Hoje é dia 31 de julho

Céus. Nada mais que um vácuo apesar da individual conjuntura – não desvenda-se nada além de uma camada de seda branca que cobre todas as relações e o espaço entre minhas mãos e as palavras brotando; uma música, poderíamos chamar. Que por entre os poros ecoa. Um sussurro na sala. Será que uma certa escritora também se preocupa em contar histórias, como eu? Se algum dia, o que é improvável, ela disse consigo mesma que estaria disposta a perder o tempo e entrar numa gandaia ficcional? Ele vai às ruas, acende um cigarro acreditando em espíritos, toma um ônibus para o litoral, acredita na revolução and so on. Ou alguém perdido no outro lado do continente que nem se sabe se está vivo, mas de repente recebe essa mensagem de voz, tarde, de qualquer modo perguntando o que você está fazendo, sem nenhuma pretenção ou intenção-de. Mas tarde de mais, pensam os últimos pregadores de praças públicas, pois que tipos de frutos seriam possíveis hoje derivados de sermões? O fim só pode estar quase. 

Recebi a resposta de um amigo que fazia anos, falando de uma maconha disponível. Não sei quando chegou a minha mensagem, já é julho, e muito menos quando foi enviada, pois pode ter havido um delay de algumas semanas – que por sua vez trouxeram um delay de quase meio ano considerando o tempo de uma pessoa que fuma e lê Maiakóvski. Pensei que era engano, a mensagem, e talvez realmente o fora, pois ele viu na possível caixa de entrada o meu nome, separando para em algum instante de sua vida responder qualquer coisa, mas a outra pessoa da qual ele gostaria de ver e ficar conversando-de-fato e talvez namorar depois, era outra pessoa. Uma linguagem calma de suas dedadas no teclado compatíveis com quem sempre foi. A sua casa tinha muitos vidros, enquanto a minha, apenas concreto e breves janelas – cozinha, lavanderia, sala, quarto, quarto. Ele como que teve um espanto. 

Não havia nexo meu corpo aparecer depois de corridos anos. Mas eis-me ali, fumando até semana passada depois de terminar a tradução de cinco contratos normativos de uma multinacional voltada para soluções do mercado. No futuro estarão terminados, é o que penso enquanto fumo e ouço Satie e escrevo no morro; os detalhes ao meu entorno tornam o enredo impossível. Estava sem camiseta concertando algum utensílio quebrado, rodava um disco de minimal e parecia um machão quando cheguei – ele de costas e de cócoras, quando se virou teve o espanto calmo de quem fuma. As perguntas básicas da vida. O instinto silencioso da retina na outra, cortada pelo fósforo riscando incendiado até a ponta do tabaco preso nos seus lábios. Que embaraço aquele corpo por trás da fumaça – flashes da vida mesquinha se nos passaram em vãos da memória. Eu chegaria em casa e talvez colocaria todas as fotos, cadernos e roupas num cesto de latão pegando fogo. 

Já se queimou toda a erva restante em oposição ao calendário, –  escrevi no diário quando acabou o verde – dia trinta e um – aluguel e tradução – resistiremos a mais essa, seres inúteis. 

Eu necessitei de uma pergunta, algum afago linguístico entre nosso campo de atração – os poucos centímetros por onde se nos abria uma utopia, uma mínima piada que compartilhávamos. 

Me ofereceu um cigarro e fumamos gastando palavras no sofá preto. De que revoluções precisávamos?


Animais políticos numa sexta-feira à tarde: Algumas notas

1.    Há uns meses que ando a ler o jornal sem pagar. Ao fim do dia o rapaz na estação de comboio simplesmente não quer saber. Depois das quatro da tarde os jornais são apenas mais uma das tarefas que o esperam antes de fechar o estabelecimento, que, como todos os cafés de Inglaterra, fecha cedo, deixando a estação aos cães, aos últimos passageiros do dia e à indolência de carruagens que se alongam por estações cada vez mais desertas. É na fantasmagoria das estações de comboio deste país que melhor se entende o amor que une Inglaterra a um dos géneros literários nacionais, os romances policiais.

2.     O verão em Inglaterra pode ser mais ou menos insuportável, mas sobretudo mais ou menos inexistente. A meteorologia entra no mais completo descontrolo, como um barómetro avariado. A ilha simplesmente não foi desenhada para suportar o calor, são precisos vários dias de chuva para que se produza um dia quente, a que imediatamente sucede, claro, mais água. Foi Karl Ove Knausgaard quem escreveu, no primeiro volume de A Minha Luta, que os humores humanos são como a meteorologia, estão lá sempre, não é possível livrarmo-nos deles, a que se devia acrescentar que há uma ligação indelével entre humor e meteorologia, que quanto mais solar ou mais cinzento o tempo, assim de vez em quando o temperamento.  

3.     O humor é a atmosfera da empatia. Actos básicos de gentileza serão repartidos pelos dias segundo as flutuações desta moeda. Virtude (palavra que talvez só exista em sentido moral) é controlar o humor. Ausência de controlo resulta ou em injustiça ou em poesia ao género da do neo-romantismo, ao gosto de um Feliciano Castilho ou Bulhão Pato. Sabiam-no os estóicos e os epicuristas. Dois sistemas filosóficos, de resto, para os quais nunca tive muita paciência, sobretudo por me parecer que estão desenhados para contradizer os impulsos vitais mais básicos, que alguma coisa neles traduz avant la lettre a lógica de pecado e punição do catolicismo, e mesmo que isto não seja certo, T.S. Eliot tinha razão quando escreveu que o passado é constantemente alterado pelo presente, a nossa leitura dele pelo menos. Assim a minha embirração com os estóicos, olhando para eles depois de Cristo. Manter o nosso humor sobre controlo, sim, mas até isso com moderação.

4.     O moderado rapaz da banca do jornal, no entanto, tem um trabalho difícil e de um modo geral pouco apreciado. Por exemplo, não é raro trabalhar turnos invulgarmente longos, desde as seis da manhã até às seis tarde. Não é fácil aturar os transeuntes desta estação, dos adolescentes de uniforme aos ocasionais skinheads da English Defense League, consumidores de cerveja às 7 da manhã. O rapaz da banca de jornais, no entanto, parecendo que não, a sua vai tornar-se para mim uma dessas presenças silenciosas com quem se troca poucas palavras de cada vez, e que no entanto se sabe que, quando olharmos para trás, essa mesma presença há-de voltar como uma espécie de símbolo de toda uma época da nossa vida. Afinal, ele tem estado aqui desde o primeiro dia.

5.     O rapaz da banca do jornal reparte pequenos actos de gentileza pelos dias, de que deixar os passageiros ler os jornais que sobram ao fim do dia talvez seja apenas uma manifestação ínfima. A rotina das cidades condensa isto: há estranhos que se nos vão tornando cada vez mais familiares. Quando um de nós falhar este breve encontro diário, o outro notará essa ausência. O que permanecer há-de atentar na instabilidade introduzida pela ausência do outro.

6.     O futuro são as pessoas que comparecem às suas rotinas diárias. Nem tudo numa rotina é anestesia da repetição. Tudo o que se repete pode deixar-nos em guarda para a repetição excessiva. A banalidade de alguns gestos prepara o dia seguinte, traz o capítulo seguinte. O tecido das sociedades em que vivemos, o nosso conhecimento dos outros, assentam no reconhecimento prévio desse guião. A maior parte dos trabalhos que nos rodeiam são mais ou menos invisíveis.

7.     Parte da minha rotina implica esta estação de comboio e, assim, encarar mais ou menos diariamente com as primeiras páginas dos tabloids britânicos, o que garante que raramente me falta uma dose diária de indignação. Todos os jornais na Grã-Bretanha, do The Guardian ao Daily Mirror são abertamente facciosos.

8.     Talvez nada tenha clarificado este ponto para lá de qualquer dúvida como o período que antecedeu o referendo que ditou a vitória do Leave. As intenções de voto podiam ser facilmente previstas pelo jornal debaixo do braço. Boa parte do que se confunde ou não se confunde com jornalismo neste país serviu para ditar que esta votação não foi produto de uma reflexão sobre factos, mas sobre emoções, com a raiva e o descontentamento a explicar que se pudessem encontrar nas caixas de comentários de jornais pérolas como: “I’m voting leave: Muslims out!” Ou o meu prazer culpado de ler as crónicas da Marina Hyde no The Guardian, com a certeza de que aquela que esta colunista dedica ao último dia de Cameron no Parlamento foi escrita para mim, nemesis por outra manhã numa página de Orwell.

9.     Não que não haja margens para a surpresa, como encarar com a primeira página do Daily Mirror no dia anterior ao referendo, e ver a versão mais populista de um slogan a favor do Remain que nenhum partido de esquerda neste país se atreveu a cifrar: for your jobs, your NHS, for your children. Quoque tu, Daily Mirror?

10.  Nada me deixou entender tão amplamente as reservas que Platão mantém em relação aos poetas na República como a actuação dos políticos pro-Brexit nesta campanha, no sentido em que bons autores de ficção, poetas do calibre de um Farage e de um Boris Johnson, serão sempre bons a manipular as emoções dos cidadãos. É o grande ponto fraco da democracia. Uma explicação ética dos factos, segundo Aristóteles, bastaria para compensar esta limitação. Esta campanha demonstrou que basta as falsas opiniões circularem livremente, sem um contraditório que as prenda aos factos, para um milénio de fé na capacidade dos humanos para o bem ruir como um castelo de cartas. Penso que não deve haver teoria moral que sobreviva a um descontentamento podre em que um populista possa tocar com um dedo. Os mais pessimistas entretém comparações com a Europa dos anos 30.  

11.  Há um elo entre a banalização de tudo e a hegemonia da opinião sem factos que explica a ascensão (e esperamos que a queda) de um Donald Trump, de uma Marine Le Pen, de um Boris Johnson ou de um Nigel Farage. A opinião e o oportunismo dependem ambas de curtos intervalos de tempo e servem para alimentar o barulho que para os mais manipuláveis (ou os mais dispostos a serem manipulados) limita todo e qualquer espaço que pudesse ser dedicado a uma séria reflexão. A falta de tempo que nos instrumentaliza em casa e no trabalho é também parte deste problema. Quanto menos tempo mais raiva e menos reflexão, mais expostos nos tornamos ao populismo e ao oportunismo.

12.  É possível entender o descontentamento que a União Europeia provoca e não é algo que vem de hoje. Pode-se invocar a crise dos refugiados, ou recuando um pouco mais, a fraca resposta à ocupação da Crimeia, num país que afinal se manifestou pro-UE, ou a austeridade, ou muito antes disso, invocar lugares agora mais distantes, algures na Sérvia e na Jugoslávia. Surpreendentemente, nenhum destes argumentos ditou o resultado desta campanha, na qual de resto não se conduziu uma reflexão atenta acerca dos muitos problemas da UE hoje, uma que explicasse para lá de qualquer dúvida porque é que o caminho social e político aberto pelo Brexit seria tão mais preferível (sabemos agora que se ignora mais ou menos totalmente o que é este caminho ao certo). Onde as sondagens se viraram indecisamente para o não foi quando a emigração se tornou uma questão no referendo e, ligado a esta, o falso argumento da soberania. Mas a Inglaterra mantém-se um país soberano, com um parlamento com o poder de chumbar ou aprovar leis, e, até ver, o poder de controlar a sua emigração era mais forte enquanto estado-membro. É bastante improvável que a Inglaterra mantenha acesso ao mercado livre da União Europeia sem aceitar a livre circulação de pessoas. O último encontro entre May e Hollande parece confirmar esta ideia. Aí a grande mentira do Leave. Quando ouvimos Marine Le Pen em França descrever isto como uma vitória da democracia (uma vitória de 52% aliena apenas 48% da população de um país), sabemos que o populismo bateu tudo o resto aos pontos. 

13.  A banalização de tudo, que está ligada a esse furor da opinião que não questiona os factos, tem outro shortcoming, talvez mais preocupante do que os enumerados acima: é que arrasta a nossa empatia pela lama, torna-nos menos dispostos à gentileza sem a qual o mundo seguirá sendo a selva onde os fascistas de hoje, alguém como Trump, Le Pen, ou Farage, serão os últimos guardas da fronteira para lá da qual jaz tudo o que nos é alheio e que por isso deve ser exterminado ou deixado para morrer nos muros. É o movimento de nos virarmos para dentro, de irmos sendo cada vez menos cosmopolitas, que deixa adivinhar o fantasma do nacionalismo a pairar sobre a bandeira do patriotismo. Os patriotas que orquestraram o Brexit, com falsas promessas de mais dinheiro para o NHS, de resto, reconheceram todos a necessidade de correr de volta ao lar, abandonando a cena apressadamente  

14.  Na sexta-feira, 15 de Julho, encaminhando-me para a banca de jornais, paro e atento na capa de um dos tabloids. É tão conspícuo porque a imagem ocupa a capa toda. A princípio parece ser a estreia do filme da semana, um qualquer melodrama hollywoodesco, mas é uma fotografia tirada no passeio em Nice, na noite anterior, que atinge os transeuntes sem aviso. Vê-se um jovem casal estirado no pavimento, só um deles vivo. Uma imagem tirada de um pesadelo atirada para a banalidade sórdida de fazer vender tantos jornais quanto possível.

15.  Os últimos passageiros abrandam por instantes e seguem na indolência vagamente contente de sexta-feira à tarde para os vagões que os levarão às suas casas. Levinas escreveu, algures em Ética e Infinito: Entendo a responsabilidade como responsabilidade por outrem, portanto, como responsabilidade por aquilo que não fui eu que fiz , ou não me diz respeito; ou que precisamente me diz respeito, é por mim abordado como rosto.

 

Oxford, 19 de Julho de 2016

Algumas notas sobre Eurípides, bofetadas, e cultura democrática

Teatro de Dioniso, Acrópole de Atenas, onde Eurípides encenou várias tragédias. 

Teatro de Dioniso, Acrópole de Atenas, onde Eurípides encenou várias tragédias. 

 

Em 416 a.C. em Atenas, durante a guerra do Peloponeso, Tucídides conta, na sua crónica da guerra, que os governantes dos atenienses cometeram um acto que hoje seria descrito como um crime de guerra. Quando a pequena ilha de Melos se recusou a tomar o partido dos atenienses contra os espartanos, Atenas cercou a ilha e quando os habitantes finalmente sucumbiram ao cerco (durante o Inverno), os atenienses chacinaram todos os homens que conseguiram capturar e as mulheres e crianças foram vendidas como escravas. Quinhentos colonos atenienses foram enviados para a ilha. Em 415 a.C. a peça que o dramaturgo ateniense Eurípides levou a cena num dos principais festivais da cidade, as Dionisíacas, com o governo da cidade a assistir lado a lado com o resto dos cidadãos, intitulava-se As Troianas. As Troianas é uma peça sobre o que espera (futuro não é o termo) as mulheres e crianças de Tróia depois do saque da cidade. Estudiosos de drama grego gostam da falar desta peça quando se pensa em tragédia como arte politicamente comprometida. O que esta expressão designa é o jogo entre o contexto da peça e o contexto da cidade (apenas um exemplo sobrevive em que a alusão é directa, Os Persas Ésquilo). A história do cerco de Tróia tem em comum com Melos coisas suficientes para não termos dúvidas acerca do que Eurípides estava a tentar fazer. Ambas as cidades caem depois de um cerco, os homens são chacinados, as mulheres e crianças ficam à mercê do exército agressor.

Quem alguma vez se sentou para assistir a uma peça de Eurípides conhece bem a sensação que Anne Carson descreve nos prólogos de Grief Lessons, um livro que compila quatro traduções de tragédias de Eurípides (Hércules, Hécuba, Fedra, Alceste): há algo de intensamente desagradável acerca de Eurípides. Quem era Eurípides? Anne Carson diz-nos: The best short answer I’ve found to this is an essay by B. M. W. Knox, who says of Euripides what the Corinthians (in Thucydides) say of the Athenians, “that he was born never to live in peace with himself and to prevent the rest of mankind of doing so.”

As tragédias que dele se conservam obrigam as pessoas a caminhar para fora delas mesmas, a reflectirem sobre como as coisas mais banais que as rodeiam, os pensamentos e os sentimentos dos quais não podemos escapar, coisas tão quotidianas como família, amor, paixões, curiosidade, não estão sob o nosso controlo, nunca vão estar sob o nosso controlo, e podem ainda ferir-nos de morte (tratando-se de Eurípides, na maior parte das vezes literalmente). Se temos a ideia de que os dramas da tragédia grega são sobre decisões entre alternativas que na verdade não podem ser escolhidas, porque o resultado em qualquer cenário é a catástrofe, talvez nenhum tragediógrafo tenha sido tão eficaz a dramatizar essas decisões a partir das perspectivas mais íntimas das suas personagens como Eurípides (cada peça como uma observação da força irresistível dos sentimentos humanos).

Os dramas das personagens mais fortes de Eurípides emergem a partir do lado mais obscuro da consciência (talvez na linha que confina com o que em nós existe de, mais do que irracional, inexplicável). O que elas sentem, o que lhes passa pela cabeça, nas mãos de um dramaturgo um pouco mais prudente ou um pouco mais cobarde nunca seria articulado, nunca encontraria uma totalidade de expressão. Em Eurípides é perseguido até às últimas consequências. Nós que sabemos o que estamos a ver, não queremos acreditar. Sentámo-nos aqui apenas como espectadores e entendemos que observação inocente é um conceito alheio a Eurípides. Os espectadores de Eurípides não têm a opção de se manterem como espectadores inocentes. Recorrentemente, talvez na totalidade das peças de Eurípides, estas desenrolam-se em redor de um evento ou de um segredo a que uma personagem ou grupo de personagens e, consequentemente, a audiência, têm acesso, informação vedada a outros participantes do enredo. Jasão suspeita de Medeia mas somos nós que observamos os seus planos e que sabemos o que vai acontecer. Fedra ama Hipólito, mas ninguém pode saber. Hércules julga que teve um regresso tranquilo a casa. Hécuba confia em Polimestor. Agora que fazemos parte do círculo de Eurípides, não o podemos evitar, da próxima vez que, da banalidade das nossas rotinas, um pensamento tornar a ordem impossível ou intolerável, até entendermos como é, passar para o lado de fora de nós mesmos, sabemos que Eurípides nos tocou com o seu insuportável dedo no meio do peito.

            Que Eurípides tenha podido levar As Troianas a cena naquele ano, entre aquele grupo particular de atenienses (não é difícil imaginar que muitos deles tenham servido como soldados no cerco de Melos), é uma espécie de epítome, no fim da época de ouro do teatro ateniense (e o teatro é a forma de arte que os atenienses inventaram que se tornou o símbolo da época clássica) do laço inextricável por que, em Atenas durante aquele tempo, arte e democracia (a cultura ateniense talvez não seja mais do que a soma destes dois elementos) se encontravam ligadas. Os atenienses podiam dizer toda a arte é política, no sentido muito particular em que era uma expressão da sua vida cívica. Mas acredito que nenhum dos tragediógrafos que nos chegaram tenha entendido tão bem como Eurípides que sim, toda a arte é e deve ser política, mas com um grão de sal muito particular, toda a arte é e deve ser política mas apenas no sentido singular em que cria para os indivíduos um espaço para se verem sozinhos com a sua própria consciência, e só depois disso consigo próprios enquanto parte de um corpo de cidadãos.

Portugal teve efemeramente, até há uns dias, um ministro da cultura que se ofereceu para distribuir bofetadas por dois cronistas do principal jornal diário do país, ambos responsáveis por artigos de opinião em que criticavam a atuação do dito ministro. Portugal é um país com um vocabulário profundamente rico para designar o acto de esbofetear: lambada, lamparina, bofetada, estalada, estalo, sopapo, tabefe; e as perífrases: ir à cara, apanhar na tromba, etc. Esta riqueza de vocabulário trai talvez o quanto a prática de esbofetear entre nós tradicionalmente se confundiu com didática. O que pode significar que ao ex-ministro pode bem ter sido atribuída a pasta errada, um lamentável erro de casting ao nível da gestão dos recursos humanos, João Soares, o educador, apto a corrigir o erro de dois cronistas com uma candura de autoridade paternal. O que me leva de volta a Eurípides e ao laço que existe, ou deve existir, entre cultura e democracia. No final da guerra do Peloponeso, com o fim da hegemonia ateniense, o teatro como os atenienses da época clássica o tinham pensado sofre alterações temáticas radicais e caminha lentamente, tanto quanto sabemos (porque não muito sobrevive) para algo mais próximo do que hoje coincidiria com os temas que formam os enredos de sitcoms ou telenovelas. Os estudiosos de tragédia grega apontam todos as mesmas características: os sucessores de Ésquilo, Sófocles e Eurípides estão interessados em temas melodramáticos, comédias de enganos, paródias de costumes. Com a dissolução da polis o teatro vira-se para temas íntimos e em alguns casos superficiais, o que de alguma forma antecipa o mundo do teatro romano. Os estudiosos dizem-nos, basta pensar na forma como o espaço do teatro é concebido em Roma: fechado, com os lugares sentados organizados por classes, o género que parece ter sido mais popular é a comédia (tragédias de Séneca à parte, tudo menos teatrais). O teatro romano distanciou-se lentamente das funções cívicas que tinha em Atenas. As suas novas funções são talvez melhor descritas pela expressão “pão e circo.” Não que tudo o que é pão e circo deva ser subestimado (os génios não existem sem obras menores, e apreciaríamos Eurípides e Dostoievsky bastante menos).

 

Num texto recentemente publicado na revista First Things[1], a filósofa americana Zena Hitz argumenta em favor de uma velha questão de um ângulo que me causa uma certa inquietação. Ela argumenta em favor das humanidades como um espaço de reflexão, mas reflexão privada. Quando a cidadania monopoliza o indivíduo, as humanidades deveriam servir o objectivo de criar, mais do que tudo, um espaço de meditação retirado do mundo. Hitz propõe que isto seria uma forma de escapar à presente instrumentalização das humanidades como mera ferramenta da democracia, revertendo-as para espaços de afirmação da nossa individualidade. É difícil não simpatizar com o argumento, sobretudo face à extrema mediatização de tudo, não só da política (afinal um ministro é mais autêntico e está mais próximo das massas se não puder poupar os cidadãos aos seus espectaculares desabafos, sem filtro, nas redes sociais) mas das nossas vidas (nós somos ao mesmo tempo gregos e romanos), mas talvez a melhor forma de exercer a nossa cidadania não ande longe do espírito com que Eurípides levou a cena As Troianas. Cidadania não é cidadania se monopolizar os indivíduos para se afirmar, não anula as suas divergências ou idiossincrasias, é idealmente um outro passo na direcção destas. A visão de Eurípides em As Troianas não se confunde com uma mera condenação dos actos dos seus concidadãos em Melos (não seria muito mais do que circo se fosse apenas isso), é um doloroso exercício de tomada de consciência colectiva, de indivíduos que finda a peça são deixados sozinhos com o peso das suas acções, que caminham do colectivo para um exame da própria consciência. O mundo de Atenas permitiu que homens tão díspares como Platão ou Aristóteles tivessem pensado o que seria a cidade ideal, a forma de governo ideal. Platão chamou à democracia o menor dos males. Contemporâneo de Platão e Aristóteles é o altamente individualista Diógenes, que defendia a autossuficiência dos indivíduos, o seu afastamento da polis em favor de uma vida intensamente privada. Na cidade (e esta não é a cidade ideal) todas estas ideias devem co-existir e competir mutuamente. O pão e circo que nos divertiu durante a semana passada não se confunde com o espírito dos acontecimentos que estão na génese da tragédia de Eurípides. O Ministério da Cultura ideal abster-se-á de oferecer bordoadas a qualquer pessoa ou coisa que desafie a sua circunspecta autoridade de entidade estatal (que não deve ser redonda e/ou patriarcal), sob pena de se converter num aborrecido Ministério da Propaganda. O Ministério da Cultura ideal protegerá não só a cultura da nação, mas incentivará toda e qualquer acção que se apresente no espírito de As Troianas. Subsequentemente, quaisquer tendências de ministros para oferecer lambadas poderá ser substituída por uma reflexão sobre a relação entre cultura e democracia.


[1] http://www.firstthings.com/web-exclusives/2016/04/freedom-and-intellectual-life

*Na Enfermaria 6 dedicámos outro texto a este assunto. Pode ser lido aqui. Sobre o mundo do teatro grego e romano:

 Ancient Greece: The Greatest Show on Earth de Michael Scott.

BBC In our Time: Cultural Imperialism de Melvyn Bragg com Linda Colley, Phillip Dodd e Mary Beard.

BBC In our Time: Tragedy de Melvyn Bragg com George Steiner e Catherine Belsey.

BBC In our Time: Comedy in Ancient Greek Theatre, Melvyn Bragg com Paul Cartledge, Edith Hall e Nick Lowe.

Romanos e Americanos. A walk in Rome in the Days of Trump de Adam Gopnik.

Alguns livros:

The History of the Peloponnesian War de Tucídides.

The Ancient Greeks: Ten Ways They Shaped the Modern World de Edith Hall

The Birth of Politics: Eight Greek and Roman Political Ideas and Why They Matter de Melissa Lane

Shame and Necessity de Bernard Williams

Roma, coliseu. Pão e circo (o que envolveu, não só mas também, cristãos dados aos leões como petisco). 

Roma, coliseu. Pão e circo (o que envolveu, não só mas também, cristãos dados aos leões como petisco). 

Ao céu não chega quem quer

A comida não é poesia.

A guerra não é um vulcão.

Saturno, o gigante que comeu o filho, continua vivo. É um príncipe ditador, a viver num palácio de ouro construído sobre um lençol de petróleo. É um burocrata, eleito pela mão invisível dos sistemas, o financeiro e o da passividade. Também pode ser um homem do futebol, comprador de carne que a repetição diária transformará em jogadas dentro da área, bem ou mal finalizadas.

O planeta é um esqueleto. Culpa de Saturno, que se esconde em qualquer lado.

O homem é uma vaca. Por vezes, um cão. Mas a fingir, claro. Porque a lealdade é burocrática. E a burocracia é melancólica. Os animais, ao contrário do que ensinam os manuais que ensinam a viver, não se domesticam. Os animais só desejam fugir, comer, fugir, comer outra vez. Os animais unem-se, formam um grupo, isso é um comportamento social, dizem os livros. E correm todos na mesma direção. Panças, olhos, baba, cabelos, pele encardida de pó e de medo. Não é lava, mas queima, aquilo que sai dos olhos das espingardas dos que correm atrás deles.

Esses animais são as pessoas que fogem na televisão. Ser refugiado é o estado permanente de cada um dentro de si próprio. Os que a televisão mostra à hora do almoço, são apenas imitadores, como explicam os livros. Quando todos se movem na mesma direção, isso é imitação. Homens e vacas.

As ordens dos polícias, atiradas pelos megafones, caem como pedregulhos nas suas cabeças, ou como foices a rasgar os lenços e a pasta de cabelo. Palavras que põem sal no cérebro. Língua estrangeira contra línguas gretadas. A guerra é o medo, dos que morrem e dos matam com medo de morrer.

Cronos, o soberano implacável, está sentado a olhar para isto, à espera que o tempo não passe.

A comida não é como a erva. Esta cresce na terra, sobe mas não chega ao céu. No sentido inverso, a comida cai do céu. Para estas pessoas, ela cai sempre do céu. Os aviões, que bem poderiam ser amigos ou primos afastados, acenam no céu de Damasco, para as pessoas sentadas à mesa da esplanada do café no bairro, a fumar o cachimbo de água. Ou alguém dirá que foi assim que as coisas se passaram. Na verdade, os aviões passaram em rotas oblíquas, largaram os fardos e fugiram. Fardos geométricos, bem atados com fitas de nylon. O nylon demora 650 anos a degradar-se na terra. Cada fardo pesa entre 550 e 850 quilos. Dois fardos caíram em cima de uma casa. Morreu uma mulher e a sua filha pequena. Juntas, somavam 48 anos de vida. Morreram esmagadas  debaixo de cobertores, trigo e equipamentos para as pessoas se protegerem do frio. Os jornais reproduziam esses números rigorosos, citando o comunicado dos donos dos aviões.

Os aviões compreendem as regras, mas por vezes o vento não obedece.

Onze horas da manhã, na estação. Os polícias húngaros imitam os aviões. Um deles lança a comida em arco, por cima das cabeças dos bichos, que se empurram, escorreg resfolgam. Saquinhos de plástico, fechados com um nó simples, atirados em arco, com um movimento suave. Os bichos, que antes se explicavam aos jornalistas, deixaram de repente de querer saber do inglês e empurram-se na língua própria. Os braços são rápidos, o saco escorrega das mãos de um, cai nas patas de outro, um puxão e rasga-se. Qualquer coisa se espalha e desaparece no chão pisado pela manada. Vem outro logo a seguir, lançado no mesmo arco elegante. O dedo abre-se no momento certo e liberta o saco com qualquer coisa lá dentro. Inicia uma ascensão curta e rápida que o faz descer na linha decidida pela gravidade.

Um dos bichos avança na direção de outro saco, ainda por lançar, pendurado na mão de um polícia, como se fosse um coelho morto pendurado pelas patas traseiras, como o corpo esticado na vertical. Sangue a pingar nas botas do caçador. Com a mão livre, o polícia aponta aos olhos desse animal afoito. Este recua e aproxima-se do centro da manada, com alguns passos calculados para trás, sem desviar os olhos da mão enluvada do polícia, de onde sairá o saco, depois de um movimento pendular, perfeito. O homem calcula o sítio exato onde irá cair o saco, há um computador em cada cérebro que serve para isso mesmo. Quando o plástico inicia a descida, o corpo está esticado para trás, os braços levantados, as mãos abertas com todos os dedos. Há corpos a mais, todos esticados. Imitação, portanto. Comportamento social desencadeado por um estímulo externo à manada – poderia ser dito nos livros. Os olhos dos polícias seguem as mãos esticadas. Dura um segundo, mas é uma imagem inesquecível. As televisões vão mostrar aquilo ao mundo.

Nessa noite, ou melhor, quando for noite no outro lado do mundo, num apartamento em Yorkville, o bairro do Upper East Side, em Manathan, uma mulher alta e magra, com feições ibéricas, estará a ver as imagens sem som, deitada no sofá, depois de ter mandado embora o rapaz com quem acabou de fazer sexo. Terapêutico, dirá depois às amigas. Para uma cura de alma. Refugiado é um estado de cada um dentro de si.

Ao céu não chega quem quer. O saco está a descer. Ali, naquela estação, com os comboios parados, há homens a querer levar a comida que conseguir agarrar para as suas mulheres. Há mulheres com a certeza de a conseguirem alcançar para os seus filhos. E há filhos de pais afogados na travessia do dia anterior que a querem só para si.

Quero outra vez um dia de Verão

Quero outra vez um dia de Verão. Entenda-se que não peço um dia de sol, mas sim que quero um dia de Verão.

Nos dias de Verão é mais fácil escrever: tudo é mais luminoso e tem mais vida. Podemos falar de uma cadeira de vime no alpendre e de uma almofada fofa no assento. Verde com riscas laranjas e contornos azuis. Assim, exagerada de cor. São três da tarde e o sol bate levemente por sobre o caramanchão que me dá sombra. Uma estrutura simples coberta pelo maracujaleiro em flor. Cheira! E como cheira. Três da tarde é a hora dos gatos e dos segredos. Já é insuportavelmente tarde para o almoço dum dia comum e infinitamente longe de uma hora boa para o chá. É uma hora que não existe. Na casa alguém dorme a sesta num dos quartos com as quatro paredes altas. Os tectos finamente decorados a estuque são como antigos mobiles ou clepsidras que nos fazem adormecer. Contando que nos viremos algumas vezes na cama. Podia estar a escrever, agora que estou no jardim, sentado numa cadeira de vime com uma almofada colorida por assento. Enquanto, prefiro pensar numa sesta não demasiado tranquila no quarto do fundo. O quarto do fundo é grande e branco e tem um tecto como um clepsidra como os outros quartos da casa. Mas não é isso que me atrai. Numa proporção certa a cama enfrenta a janela cuja vista se joga sobre a cidade. Continua depois no mar. Bastaria agora que me levantasse, que pisasse com os pés nús o chão morno de cantaria. Em jeito manso subiria as escadas para encontrar num instante a porta envidraçada da biblioteca. Agora caminhar no longo corredor dum silêncio impossível, feito de velha madeira rangente. A mão poisada sobre a maçaneta, rodando-a num gesto de pulso. De seguida fecho a porta e corro também as cortinas. Às três da tarde todas as luzes devem ser a meia luz. O corpo descansado sobre a cama. O tecto em clepsidra e as paredes altas e brancas e o sol por entre as cortinas leves. Meia-luz com a alma a meio-gás como se meio adormecida. E agora estou sentado na cadeira do jardim a pensar que poderia estar deitado na cama do quarto do fundo. Aí imaginaria o turpor das quatro da tarde, quando nem por um instante houvesse silêncios. As crianças a descer velozmente as escadas, aos tropeções ligeiros; o jardim muito cheio; alguém a por a mesa do lanche. E tudo isto como um preparar lento do funeral duma tarde de verão que se fecha com o ritual do chá servido quente pelas cinco.

Hoje Outubro quase vira Outono. Há ainda resistências do sol e sobretudo da luz. Agora na janela frente à estação de comboios felizes e também velozes penso- no corpo sentado na cadeira no jardim, pensando no corpo deitado na cama do quarto, imaginando a agitação que virá para preparar o final de mais uma coisa que começa. Onde estarei eu pelo mês de Agosto?