Etnografia do Algarve

Êxtase costuma ser da cor do lazúli
O algarve é uma região
Onde existem povos com o jumento domesticado
E outros que não chegaram a tempo
Da escolaridade obrigatória
Nas ruas vêm-se estrangeiros de muito dinheiro
E outros com não muito dinheiro
Por vezes irlandeses gordos e embriagados
E franceses sem capacidade financeira para o sul
Do seu próprio país

O algarve começa neste século
A sua mais frondosa crise de identidade

Pendentes de um bezerro dourado
Ou de um jogo de sombras estrangeiras
O algarve morre aos poucos
Como um areal infinito e atemporal
Que teima em encerrar-se no vácuo
De uma ampulheta dourada

Êxtase costuma ser uma palavra
  Da cor do lazúli
E o que salva o algarve são
Pescadores escondidos em impermeáveis
Verdes, roxos e violetas   de 1986
Encostados às suas bicicletas
Encostadas às suas vontades
Juntos numa esquina sem nada para dizer
O que salva o algarve são senhoras com os dentes necessários
E um lenço a cobrir-lhes o cabelo
Vendem fruta da horta no mercado
Sem cálice nem corola  
O que salva o algarve
É a ria deserta no inverno
E não o deserto de filas de carros
Como se de um conto do Cortázar se tratasse
Sob um sol ardente
Nas manhãs de verão
O que salva o algarve não são as palmeiras que nunca antes estiveram
À la venice beach, chico
São as alfarrobeiras tristes
E as oliveiras mudas
É o canavial que acompanha os riachos
Da serra-mãe
Talvez a revolução seja isso e eu não a veja
Êxtase é da cor do lazúli

Convite para o lançamento de 'Ao jeito dos bichos caçados'

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Caros Amigos,

É com muita alegria que vos convidamos para a apresentação do nosso novo livro, Ao jeito dos bichos caçados, de Otávio Campos.

A apresentação contará com a presença do Otávio e estará a cargo de Mariano Alejandro Ribeiro, Mariano Marovatto e Ederval Fernandes. Terá lugar já na próxima sexta-feira, dia 19 de Dezembro, no Bar Irreal, em Lisboa, pelas 20 horas. Teríamos muito gosto em vos ver lá.

Poderão encontrar aqui os primeiros poemas do livro.

Com os nossos melhores cumprimentos,
Enfermaria 6


Apresentação de Cabeça de Cavalo de Mariano Alejandro Ribeiro e Muimbu de André Capilé (Colecção Casa de Barro, Edições Macondo, 2017)

O poeta argentino, radicado em Portugal, Mariano Alejandro Ribeiro, convida o leitor a penetrar em uma poética densa, capaz de nos gerar o incômodo das leituras que não passam em desapercebido. O primeiro título da nova coleção das Edições Macondo, “Casa de barro”, Cabeça de cavalo é também a estreia do poeta no Brasil. Mariano Alejandro Ribeiro é uma dessas vozes que ficam, e demonstra toda a potencialidade da poesia contemporânea. No mesmo dia vem a público o segundo livro dessa coleção, Muimbu, de André Capilé. Nesse recente título o poeta reinventa sua prática litúrgica, exigindo da acústica o ritual da poesia, que perpassa a sua religiosidade e o “sensível invisível”, que se confunde com a “dimensão de autoria”. As Edições Macondo, Mariano Alejandro Ribeiro e André Capilé convidam para o lançamento de seus livros inéditos, que acontecerá no Museu Ferroviário de Juiz de Fora, no dia 01 de julho, às 15h. A partir das 17h ocorrerão leituras com os poetas que estarão apresentando suas obras, além de Prisca Agustoni, que já anuncia o próximo título dessa coleção.  

APRESENTAÇÃO DA COLEÇÃO CASA DE BARRO
DIA 01/07/2017 A PARTIR DAS 15:00
MUSEU FERROVIÁRIO
(AV. BRASIL, 2001 – CENTRO – JUIZ DE FORA, MG)

SE ISTO AQUI NÃO É UM PRADO

Mariano Alejandro Ribeiro

Se isto aqui não é um fado
Decerto um amanhecer claro
O homem nu sai da cama
E abre as persianas
Da varanda
Com trezentos pássaros para nos recordar
Que nada do que temos é
Assim tão permanente
– Escuta,
Se isto aqui não é o prado
É certamente o pomar
Onde íamos ver as miúdas giras
Longe das ruas com nomes de marechais
Alemães
A mãe dizia que era por causa do colégio
Alemão
Figuras impolutas e ligeiramente suspeitas
Da cena pública imigrante na Argentina
Mas aqui ó todos dentro do mesmo saco
De papel
A sacudir o vento da revolução e a revolução
Que começa sempre ligeiramente ao lado
Do lugar previsto
E ligeiramente depois
Da hora marcada
E eu que nessa altura já estou à espera do 36
No Rossio
Para voltar
A casa
Enfim,
Se isto aqui não é um poema
Então é a graça do menino que ainda não
Cresceu
Baboseiras são lindas e macacos no nariz
A debruçar-se nas esfregas de Verlaine
E Rimbaud
Enquanto os pais fingem que entendem o que se passa
Na aparelhagem do jazz
Desemaranha os cabos
Liga a Nintendo
Ninguém está
A olhar
Tu seguras uma ponta da ponte, Charles
Eu seguro a outra
Ah Um
Ah Um
Dez anos depois o céu é rosado
O amanhecer, é claro
O homem nu abre as persianas da varanda
E volta para a cama
Não dá tempo sequer aos lençóis
De arrefecer  

KISANGA

André Capilé

se forem feito passarinhos
vou dançar em suas alas 

toda alegria de pluma
vou dar parto aos passarinhos 

e se vierem com saúde
vou saber que se recusam
a irem ao bico dos ricos 

o que recusam os passarinhos
nos converte em felizes miseráveis 

pois para os que veem
o desespero da casa 

eles tornam os pobres abastados

que invistam na casaca do desprezo
são muitos os fios do ninho 

onde um ninguém vai se tornar famoso

e falam do ó da casa que abriga

lá farinha é pouca
o pirão dividido 

e falam do ó da casa que abriga

chegarão soltos no mundo
para dizer se a água é boa ou não 

não precisa medir cada fundo de vala
quem provou a doçura da terra 

saudarei o olhar da esposa rival
se chamarem o mal voltará bem eu sei 

cadeados não vão os trancar
nem eu os trancarei 

um deus fica na entrada
outro mora na minha divisa 

os feitiços não vão nos pegar
nosso lar tem o rei da gargalhada 

sou pomba que delira no meio da águia
sou frente autoridade e aperto as mãos das deusas 

e digo
não terão eles a cara do pai 

é tempo de ter glória nessa vida
vou esfregar meus cabelos grisalhos 

se quiser ver o cobre
pergunte aos cabelos grisalhos
se quiser ver sarar
pergunte aos cabelos grisalhos
se quiser paciência
pergunte aos cabelos grisalhos 

se quiser um cativo
pergunte a sua cabeça primeiro 

por favor hoje não tranque o portão
eles estão vindo
vão fazer minha vida muito próspera 

os saúdo
em honra de meus ancestrais  

serão lindos passarinhos

não devem fazer nada
além de vir de mim

Dois poemas de Mariano Alejandro Ribeiro

VOU

Para evitar a aglomeração
De shenanigans do circo
Risco os dias no almanaque
& canto aquela do
fotografei você na minha rolleiflex
Assim foi como abandonei a escola
Com método & perícia
& virei-me para a tradução
De livros de auto-ajuda
- - -  
A pensar naquela foto tua na ria
Era curioso como assim
Rolleiflexada no negrume  
Da alvorada  
Ainda eras sem dúvida
O príncipe pequenino
Com todos os medos que por direito
Pertencem aos poetas do século xix
& a um ou outro que ainda anda por aí 
A chutar pedras pelo caminho
Quando vai trabalhar
Naqueles tempos a sorte era  
Uma medalha de ouro na mão
Sermos netos dos lavradores mais volúveis
Desta terra
Era benzer-nos com os cantos
Da filosofia oriental
& quando os pegos de água doce secavam
Acabávamos no mar
Frente à ilha deserta de madrugada
Acabávamos na cafetaria  
Dos trabalhadores do mercado
Empastados pelo cheiro a maresia
Sempre na cafetaria
[insira memória nostálgica e conclusiva] 
Bicho, risquei do almanaque  
O quadradinho de amanhã 
Fico à tua espera a folhear o jornal  

 

ANTONIN ARTAUD  

O poema começa com o Sr. Prufrock
A aparar os pelos do nariz
Com aquela tesourinha pequena
Então vem, diz ele
Till human voices wake us
E corta imediatamente para um  
Plano lato do celeiro em Paumanok
Ao amanhecer
O homem-pardo é o homem-montanha
Disso não há dúvida
Acordei hoje e soube logo  
Que a inclinação da janela
Para os lados da sombra
Com os lençóis suados e tudo
Era a melhor maneira de ler
Whitman
Mesmo com colheitas fracas
E com anos de seca
A vida permanece líquida
Num jeito que diz
De dentes cerrados
«O riacho voltou a correr» 
E a minha reacção é sempre
A mesma
Pões a quinta e roças-me
Gentilmente com as costas da mão  
Gordinha a perna
O joelho estremece
E as aves de passagem
Nem sei o que dizer

Aqui as manhãs sem neblina
Continuam a ser a melhor altura
Para ler Antonin Artaud
No jornal antigo engatafunhado
Por dísticos orientais
Dos tempos em que aprendia línguas
Na internet
A caneta rebentou no papel
Do jornal dizia 逸れる  
I’ve been lost and found
I’ve been lost and found
A montanha continua a ser
O melhor que aconteceu ao  
Meu diário
Depois disso, não sobrou ninguém
Mas é assim que funciona
O ar cá em cima, é sempre assim
Já o sabíamos
O Sr. Prufrock pousa
A tesourinha
Olha-se ao espelho
Fim do poema