"a sós com toda a gente", Charles Bukowski

 
buk and bible.jpg
 

Tradução: João Coles



a carne reveste os ossos
e põem-nos uma mente
lá dentro e
por vezes uma alma,
e as mulheres quebram
vasos contra as paredes
e os homens bebem
em demasia
e ninguém encontra a pessoa
certa
mas continuam
à procura
a rastejar para dentro e para fora
das camas.
a carne reveste
os ossos e a
carne procura
mais do que
carne.

não há nenhuma
saída:
todos estamos encurralados
por um só
destino.

nunca ninguém encontra
a pessoa certa.

as lixeiras enchem
os ferros-velhos enchem
os manicómios enchem
os hospitais enchem
os cemitérios enchem

nada mais
enche.


in Love is a Dog from Hell, Ecco, 2003


alone with everybody

the flesh covers the bone
and they put a mind
in there and
sometimes a soul,
and the women break
vases against the walls
and the men drink too
much
and nobody finds the
one
but keep
looking
crawling in and out
of beds.
flesh covers
the bone and the
flesh searches
for more than
flesh.

there's no chance
at all:
we are all trapped
by a singular
fate.

nobody ever finds
the one.

the city dumps fill
the junkyards fill
the madhouses fill
the hospitals fill
the graveyards fill

nothing else
fills.

in Love is a Dog from Hell, Ecco, 2003

Acetileno de Adrian Grima

unnamed.jpg

Tradução a partir da versão inglesa de Rui Cóias

 

 

Acetileno

 

Guindastes sobre o cais aguardam a sua carga.
Três gaivotas sobrevoam os motores
em círculos infindáveis
procurando os despojos flutuantes.
Para fora das vísceras.

Sob a plataforma de petróleo de Monrovia
eles estão torcendo o ferro com acetileno,
uma centelha como um insistente rumor se espalha pelo vapor azedo.
Essa chama,
é mais viva que a lua acima dos intestinos de Marsa,
mais espontânea,
mais azul que as sirgas de cobalto dividindo a doca do mar
de onde tudo se arrasta diante do vento.
Há um cargueiro atracado no cais,
ladeando um rebocador chamado Sea Patron.
Além, a porta de entrada para o porto.
Depois disso, só o vácuo. 

Entre as lascas de ferro fundido,
os feixes empilhados, os tubos emaranhados;
por detrás das entranhas amontoadas como correntes
num teatro de abandonadas cirurgias,
homens aparecem envergando seus uniformes
manchados pelo porto.
Seus olhos abrigam turnos de oito horas,
o lânguido movimento de seus capacetes amarelados
fitado
por três gaivotas. 

Espero as entranhas remexerem,
as vísceras pulsarem,
o sangue escorregando para o cinza,
o amarelo ser tingido de azul,
o cobalto começando a correr nas veias.
Espero por uma mão rasgando as janelas abertas,
entre os fuliginosos arcos,
as cruéis gaivotas mergulharem,
o mar sacudindo-se,
os barcos lentamente descolando do porto,
o velho Mediterrâneo a estremecer.
Espero os cães de ronda começarem incessantemente a latir,
para partir as correntes, estocadas na garganta do silêncio.
Espero os guindastes chiarem contra as suas cargas,
descarregando e carregando o convés,
um cais
alargando-se diante deles.  

Espero a alaranjada visão ser incendiada,
o cordame de cobalto aturdindo as profundezas;
eu espero algum profeta no céu enegrecido,
um cometa no abismo,
o tamborilar da luz do sol no coração. 

Eu espero pelo azedado odor,
a centelha,
o acetileno …

Aċitilena

 

Il-krejnijiet fuq il-moll jistennew it-tagħbija.
Tliet gawwijiet jittajru fuq l-inġenji
fi ċrieki li ma jagħlqux,
jistennew il-fdalijiet telgħin fil-wiċċ.
Mill-vixxri. 

Taħt ir-rigg taż-żejt minn Monrovia
qed jgħawġu l-ħadid bl-aċitilena,
xrara fil-fawra morra qisha xniegħa persistenti.
Tixgħel aktar mill-qamar merfugħ fuq l-imsaren tal-Marsa
dil-fjamma,
aktar spontanja,
aktar kaħla miċ-ċima ċelesti li tofroq il-baċir mill-baħar
bir-riħ jarmi kollox ’il barra.
Hemm barkun mistrieħ mal-moll,
u maġenbu l-lanċa tal-irmonk Sea Patron.
Lil hinn, xi mkien, id-daħla tal-port.
Lil hinn minnu d-dagħbien. 

Minn qalb il-pjanċi tal-ħadid,
it-travi fuq xulxin, il-kanen stivati,
minn wara msaren qishom ktajjen mitluqa gozz
f’teatru tal-operazzjonijiet abbandunati,
jitfaċċaw irġiel moħbija ġol-boilersuits
imtebbgħa bil-port.
Għandhom tmien sigħat xogħol
f’għajnejhom
u tliet gawwijiet josservaw
il-pass kajman tal-helmets sofor. 

Nistenna l-imsaren jitħarrku,
l-intern jistejqer,
id-demm jiġri fil-griż,
l-isfar fl-ikħal,
iċ-ċelesti jitlaq jiġri fil-vina.
Nistenna l-id tbexxaq bis-salt it-twieqi
tal-ħnejjiet imġemmdin,
il-gawwi jogħdos bla ħniena,
il-baħar jinħasad,
il-laneċ jinqalgħu bil-mod minn mal-moll,
il-Mediterran qadim jirtogħod.
Nistenna l-klieb tal-għassa jaqbdu jinbħu
bla ma jieqfu,
iqaċċtu l-ktajjen, iħebbu għas-skiet.
Nistenna l-krejnijiet jitbaqbqu mill-ġdid bit-tagħbijiet,
iħottu u jgħabbu fuq gverta mifruxa quddiemhom 
bħal port. 

Nistenna l-oranġjo jieħu n-nar,
iċ-ċelesti taċ-ċima jistordi qiegħ baċir,
nistenna profeta f’sema iswed,
kometa fl-abbiss,
tħarħira xemx fil-qalb. 

Nistenna r-riħa morra,
ix-xrara,
l-aċitilena...

 

Acetylene

Cranes on the pier await their cargo.
Three seagulls swoop over engines
in unclosed circles
scanning for floating scraps.
Out of the innards. 

Underneath the oil rig from Monrovia
they're bending iron with acetylene,
a spark like a persistent rumour spreads through sour vapour.
This flame,
it’s brighter than the moon above the bowels of Marsa,
more spontaneous,
bluer than the cobalt hawser separating dock and sea
where everything is driven out before the wind.
There’s a longboat hove-to against the pier,
beside it a tugboat called Sea Patron.
Somewhere beyond, the gateway to the harbour.
Beyond that, the void.

From among the sheets of cast iron,
the piled-up beams, stacked pipes,
from behind the guts heaped up like chains
in a theatre of aborted surgeries,
some men turn up ensconced in boilersuits
stained by the port.
Their eyes harbour eight-hour shifts,
their yellow helmets’ languid progress
watched
by three seagulls. 

I wait for the guts to stir,
the innards to pulsate,
the blood to run into the grey,
the yellow to be shot with blue,
the cobalt to begin to course through veins.
I wait for a hand to crack the windows open
between the sooty arches,
the ruthless gulls to dive,
the sea to take a jolt,
the boats to detach slowly from the pier,
the old Mediterannean to shudder.
I wait for guard dogs to start up their ceaseless bark,
to snap their chains, lunge for the quiet’s throat.
I wait for cranes to groan against their cargo,
to unload and load a deck,
a port
spread wide before them. 

I wait for the orange to catch fire,
the hawser’s cobalt dizzying the depths,
I wait for some prophet in a black sky,
a comet in the abyss,
the thrum of sunlight in the heart. 

I wait for the sour smell,
the spark,
the acetylene... 

(Translation from the Maltese into English by Albert Gatt)


 Um dos mais reconhecidos nomes da literatura maltesa contemporânea, Adrian Grima (Malta, 1968) escreve contos, ensaios e poesia, tendo apresentado o seu trabalho em todo o mundo. A sua obra encontra-se também traduzida e publicada em árabe, francês, alemão e italiano. Adrian Grima é fundador da Inizjamed e foi Director do famoso Festival Mediterráneo de Literatura de Malta, entre 2007 e 2018. Trabalha como Professor Associado de Literatura Maltesa na Universidade de Malta e como Leitor convidado na INALCO, París.

Breves notas sobre poesia contemporânea portuguesa #1: Espigueiro, de Mafalda Sofia Gomes, do lado esquerdo (2019)

capa-do-espigueirorr_orig.jpg

Espigueiro de Mafalda Sofia Gomes é um livro breve e desconcertante. A sua força resulta da encenação das ocasiões desse desconcerto. O objecto dos poemas de Espigueiro são as relações entre homens e mulheres (com os seus equilíbrios e desequilíbrios: de poder e dominação, igualdade e desigualdade), estereótipos de género, tal como entrevistos em poemas sobre a educação de raparigas e rapazes, a afirmação e repressão do desejo no feminino, as vozes que são concedidas a mulheres anónimas ou que lhes são cirurgicamente retiradas. A este último propósito há um poema intitulado “Cozinha” que, dando a voz a um marido que nunca se nomeia como tal (“a minha mulher” é a expressão pela qual ele se define e identifica), é, no entanto, um pequeno tratado de crueldades diárias que, chegando ao último verso, tem o efeito de nos gelar o sangue, escondida e sancionada como esta voz nos chega por uma vox populi que é velha de séculos.

Espigueiro fala de outras coisas, por exemplo, do modo como as próprias mulheres acabam a dar voz e a perpetuar os preconceitos que sobre elas pairam. Leia-se um poema como “Doutrina:” “A minha avó usa vestidos por baixo da roupa/ porque aprendeu que as mulheres se medem às camadas,/ afinal, a moral terá tantos casacos quanto cadeiras/ para nos sentarmos de pernas fechadas,” que incisivamente nos recorda que o matriarcado é por vezes instrumental para a manutenção do patriarcado. Há um outro poema que nos fala de como esta violência se perpetua, faz parte de um ciclo que começa cedo, que se alimenta de alienação, ignorância, insegurança e desamor e perdura por gerações, não servindo ninguém. Em “Ontem, hoje e amanhã!” do ciclo “Mediação,” encontramos estes versos “Aos quinze anos/ deste um estalo à tua namorada/ e chamaste-lhe puta/ porque as mamas lhe cresceram tanto/ que não cabiam nas tuas mãos// não fossem elas caber/ noutras mãos que não as tuas.”

Esta violência, não é, no entanto, representada apenas como prerrogativa do sexo masculino. Um dos poemas mais inquietantes do livro intitula-se “Bons fils, cher fils, beau fils” e, numa alusão ao romance medieval Parzival de Wolfram von Eschenbach, retrata a obsessão de uma mulher por uma criança do sexo masculino, no que pode ou não ser um eco do romance, num poema que é uma exploração inquietante das relações entre ética e estética em poesia. O diálogo deste poema talvez não seja tanto com a tradição medieval a que se reporta, mas, por exemplo, com certos poemas de Cavafy, Morte em Veneza de Thomas Mann, Lolita de Nabokov e certos contos de Anaïs Nin.  

Digamos então que o desconcerto que pontua as relações sociais que são representadas em Espigueiro vem da desigualdade que caracteriza relações entre homens e mulheres, o que poderia ser descrito sob o rótulo de violência do patriarcado, mas algo neste livro aspira a uma liberdade primordial das mulheres que vem antes de imposições de normas culturais (veja-se um poema como “Iogurte Grego”). O humor (negro) que pontua aqui e ali o livro é também um exercício dessa liberdade e uma forma de resistência que se manterá necessária para desencorajar que, por exemplo, propostas para leis para tornar legal retirar a mulheres os seus ovários, no caso de elas decidirem abortar, não atraiam, num congresso de um partido de extrema direita num país da Europa no século XXI, o voto de mais do que 38 maníacos (que talvez fosse também o voto de maníacas, não sei ao certo, mas ridendo castigat mores, escreveu um homem francês algures no barroco, máxima de que também Gil Vicente gostava).

Esta constante impressão de desequilíbrio entre géneros sublinha-se no estilo que dá forma ao livro: a preferência por métricas e rimas tradicionais, por expressões que parecem saídas de um inventário de frases feitas de uma sabedoria popular (vejam-se as primeiras linhas do poema de abertura, “Verdes Anos:” “Os que cheiram a cevada coada na alvorada/ aprenderam cedo as artes da boa peneira”), que parecem situar esteticamente o universo poético de Espigueiro num mundo de referências literárias que pode ser encontrado não entre discursos vanguardistas mas entre duas balizas cronológicas bem mais anteriores, a da literatura medieval e a de ecos de um certo romantismo que aqui funciona não tanto como categoria sobre a qual agrupar um nexo de influências literárias, mas enquanto paisagem cultural que fala de um Portugal onde as relações entre géneros ainda carregam as ressonâncias destes pontos de referência cronológicos.

Há, num certo lado rural de Espigueiro, uma ambiência que parece olhar para trás, para o mundo do Almeida Garrett de Viagens na Minha Terra, de Júlio Dinis, de Alexandre Herculano. Mas a ruralidade de Mafalda Sofia Gomes é urbana, tem muito mais que ver com a ruralidade urbana de um António Variações, e o que em Espigueiro denota o facto de que a formação de Mafalda Sofia Gomes é em literatura medieval, mais especificamente a alemã, pede a apreciação de que, pelo menos para efeitos da poética deste livro, em termos de conteúdo, se não de estilo, o mundo medieval que é aqui referido pertence também a uma certa forma de vanguarda que às vezes o movimento de certos jovens poetas em direcção às retaguardas de um cânone denota: tem muito mais que ver com o tratamento que Adília Lopes faz desse mundo na sua poesia do que, por exemplo, o uso que dele faz o explicitamente mencionado Pero Garcia Burgalês.

Adelaide Ivanova, que assina o posfácio, diz-nos que os poemas de Espigueiro não julgam o leitor (p. 60) e que o livro não nos oferece “nenhuma resposta concreta acerca das questões que levanta” (p. 59). Estas duas afirmações talvez mereçam alguma reconsideração. A propósito de os poemas não julgarem o leitor, leia-se, por exemplo, um poema como “Blandina” sobre a figura homónima, martirizada em Lyon no século II d.C., em que com o seu vocabulário ambíguo, entre o martírio e o êxtase, põe o leitor na posição de ouvinte desse monólogo e espectador desse martírio, tornando a ideia de martírio numa metáfora mais ampla para o modo como o corpo feminino é explorado e aniquilado num ritual voyeurístico pela afirmação da sua beleza, do desejo que carrega com ele. Há algo neste poema que convida a que o leiamos quase como uma reescrita de “Cogida y Muerte” de Lorca, e que o torna um dos poemas com um dos ritmos mais certeiros e belos escritos pela jovem poesia portuguesa recente.  A propósito de os poemas não sugerirem qualquer “resposta concreta acerca dos problemas que levantam” veja-se um poema breve, como “Universais” (p. 26) que é um dos poemas do livro mais explicitamente preocupado com questões de arte poética e que é um poema-provocação, em que se lê: “O José Carlos/ não gosta do verso/ agora não sou/ ninguém/ será que o José Carlos/ que não é um Zé Ninguém/ já pensou no Ulisses no Romeiro/ e não aceita que/ uma mulher seja universal/ como um homem que/ se tenha perdido no mar.” A conclusão, que atribui às mulheres o espaço da praia e o trabalho das lágrimas, parece afirmar, no entanto, que este é um outro cânone, tão válido como o de Ulisses e do Romeiro, num jogo duplo com a ressonância do que significa um homem ser ninguém (Ulisses na gruta de Polifemo, fazendo uso da sua astúcia) ou uma mulher, o que bem vistas as coisas serve para sublinhar a existência deste outro cânone, a sua validade. A este poema têm de se somar outros dois: “O que diria Hildegarda von Bingen? A propósito da extinção das casas religiosas femininas em Portugal,” que no que tem de encenação da vida em isolamento de uma mulher, leva-a a concluir que vive numa época em que “deus já não manda mensageiros.” Ela, no entanto, cumpre a sua rotina, testemunha silenciosa e cronista escrupulosa da sua própria vida (“Quando acordo/ vou muito direita ver se o pavio ainda arde...”) É este “muito direita” que aqui me importa sobretudo. Hildegarda von Bigen, santa do século XI, é afinal uma das figuras fundacionais da cultura germânica, e é também neste livro a última testemunha solitária da existência de um tempo em que mulheres viveram em comunidades exclusivamente compostas por mulheres numa época anterior à modernidade, o que para o leitor de Espigueiro é uma forma de provocação mas também um modo de lembrar que estas experiências sociais existem, pelo menos tanto quanto, por exemplo, os clubes exclusivamente masculinos de Londres existem. Nesse sentido, esta Hildegarda de Mafalda Sofia Gomes pertence e acrescenta algo a discursos sobre vidas de mulheres que estão na mesma tradição cultural recente de um filme como Retrato da Rapariga em Chamas de Céline Sciamma (2019), são exercícios que encenam e questionam questões de igualdade e autodeterminação. No caso da Hildegarda que fala neste poema aponta-se no entanto para as limitações deste tipo de experiência social: é um mundo algo estéril e mergulhado no tédio aquele em que os géneros não coexistem. Mas se para um livro de poemas não ser cínico ele tem de dar alguma resposta aos problemas que levanta, talvez a de Mafalda Sofia Gomes venha nos últimos versos do último poema, “Menarca:” “gosto que as mulheres vivam/ inteiras vertidas/ convertidas/renovadas” – condição sine qua non para que um corpo social, todos os géneros e identidades incluídas, funcione enquanto tal.