Kafka e Bob Dylan: uma nota

Franz Kafka, revelando uma faceta, ou pelo menos um corte de cabelo, de clássico controverso. 

Franz Kafka, revelando uma faceta, ou pelo menos um corte de cabelo, de clássico controverso. 

No terceiro volume da biografia de Kafka, Kafka: The Years of Insight, Reiner Stach tem um capítulo intitulado ‘What do I have in common with the Jews?’, em que se debate a perplexidade com que os contemporâneos de Kafka receberam A Metamorfose e as sucessivas tentativas de categorizar a obra como ‘literatura alemã’, ou ‘literatura judaica’, ou ‘literatura de vanguarda’. A propósito deste assunto, Stach escreve:

When nothing is self-evident anymore and suddenly everything goes, the waving flag of the collective, isms, and Volk ultimately remain the reliable identifying marks. The dogged attempts by Kafka’s early reviewers to pigeonhole him typified the era.

Por detrás da dificuldade dos contemporâneos de Kafka esconde-se a ideia de que nos relacionamos com a literatura a partir um conjunto de expectativas e conceitos prévios que entram em falência quando o objecto da nossa atenção não pode ser confortavelmente arquivado na caixa em que o queríamos arrumar. A força que a literatura encerra e a própria ideia de literatura como exercício de empatia são fruto deste atrito. 
Ligada à noção de que o Prémio Nobel da Literatura confere a um autor o vago estatuto de clássico vivo, estão os nossos preconceitos (não só em sentido etimológico) sobre o que é literatura. Tentativas de institucionalização da literatura tendem a acarretar esta desvantagem. A discussão dos contemporâneos de Kafka sobre A Metamorfose pode ser vista como um passo nessa direcção: que tipo de autor era Kafka e, segundo esse conceito, com que chave ler a sua obra. Um dos poetas do círculo em que Kafka se movimentava, Frank Werfel, escreveu-lhe uma carta em que dizia

Dear Kafka, you are so pure, new, independent, and perfect that one ought to treat you as if you were already dead and immortal.

O entusiasmado de Werfel não pode ter sido particularmente encorajador para Kafka (fica ali a ecoar o como se já estivesses morto). Não incluindo uma tentativa de arrumar Kafka numa determinada caixa, estas palavras escondem, no entanto, outro preconceito pelo qual tendemos a pensar que a grande literatura se apresenta e se distingue do que não pode ser classificado como tal, o teste do tempo: um autor clássico é, em 99.9% dos casos para os mais conservadores, um autor morto. É claro que se queremos compreender a literatura como algo vivo, que pode agir sobre o presente a menos de três séculos de distância, podemos propôr outras chaves de interpretação, como por exemplo, a ideia de que o autor de algo que descreveríamos com a palavra 'clássico' é aquele que se relaciona de um modo tão pertinente com o seu tempo que, ao mesmo, tempo, acaba por o transcender, o que me leva à parte deste apontamento que é sobre Bob Dylan. 
Talvez também entre os editores da Enfermaria 6 não haja um possível consenso sobre esta decisão que tanta polémica continuará a causar (o Nobel nunca agrada a todos), mas talvez isto possa ser acrescentado, sem qualquer pretensão a posição oficial deste espaço (a Enfermaria pertence a muitas vozes), que Bob Dylan é um dos autores mais relevantes e citados da cultura americana, numa obra que actualiza as mais diversas influências e tradições, que a atribuição anual deste tão badalado prémio é sempre um golpe de morte, de uma cajadada só, para umas quantas dezenas de autores que já fazem parte do cânone da literatura dos seus países de origem ou da literatura mundial (o Nobel enquanto modo de dinamizar a burocracia pela qual cânones se inventam e são sancionados), uma vez que em condições normais só um autor tende a ganhar por ano (daí ter dificuldade em entender o argumento dos que querem ver este prémio como uma oportunidade desperdiçada, este prémio é sempre uma oportunidade desperdiçada de reconhecer os escritores que verdadeiramente me agradam, e não só a mim), e que talvez a função do Nobel seja chamar a atenção sobre as muitas formas por que a literatura opera e se reinventa. Os mais optimistas quererão e poderão ver neste prémio um comentário acerca do momento político que a América atravessa, o reconhecimento de uma certa esquerda americana de que Bob Dylan é um símbolo, a ideia de que este prémio, de resto como a literatura, é mais do que um assunto meramente cultural. Discutir se Dylan é de todo um escritor parece-me uma conversa que só pode ser entretida depois de se passar pelo tipo de intervenção cirúrgica que deu ao nosso Egas Moniz o Prémio Nobel. Mas a esse respeito, talvez valha a pena acrescentar o cliché óbvio, e balbuciar que um grande escritor é aquele cuja obra deixa perceber uma aguçada perspectiva sobre o mundo, e que as canções de Bob Dylan traduzem a atmosfera de um sem número de mundos. Mas talvez seja de concluir com um belo parágrafo de Miguel Esteves Cardoso, numa crónica de ontem no Público:

A obra de Dylan – que é caoticamente desigual, havendo coisas terríveis ao lado de obras-primas – é uma gloriosa colecção de todas as tradições literárias da humanidade, desde os trovadores aos cantores de blues, desde os contos de fada às orações.

Finalmente temos um Nobel à altura de Dylan.


Mais sobre Dylan e o Nobel: 

Miguel Esteves Cardoso, Bob Nobel, nem menos, Público.
Ricardo Domeneck, Um prémio a um trovador moderno, Deustche Welle. 
Pedro Mexia, “Estou contente, triste, para cima, em baixo, dentro, fora, lá no céu e cá nas profundezas da terra”, Expresso.
Alexis Petridis, Pop lyrics aren't literature? Tell that to Nobel prize winner Bob Dylan, The Guardian.
Dan Piepenbring, Writer's, it's time to learn guitar, and other news, Paris Review.
Luís Miguel Queirós, Isabel Salema, Victor Belanciano, 'Dylan está acima do Nobel', Público.
Luís Quintais, Bob Dylan dirige-se aos seus contemporâneos, Luís Quintais (originalmente publicado na Relâmpago).
David Remnick, Let's celebrate the Bob Dylan Nobel Win, The New Yorker. 
Telmo Rodrigues, Bob Dylan está do lado certo da história, Observador. 
Luc Sante, Dylan's Time, New York Review of Books. 
'Dylan towers over everyone' – Salman Rushdie, Kate Tempest and more pay tribute to Bob Dylan, The Guardian.

Dois poemas de Mariano Alejandro Ribeiro

VOU

Para evitar a aglomeração
De shenanigans do circo
Risco os dias no almanaque
& canto aquela do
fotografei você na minha rolleiflex
Assim foi como abandonei a escola
Com método & perícia
& virei-me para a tradução
De livros de auto-ajuda
- - -  
A pensar naquela foto tua na ria
Era curioso como assim
Rolleiflexada no negrume  
Da alvorada  
Ainda eras sem dúvida
O príncipe pequenino
Com todos os medos que por direito
Pertencem aos poetas do século xix
& a um ou outro que ainda anda por aí 
A chutar pedras pelo caminho
Quando vai trabalhar
Naqueles tempos a sorte era  
Uma medalha de ouro na mão
Sermos netos dos lavradores mais volúveis
Desta terra
Era benzer-nos com os cantos
Da filosofia oriental
& quando os pegos de água doce secavam
Acabávamos no mar
Frente à ilha deserta de madrugada
Acabávamos na cafetaria  
Dos trabalhadores do mercado
Empastados pelo cheiro a maresia
Sempre na cafetaria
[insira memória nostálgica e conclusiva] 
Bicho, risquei do almanaque  
O quadradinho de amanhã 
Fico à tua espera a folhear o jornal  

 

ANTONIN ARTAUD  

O poema começa com o Sr. Prufrock
A aparar os pelos do nariz
Com aquela tesourinha pequena
Então vem, diz ele
Till human voices wake us
E corta imediatamente para um  
Plano lato do celeiro em Paumanok
Ao amanhecer
O homem-pardo é o homem-montanha
Disso não há dúvida
Acordei hoje e soube logo  
Que a inclinação da janela
Para os lados da sombra
Com os lençóis suados e tudo
Era a melhor maneira de ler
Whitman
Mesmo com colheitas fracas
E com anos de seca
A vida permanece líquida
Num jeito que diz
De dentes cerrados
«O riacho voltou a correr» 
E a minha reacção é sempre
A mesma
Pões a quinta e roças-me
Gentilmente com as costas da mão  
Gordinha a perna
O joelho estremece
E as aves de passagem
Nem sei o que dizer

Aqui as manhãs sem neblina
Continuam a ser a melhor altura
Para ler Antonin Artaud
No jornal antigo engatafunhado
Por dísticos orientais
Dos tempos em que aprendia línguas
Na internet
A caneta rebentou no papel
Do jornal dizia 逸れる  
I’ve been lost and found
I’ve been lost and found
A montanha continua a ser
O melhor que aconteceu ao  
Meu diário
Depois disso, não sobrou ninguém
Mas é assim que funciona
O ar cá em cima, é sempre assim
Já o sabíamos
O Sr. Prufrock pousa
A tesourinha
Olha-se ao espelho
Fim do poema

Juízos de gosto e conselhos aos jovens artistas

Os trabalhos enviados à consideração do conselho editorial da Enfermaria são avaliados e decide-se sobre a sua publicação. Nalguns casos recusamos publicá-los, fazendo-o quase sempre a custo e, sobretudo, duvidando da exactidão da nossa apreciação. Para que este embaraço fique mais claro e experimentando uma espécie de pedido de desculpa a quem nos contactou sem ter da nossa parte o mesmo retorno generoso, peço-vos que acompanhemos o que nos diz Kant na Crítica da Faculdade do Juízo (CFJ, 1790) sobre os juízos de gosto. No pano de fundo brilham as cartas de Rainer Maria Rilke a Franz Xaver Kappus, ou as Cartas a um Jovem Poeta (1903-1908/1929).

Kant, no §32 da CFJ, profere este conselho: “um jovem poeta não se demove, nem pelo juízo do público nem pelo dos seus amigos, da persuasão de que a sua poesia seja bela; e se ele lhes der ouvidos, tal não ocorre porque agora a ajuíza diversamente, mas porque ele encontra no seu desejo de aprovação uma razão para se acomodar (mesmo contra o seu juízo) à ilusão comum, ainda que (do seu ponto de vista) todo o público tivesse um gosto falso.”[1]

Portanto, artistas da escrita, artistas das ideias, artistas das imagens e dos sons, artistas de minúsculos pormenores surpreendentes, artistas por vir, artistas em geral, isto é, amantes do belo, não ponham o gosto dos outros acima do vosso, sigam os impulsos que vos convenceram sobre a beleza das vossas obras. Sem qualquer hesitação? Não. Há imensos precedentes geniais, é portanto conveniente, continua Kant, “Que se enalteçam como modelos as obras dos antigos e chame clássicos aos seus autores”. (§32) Tanto mais que o que outros conceberam permite ao neófitos não serem “simples imitadores”, “afim de procurarem em si próprios os princípios e assim tomarem o seu caminho próprio e frequentemente melhor.” (§32) “Frequentemente melhor”, vejam a admiração e a confiança que Kant deposita nos jovens artistas, não as desmereçam. Apesar disso, não se esqueçam também de educar o vosso gosto, de em vez de serem poetas, por exemplo, tornarem-se constantemente e infinitamente poetas, de alargarem o vosso engenho, de “falharem melhor”. Porque, socorrendo-me novamente da luz kantiana, “entre todas as faculdades e talentos, o gosto é aquele que, porque o seu juízo não é determinável mediante conceitos e preceitos, maximamente precisa de exemplos daquilo que na evolução da cultura durante mais tempo recebeu aprovação, para não se tornar logo de novo grosseiro e cair na rudeza das primeiras tentativas.” (§32) Portanto, é preciso cultivar o gosto, todos os dias porventura, extirpá-lo constantemente da vulgaridade que, sobretudo em culturas populares grosseiras, o ataca de todos os lados.[2] Se me permitem um conselho palpável, evitem, por favor, ler livros cuja página 100 não consegue provocar qualquer arrepio, tão lisa e transparente que através dela se vêem todas as palavras e ideias do homem médio, ou ouvir música que entra à primeira no ouvido, ou acompanhar a multidão, embriagada pela novidade, a um museu que acabou de abrir com nada para oferecer, além de se mostrar a si mesmo, num narcisismo sem remissão, ou deixar-se arrastar pelo niilismo propagandístico que continua a desprezar a vida. Desta forma, Kant, após autonomizar totalmente o juízo de gosto individual (subjectivá-lo, em linguagem mais filosófica), introduz, porém, limites à vertigem juvenil (e adulta, diga-se), demonstrando que atender ao passado é fundamental para formar o gosto próprio, sobre o qual, §33, podemos até começar a duvidar, depois de conhecermos um número suficiente de bons exemplos.

Este acrescento ao primeiro “confia apenas no teu gosto!” traduz um bom senso lapidar, mas pouco depois, este autor, considerado austero e conservador (tendências que nem sempre se justapõem), regressa à primeira tese, diz ele: “jamais porém o que aprouve a outros pode servir como fundamento de um juízo estético. O juízo de outros que nos é desfavorável, na verdade pode, com razão, tornar-nos hesitantes com respeito ao nosso [juízo estético], jamais porém pode convencer-nos da sua incorrecção.” (§33) Tanto mais que um juízo estético não se elabora a partir de conceitos ou de critérios empíricos, ele é totalmente subjectivo e feito a priori, isto é, antes de qualquer condição cognitiva que o oriente num ou noutro sentido. Para não cair numa subjectividade solipsista, fechada às demais subjectividades, Kant convoca, §40 e seguintes, a ideia do sensus communis, um sentimento humano comum capaz de criar uma comunidade de seres racionais, prontos,  descontando-se os preconceitos e interesses privados, a ajuizar de igual forma a beleza, natural e artística. Bom, mas isto leva-nos para outros caminhos que agora devo abandonar.

Conclusão: jovens escritores a quem podemos ter inoculado, com a nossa recusa em publicá-los (uma rejeição que, aliás, nunca é definitiva, enviem-nos, por favor, outros trabalhos, testem-nos novamente), um grão de dúvida que arruína ímpetos sinceros, confiem no vosso gosto, o que têm e o que vão tendo, formado à medida que lêem, vêem, ouvem, sentem, sofrem e se entusiasmam, numa palavra: à medida que vivem. Nós e outros seleccionadores, nós e outros críticos até podemos ter razão, mas aqui não é de razão que se trata, mas de gosto estético, sempre subjectivo, tanto mais certeiro quanto resulta de um convívio vital com a obra (escorrego para o campo nietzscheano, mas sem enfurecer Kant), tanto mais preciso, pois, quanto é vosso. O melhor crítico é o próprio autor, o autor ensimesmado, recolhido no seu gosto, que cultivou até onde pôde um gosto prolífico e multiforme (nunca um gosto quadrado), mais severo mas mais exacto do que os de seres heterogéneos, que mesmo recusando critérios uniformizadores, só conseguem vislumbrar, nos momentos mais inspirados, um terço da beleza que irradia das obras.

 

[1] Uso a tradução, com algumas alterações, de António Marques e Valério Rohden para a Imprensa Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 1990.

[2] Como refere Filomena Molder, num comentário parecido ao meu, “O poeta tem de cultivar a poesia a fim de purificar, firmar, afinar o seu próprio juízo, quer dizer, educar o seu próprio sentimento.” (As Nuvens e o Vaso Sagrado, Lisboa: Relógio D’Água, 2014, p. 113).

Um pai florido

Eu e as minhas irmãs nascemos na praia e ali vivemos até a irmã mais nova fazer um ano: aprendeu a dar os primeiros passos em cima da areia e a nossa mãe resolveu que a sua educação estava completa. Que tinha dentro dela toda a praia que podia ter. E se ela tinha, que era a mais nova, a acabada de nascer, com mais razão teríamos nós.

Quando depois da nossa mãe morrer vendemos a casa na cidade, podíamos ter escolhido outro sítio qualquer para morar que não este. Podia não ter sido um lugar de colinas verdes; uma quinta; patos e galinhas, tudo coisas e seres que não estão inscritos no nosso código. No nosso código está a areia e o mar. Conchas e pedras. Peixes e algas. Uma extensão de areia e mar.

Não temos memória dessa praia onde nascemos e crescemos. Só a conhecemos pelas histórias da mãe. Ela conta que vivíamos numa cabana de madeira, precária, que todos os anos se desmoronava; os nossos vizinhos eram pescadores. Vivíamos de comer peixe e marisco. Ela pescava. Tinha uma traineira. Outras vezes, um barquinho chamado Verde Mar ou Rosa AnaMaria; outras, apenas uma cana de pesca. Outras ainda, as mãos nuas.

Nunca conta sobre o pai. Quanto ao pai há estas hipóteses: temos as três o mesmo pai  - as duas mais velhas têm o mesmo pai e a mais nova outro- a do meio e mais nova têm o mesmo pai e a mais velha outro – a mais velha e a mais nova tem o mesmo pai e a do meio outro -  cada uma tem o seu.

Apesar de o pai poder ser três, nós imaginamo-lo com um único rosto e uma barba florida.

Nunca voltámos a essa praia onde começámos a vida e onde nos alimentávamos de peixe e conquilhas.

Nem nunca mais vimos mar algum, só em filmes e fotografias. Mas há quanto tempo não vemos um filme! A irmã do meio pintou um mar, diz que é para não se esquecer. Nada prova que o mar seja aquilo. A mãe diz que somos feitas de areia, que pelos sítios onde passamos deixamos pegadas.

Comprámos para viver uma quinta que se situa a quatro quilómetros da praia onde nascemos.

A mãe diz que o mar nos corre por dentro, que o sal nos há-de matar. Antes de comprarmos a quinta, comprámos um mapa. Localizámos a praia, espetámos um alfinete amarelo, aqui é a praia onde nascemos.

Mesmo ao pé havia uma mancha verde, espetámos um alfinete vermelho. Nessa mancha, informámo-nos depois, encontrava-se esta e outras quintas enfiadas entre colinas, a aldeia da taberna, havia os velhos e o cão zarolho, as árvores e as raposas, lebres e escalavardos, um ou dois javalis, cães selvagens, rosas moribundas, flores silvestres de perfeita saúde; alguém a caminhar na direção do verde, era Dimitri o jardineiro.

Vivemos a exatamente quatro quilómetros da praia onde nascemos, mas nunca lá fomos. A praia significa para nós o mesmo que para outra pessoa o país natal distante, situado em um outro continente, onde nunca mais voltará. Ou por ser demasiado longe, ou por medo de que seja realmente tão longe que mesmo que volte ultrapassando a distância, já não há de encontrar o que procura. Tão longe como as coisas que não existem.

Como para nós a praia da memória das histórias da mãe.

De vez em quando chega até aqui, à nossa casa em ruínas, o cheiro familiar do mar. É um cheiro que nos confunde, nos alegra e enche de melancolia. O ar torna-se húmido e ouve-se o barulho das ondas. O barulho das ondas que não vemos enerva-nos: não sabemos se tivemos um, dois ou três pais, se algum deles nos ensinou a andar enquanto a mãe andava no mar atirando a rede.

Nesses dias de neblina em que o nosso país nos chama, passeamos profundamente, cegamente pelo campo. O cheiro da maresia tudo cobre.

Pensamos naquilo que fomos, temos um passado, sabemo-lo bem, ele vem ter connosco em forma de cheiro e som - envolve-nos, tortura-nos, amargura-nos, adoça-nos - mas nós nunca vamos ter com ele.

Somos presente e futuro.