Playlist para 'Vida mulata' de Luís Chacho

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1- Os Lambas " sobe " (https://www.youtube.com/watch?v=RQW1sSppdGM)

2- LKJ - Linton Kwesi Johnson - Licence Fi Kill(https://www.youtube.com/watch?v=etUDTJsjEE0)

3- Steel Pulse - Chant A Psalm (https://www.youtube.com/watch?v=OH1zO2xI8KA)

4- Bonga - mona ki ngi xica (https://www.youtube.com/watch?v=Vvr6F6kwyEo)

5- CARLOS BURITY - DOMINGUINHA (https://www.youtube.com/watch?v=OQhGKmxYgmU)

6- John Lee Hooker & Miles Davis - Bank Robbery (https://www.youtube.com/watch?v=hzBQK2IBGm8)

7- Lee "Scratch" Perry - Panic in Babylon (https://www.youtube.com/watch?v=F8cXSqB5j0M)

8- kanye west - No Church In The Wild (https://www.youtube.com/watch?v=FJt7gNi3Nr4)

9- MCK - atras do prejuizo (https://www.youtube.com/watch?v=VuhI_Nhm_QU)

10- Noite Dia & Puto Lilas_ Fogareiro apaga o fogo (https://www.youtube.com/watch?v=21uMzphZkXc)

11- Snoop Dogg - Drop It Like It's Hot ft. Pharrell Williams (https://www.youtube.com/watch?v=GtUVQei3nX4)

12- Os Lambas - Provo E Gosto (https://www.youtube.com/watch?v=66pfD_EBIXw)

Arquifono

E disse
Gaiaku Luísa: 
– […] 
nos confins
do Bitêdo, 
onde Malê 
Seja Hundê, 
roça de cima, 
estirava-se
rente a cerca
um facho
de fumo de corda, 
frutas
e litros de vinho
em reverência
aos índios. 
Enquanto no Ilê 
Alabassé, a visão
de um babalaxé 
de Gbessém, 
a grande píton… 
Em névoas
os portos
de onde vem: 
se Congo
ou Mina's Coast, 
Angola
ou Aruanda: 
África ecográfica
de amefricanos. 
Trabalhadoras
da Suerdieck
perceberam: 
O Ifá Dó 
– Irôko! 
Lokosis, 
Temi Aguessis
Bô Omin, 
e em Nagé,  
ainda tem
O Humpaime
Dahoméa… 
E quando
Odé Kojá, 
no peji
aos pés
do atin
– árvore
sagrada – 
no mato, 
na gruta, 
no buraco
oculta
um segredo, 
ou na I.B.M, 
no Ilê Iyá 
Nassô Oká, 
em Salvador
(não importa! 
onde o talabí 
toque o canto
para Gbéssem, 
Obaluaiyê e
Xangô. Eles
vêm…Chegam
até o abassá, 
no runtólogi, 
ou até no Ilê 
Ibecê Alaketu
Axé Ogum
Megegê, 
em Alapini, 
Azon Lepon) 
– : Arotô Seji, 
Obaluaiyê, Omolu, 
enquanto yalodé 
canta egungun
e olunda (erê), 
dança Obaluaiyê 
com folhas de imbaúba
nas mãos e palhas
nos punhos
enquanto Xangô 
aproxima-se do otá 
(ao mesmo tempo) 
Aganju Ominazon Didê 
atravessa o Riacho Capivari.


Dos editores que não publicam livros

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Todos os dias, a partir das sete da tarde, quando os funcionários abandonavam o t-4 no qual a sede da editora se encontrava instalada, o editor seguia o ritual de estalar os dedos, descalçar os sapatos, alisar o cabelo com um pente molhado, folhear o jornal diário enquanto delia o açúcar no café, e responder aos autores que, iludidos pelo delírio de ser incluídos num catálogo que equivalia a prémios literários e a sucesso imediato, lhe enviavam manuscritos, arriscando receber em troca humilhantes e insultuosas cartas — sucintas, impregnadas de azedas observações, como não presta, não apreciei, aprenda a escrever, volte à escola, cosa peúgas.

O editor reservara aquela sexta-feira para reler as páginas finais de um manuscrito que, não lhe tendo desagradado — a prosa não se enodoava com refogados poéticos, não lhe saturava a vista, não lhe puxava as unhas para os dentes, nem o desguedelhava — , apresentava uma pecha inultrapassável: o editor não só conhecia o autor como com ele antipatizava. “Estimado senhor, sobre o seu original não me pronunciarei a não ser para lhe rogar que se dedique a tarefas não associadas à escrita durante os próximos quatro ou cinco anos, talvez os que me faltam para partir desta medonha existência”, redigiu, e pousou a caneta, arrependido de ter iniciado a carta num tão cordato tom. Estimado senhor. Caro cidadão. Boa noite, animal. Soletrou o vocábulo depois de bochechar o café frio. Animal. “Senhor animal”, emendou, “acredite ou não, no exacto segundo em que o carteiro me tocou à campainha com o seu manuscrito nas mãos, cheirou-me a trampa.” Dobrada e enfiada a folha A4 no envelope, costumava apagar-se do pensamento do editor a memória do que acabara de fazer. Enfiava-se no táxi, aterrava na cama, e na manhã seguinte que voltasse mais lixo para rejeitar, mas não naquele dia. Remexia papéis, abria e fechava o jornal, tamborilava no tampo da secretária, numa inquietação de quem, habituado à mecanização do trabalho, se via de repente a cogitar sobre o próprio ofício. “Odeio literatura”, soprou. Odiava o que fazia, detestava livros, ler, escritores, errara na profissão, cogitava que, em vez de telefonar para jornalistas e críticos literários a ameaçar por causa do “trabalho medíocre”, em vez de escrever panfletos contra o recurso à pontuação dos livros mediante recurso a estrelas, em vez de rejeitar noventa e nove ponto nove por cento dos manuscritos recebidos, poderia ter dado melhor uso ao curso de direito e à herança do pai, poderia ter lutado por causas justas, boas, poderia ter procriado, adoptado um menino africano, mas fora editor.

“Excelentíssimo director”, começava o editor, numa nota a remeter para suplemento cultural que o indispunha pela particular razão de raramente publicar recensões negativas. “A literatura hoje existente germinou numa latrina e é minha, nossa obrigação desinfectá-la.” Antes do ponto final, uma última frase: “A minha editora deixa de existir agora.” Passava das duas da manhã, a noite orvalhada convidava a fechar os olhos, e o editor, a morrer de sono, esticou-se no sofá, depois de rasgar a carta, as cartas todas. Era editor, seria sempre editor.

Algo resiste no sentido do centro

Querias as redenções mais rápidas para os teus pecados furtivos
a tua glória silenciosa ardendo por dentro dum peito
frio por fora, aberto às intempéries do real
ciclo orgânico-emocional dos dias, do tempo
sem a lava, sem um sinal exterior do lume, sem ti: mas estás,
algo resiste
no mesmo compasso onde esse algo desaparece e o paradoxo invoca as terras mais inférteis
aquelas onde o grão já plantado não cresce e as orações se tornam espiga
para nenhum pão, porque não as há
as mãos: o templo profanado já não guarda as antigas relíquias
o ouro índio roubado das areias, através das areias marcadas
no mapa e na cartografia fidedigna do corpo: assim se profanam
os templos, com a deslocação espacial da matéria sacra e a sombra
do mito sem esquina para dobrar: foi nos museus abertos
das 8 às 8 onde expuseram as nossas peças mais estimadas
onde turistas hereges se satisfazem com seus tamanhos e suas formas
excepto
nos feriados e na duração da noite, quando penso em ti e nos símbolos
resíduos abstractos do que antes fora religião local
agora credo e rosário conduzido pelos caminhos interiores
no sentido do centro
sempre do centro quando a janela se fecha e os pássaros já não bebem
da água benta das nossas fontes, dos nossos jardins onde os frutos:

Sim, antes havia.

agora nas mãos (apenas as primeiras) seguramos os poucos capitéis que salvámos, mas tornamo-nos mais turistas com os dias, com o tempo real aberto às intempéries, dentro do ciclo orgânico-emocional desta ausência (a nossa) e entramos nos museus como quem confunde o sagrado com o profano, os altares com os quadros e esquece a colheita, a horta esperando outras mãos, sempre as mesmas.

 

Da Vide


Luís Chacho, Vida mulata

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Luís Chacho
Vida mulata
ficção

Enfermaria 6, setembro de 2017, 42 páginas

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Beber sem pressa é poesia, palavras compostas dos outros pelas costuras de outros ainda. Sou das narrativas, quando muito, tensas. Aí, concedo, sou língua ressuscitada. Um espírito que se dessolidariza lateral à carnadura, desenhada esta por braços insuficientemente diurnos, para delinear uma sombra.