrafo, que muito prezo, no meu exemplar de Bach. Data desse ano o incio de uma rica amizade.

Trazia já, em 2016, “LisboaLeipzig” de Maria Gabriela Llansol lido e, claro, o “Bach” do Pedro Eiras. Agora, por estes dias, junto, cá em casa, os dois - Llansol e Eiras - em “AS MÃOS DE MARFIM” - novas notas sobre Bach, notas que terão fim, creio, ainda este ano de 2020.

* As notas são sobre várias obras de Bach

Três poemas de Ismar Tirelli Neto

O que foi ao chão

  tendo visto o “Jaime”, de António Reis e Margarida Cordeiro

Dizem-me
que nos limites desta propriedade
corre um regato em sépia
que pelas margens
moitas de flautas
dão abrigo à microfauna
de nossos loucos dormidos
circulares

Que são aquelas águas
de visões

Que nas moitas os loucos
voltam
a ter espinhos

 

*

Feito Adão pela manhã

Alguém vinha aos magotes
O homem nomeou-o
Obra de cestaria         

Um dobre de sinos
Anaeróbio capaz de cinema
Alguém vinha quitando 

Alguém ele próprio uma
Imediação, drama de desfiguramento
A molengar do ponto A

ao ponto B vinha alguém saldado,
saldando. Nomeou-o
o homem – A mesma moeda

Vinha alguém do clarão
ao digesto do clarão
desfalecer sobre a mesa de centro

Vinha alguém com um sumário
da sala de estar – e as palavras
ESTA HORA DA NOITE

Deste que vinha não
se dirá mais que –
ESTA HORA DA NOITE

 

*

Sobre foto de George Platt Lynes

I.

Quantos já não se terão mudado deste homem?
Deus desdenhou da basílica, desmedida –
E para os que tornam exaustos da fábrica – uma caixa de charutos.
Emparedaram-no reto, passa frio, passa função.
Trata-se de aberturas sutílimas, concreto para o olho nu.
Não as divisaria a mais agigantada pupila.
Parece fechado. O torso. Absolutamente.

II.

Entra-se por uma boca escarpada de língua.
O hall rói-se, no pátio pacienta um carcinoma,
Convém não olhar nos olhos.
Convém descer.
Pode-se apenas descer.
Aqui as volutas onde se produz voz.
Ali, o vão onde vamos todos arejar.
Mais abaixo, sempre mais abaixo, as vesículas
Onde aguardamos
notícias da soltura.

*

 

 

 

 

DA ERUDIÇÃO e outros poemas

“o máximo de violência num mínimo de retórica”

António Osório

         DA ERUDIÇÃO

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                                   (Coloque aqui a sua epígrafe!)


Segundo uma crítica literária

uma senhora com dois seios

e muita base cor de cenoura

na cara a jovem poesia sofre

de um grave problema: um

excesso de citações explícitas

num corpo sem grande trata

mento literário. Ou seja um

lenço Louis Vuitton numa

cara sem base cor de cenoura.

O ponto da discussão deve

centrar-se no que entende

a senhora crítica por erudição

ou o que é para si a poesia.

Ora poesia para a senhora L&V

tem de ser a língua mastigada e

enrolada vezes sem conta! -  o

mesmo é dizer altos exercícios

de regurgitação cópia e repetição

de antigos e velhos modelos que

ninguém consegue já entender.


E levanta a questão o poeta:

Como usar a erudição sem cair

nos jogos telúricos e ocos?

Simples! Alternando espinhas de

peixe e duas ou três pinceladas

de viva e intensa cor.

Falta sim à senhora crítica

a capacidade de ver que os

novos poetas (esses banais

jovens poetas!) estão mais

interessados em explorar

novos trios do que repetir a

velhas e cansativas retóricas.


Isto é um poema? Pergunta

a senhora com lenço L &V

e com três camadas de base.

Sim é um poema. Porquê?

Porque assim o digo e quero.


   UMA PINCELADA DE TORONI


Numa tela de sete metros e quarenta e cinco

centímetros existem seis pinceladas de forma

quadrangular sobre uma superfície de tela nua.

Dedicar-me-ia a todas se tivesse o devido

tempo e força necessária para debruçar-me

sobre elas assim vou concentrar-me apenas

na terceira a primeira da segunda fila que não

existe. A sua forma não é a de um quadrado

 perfeito e no entanto podemos falar de um

quadrado onde são visíveis as impressões do

pincel uma espécie de arranhar de unhas.

Entre esta primeira pincelada da segunda fila

importa a distância exata com a segunda da

segunda fila que não existe. Há entre as

duas um preciso espaço de dois metros e

quarenta e sete centímetros. É precisamente

esta pincelada que aqui aponto neste poema

que apenas aponta a existência de uma mera

pincelada numa superfície nua. Cada verso pode

ser entendido como o tempo dispensado a

observar a pincelada escolhida no espaço vazio

da tela no espaço vazio da sala no espaço vazio

do museu. Importa verificar que este quadrado

não é perfeito como a respetiva pincelada.  

Importa também dizer que este é o poema da

pincelada escolhida e que dentro dele está

tudo aquilo que não vou dizer porque assim

exige a pincelada que escolhi na fila que não

existe. Na  p    i     n     c     e     l     a     d    a

esta pincelada corresponde à letra n – n de

nada a acrescentar a não ser apontar que

a pincelada existe e está aqui neste poema.


E por mais que seja irritante ela está e não

está aqui neste poema que fala de uma

pincelada marcada apontada numa tela

vazia de sete metros e quarenta e cinco

centímetros. É este simples apontar que

cria a pincelada o quadro o poema esta

nossa pequena vida. Importa para finalizar

apontar que esta tela não existe no museu.

E no entanto mesmo sem querer ela existe

    em toda e qualquer obra de Toroni.



ALL-OVER  1948


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   NOMIT

Quando o mundo

te vira

as costas

ut

viras as costas

ao mundo

OSCILAÇÃO

Quando tudo oscila

entre Verdade e Negação

este poema

fixa

.

Fixa a ideia

do espelho imóvel

no ponto que se abre

ao velho e longo tempo

Outrora impossível este é o

ponto da fissura

fixa

.

E

no fixo leve

segundo ponto a

porta intermitente cinge

para dentro do seu peso

dando ao paralelo tempo

nova chave nova

esperança


A NOVA REVISTA DE POESIA

(I don't need your sympathy – Cher)

A chuva da crise económica foi tão

intensa que aqui estão todas elas fortes

crescendo como ervas daninhas na vasta

planície da futura e “inesquecível” literatura.

Na segunda-feira

Dona Olga

(que nunca vi mais gorda)

veio pelo facebook pedir-me

cinco poemas inéditos para analisar e talvez

(se assim o achasse)                           publicar na sua revista

          de papel reciclado e                           com duas andorinhas de

       muito mau gosto na                        capa. Parei. Pensei cinco

minutos e como sou muito boa pessoa (apesar

desta língua de chicote) enviei os cinco poemas.

Mas

 (e aqui é que está a melhor parte)

os cinco

piores que tinha meios inacabados apontados

(gosto imenso da palavra apontado há nela genuíno pulso).

E assim safei-me de ser na dita revista publicado.

A tão estimada

revista que traz

todos os grandiosos nomes da Nova Poesia – os

que vão da receção da Quinta à recolha dos bonés

no pátio principal do velho castelo do beija-mão.

Que se multipliquem

 como ratos

 mas

que as velhas braguilhas e florzinhas de salão não

me venham chatear a minha já de si cansada tola.

Por isso minhas

queridas

florzinhas de plástico de decadente salão aristocrata

eis a vossa custódia de ouro para o culto glorioso do vosso Ler.

Lisboa-Museu_Nacional_de_Arte_Antiga-Custódia_da_Bemposta-20140917.jpg

 Custódia de Bemposta, MNAA, Lisboa.