de «Cenas de uma vida conjugal»

Ceder ao peso do amor, lembrar ocasiões,
a conversa num feixe e o caso ainda
indestrutível de certas cores.
A crença: tão miserável se
agora puxar pela cabeça.

Regressa-se à casa de partida:
raro conseguir sair deste lugar sem
a transfiguração, a ida ao caixote
que pobre se impinge.

O amor ultrapassado:
por respiração entendo jogo viciado
e quando saio não reconheço
o ponto assente,
o até agora perdido.

De «Cenas de uma vida conjugal»

Aos ouvidos a reza, a partilha deste
momento com mãos atadas sobre a barriga.
A tua reflexão nocturna, decorando
aqueles que querem morrer neste dia.

Não são mais do que holofotes queimados os
vultos de nenhures que te fazem companhia.
Há dias com gosto, levadas de prazer
que se desfazem sobre o nó do corpo.

Desatento passeio pelos teus ombros,
medito nos claros limites do riso,
não acalmo a besta que agora
me cruza as mãos em despedida.

Tu, eles, nós: pronomes do acaso,
apodrecem com malícia no quintal.
O cesto vazio da minha vida para
onde te trago: já disseste tudo,
o nosso contrato quebrado.

De «Cenas de uma vida conjugal»

A noite num punhado de fábulas, 
amarelecida de prazer, curtida 
de fulgor e música decepada. 
Estamos soltos – e retomo a 
cabeça em minúsculo chocalho 
contra o tempo dos outros – 
com o som final em torno da garganta 
e o estremecimento ridículo do pé. 
A película quente da terra nos dentes, 
vou amanhecendo no andar. Obedecer 
aos gorgolejos sincopados do coração: 
estou longe da tua voz, finalmente.

 

de «Cenas de uma vida conjugal»

Andamos até ao centro do ruído,
ao círculo em que tudo se comove.
Não sei falar de outra coisa:
esta casa, vozes espantadas,
risos que bafejam mais vida sobre a
corrente daninha que nos amarra os pés.

Sentada no colo de ti mesma,
num canto remexendo cabelos,
nunca soubeste de tal encontro.
A conversa entretida com seu arrombo,
puxando varizes, convertendo noções,
eu a morder o menos possível numa
hora discreta para que chegues.

Mas a hora não avança nem resolve
e eu pensei que estávamos juntos.
Os meus sinais são teus papéis ilegíveis
deixados sobre a mesa, ardendo
fundos num prato sujo. A persiana
faz subir a luz: equação mirabolante.

de «Cenas de uma vida conjugal»

Primavera. Mas quem disse?
É esta a luz que de quando em
quando enterra o bico do lápis,
o erro inteiro que se desprende,
espuma escadeando em sala perdida.

O entardecer, entre outras coisas:
tomando calmamente o fim do mundo
num copo de cerveja morna.
A conversa sempre difícil,
palavras que olhadas cegam.

Nem no fim da madrugada, sentados na
praça escura de pombos adormecidos,
encontramos fim nalgum sentido.
Tão tristes que então somos,
há um ardor mas falta-nos a garganta.

Olhos devassados pelo vento, o riso de
tão farto descola-se-nos dos dedos,
e vencidos retomamos todos os
obstáculos imbecis da noite:
temos muito que fazer.