Não tenho nada pra te enviar

Não tenho nada pra te enviar.

Já é tarde e ainda não preparei
nem a roupa nem o sapato.
Já perdi o prazo de inscrição.
Estava no modo silencioso.
Deixei a planta morrer e fui à praia
pegar areia. Não aguei os pés.
Estava de luto e queria
ir à missa, ouvir a homilia dominical.
Rezar na romaria, sentir o cheiro
das velhas e misturá-los aos das velas.


Agora não dá mais. Sou protestante.
Da vertente neopentecostal brasileira.
Ou quase isso.
Agora não dá mais. Já é tarde e escuto Nina Simone.
Irei a Nairóbi, não serei turista. Serei algo de útil.
Irei até a esquina e direi bom dia ao seu Geraldo.
Darei a ele uma marmita com duas carnes,
arroz, feijão e duas guarnições.
O sorriso do seu Geraldo é mais forte que Xanax.

Não tenho como te responder agora. Desculpa. Não tenho
o dinheiro do estorno. Confesso: gastei comprando quibes
e pretzeis. Mas se quiser te faço um bolo de cenoura.
Enfim.

 

2.

Nesse momento, uso a aliança
na mão esquerda. No dedo anelar.
Gosto da imagem.

Agorinha mesmo, precisei respirar
 e às vezes não sei como isso é feito.
A mão esquerda me ajuda nessas horas.
Ela é mais lírica por observação.
Meu tato, decerto, é uma lixa,
e com o uso se desgasta.

O ar não tem tanto peso,
mas o espaço que ele ocupa
é dolorido de se atravessar.

 

3.

De qualquer forma,
o meu sartório tem apresentado falhas.
Mas a garantia não cobre mal uso.
          - me enfiei numa esfera helicoidal.
          Era de noite e não percebi. O vinho
          tem parte nisso, mas são detalhes. –

Certos aspectos do amor são mais cândidos
quando não são alardeados. Outros são fome.

Anunciação

Eu estava aqui
eu estava exatamente aqui

E te digo
te digo inúmeras vezes que
Eu estava aqui
exatamente

E a música da Tulipa Ruiz com o Jeneci
começa a tocar

mais uma vez
por inúmeras vezes
te digo.


2.

E se eu fosse um retrato?
Um quadro na parede a te observar?

Se eu observasse teu corpo permanecer
e teus olhos em mim

Tu fingirias um movimento
abririas a boca e (...)

 

3.

já é um novo carnaval
já é um novo eco
e novas gerações


4.

Tu buscas o impossível pretérito
e permeias todos os mares.

 

5.

Pregam-me na parede
com pregos sinestésicos:

Eu sou o delta que
carrega calamares

Mar adentro.

 

6.

Ó ilhas perenes
e seres fusiformes

Organismos metamórficos
que penetram e
fecundam
o tal tempo híbrido

Sejam vós os espias
a desfrutar do sal desta terra
e a dominar as máquinas
deste universo
Sejam vós a desmaiar os sentidos
e em suspensão
amalgamar vossas raízes
para que reverberem
o céu ensaístico que
amanhece as ruas oportunas.


7.

De dentro das entranhas carnavalescas
as árvores abanam suas fuças;

Daqui a 2 ou 3 éons
as pedras aprenderão a falar
e não haverá ser que
reproduza os diálogos desta
que será uma língua arcaica-oral.


8.

Eu masturbo minha existência
e descubro sozinho que quando
uma porta é atravessada
ela deixa de existir.

 

9.

Mas, me diga

o que é o infinito quando comparado a nós?

Sobre a fisgada que a gente sente no peito ao ver o museu da nossa própria vida

Teus olhos lembram-me o natal
e todos estes teus dedos
de pontas
finas
compõem os traços
dos esquecimentos


2.
Várias linhas regulares
têm brotado em mim
e nelas reconheço tua terra

E de tua poeira
faço cântaros
que cheiram
a genitálias

E de tais genitálias
faço amores


3.
Teu solo é ígneo e fareja
o sangue no topo da carne seca

Epítome

Ela tem a idade das flores
e o vermelho dos dias
e o azul dos ventos

e todas as esquinas param
quando eu a vejo.

Nunca reconheci as distâncias
entre os tempos, nem fui ao mar
depois que minha consciência
se firmou sem as rodinhas;

Mas tenho praticado com afinco
a observação dos postes e suas luzes,
do amor das árvores com os fios de energia,
da luxúria de cada janela e da interminável
solidão das construções no horizonte
da cidade.

Tenho corrido com esses pés de pato
através deste lamaçal que é o agora.

Num instante, ainda a chegar,
a abrangência das portas assumirá
um caráter mítico
e tudo que tenho dito fará sentido
– e, então, será esquecido.

 

[ver perfil de Victor Prado]

ECDISE

1. 

em milagres faria intervenções

transformaria as perdas

em pedras palpáveis e membros fantasmas

em ambiguidades 

e logo cada caminho seria recrutado por determinismos

na época das moscas e aranhas

de observadores são os muros e os matos

de barulhos embrulhados permanece o ar

cada criança corre sua vida 

e se apressa no desmanchar do casulo

em desfazer seu ninho

no deslembrar de seu nicho

mas

os lobos guardam

caminham calmos

os lobos sabem empacotar vontades

2.

montanhas não existem por aqui

os rios cortam mais que lâminas

tu não és peixe nem anfíbio nem réptil

e esse teu coração pulsa nas mãos

pula

teu coração pula 

dele saem regatos por teu pulso

o centro de tudo é consequência

por isso generalizações se formam

3.

os quero-queros não representam anseios

mas insistem

não me representam

não insisto

na pressa os pés

e o leite

choramos a dor e o derramado 

no chão as coisas estão no mesmo plano 

mas existem coisas que não são coisas

assim como aqueles regatos insistem em sair por teu pulso

as horas veiam a presença

e embrulham o dia com jornais antigos

cozinham a existência em etileno

4. 

na minha continuidade as pausas são necessárias

pra remontar céus azuis de dias regulares

pra que o fio da meada não me perca

nas presas achamos pares

principalmente quando elas retiram suas fantasias.