Paisagens relacionais – comentário sobre três poéticas de 2017 (Câmera lenta, Ar livre e “Aproxime-se e me aborde”)

mapas e miradas

Antes da cidade asteca Tenochtitlán ser de fato invadida e saqueada pelo Estado espanhol, ela fora previamente fundada no papel, como Nova Hispania. Em brevíssimo tempo, Hernán Cortez, um escritor muito prático e eficiente, rapidamente anexara o território indígena nos seus documentos de relação, que era obrigado a escrever. Conquistar a “América” começa, então, com o controle simbólico dos referentes do espaço, no papel e tinta, construindo um mapa instantâneo com a pena, visto de cima.  

Mas sempre ficam os restos, os excedentes e “outras muitas coisas que por serem tantas e tais não as sei significar à Vossa Majestade.” Excessos que não cabem nas rápidas transições de poder por documentos anexadores.  

Penso nessas muitas coisas outras, na cidade e nas suas sobras, em termos de paisagem – a partir da qual trocamos toda uma experiência afetiva; a paisagem com seus fluxos materiais e sonoros que nosso corpo, imerso, acopla e respira. E penso em tomar o poema como exercício, prática especulativa de descolonização da ordem estabelecida pelas diretrizes do império – ou do governo, para a atualizar os termos.  

Dsc00001m.jpg

Nesse exercício, a partir do interstício entre o corpo e o lugar, a cidade começaria na textualidade do poema – que, por sua vez, enuncia a experiência íntima e indissociável daqueles. Lembro-me da anotação-poema sobre dois quadros, ainda a serem elaborados – quadros que também seriam mapas:  

“Looking” is & is not “eating” & also “being eaten” 
That is, there is continuity of some sort among  
the watchman, the space, the objects.1 

É do pintor Jasper Johns, que iniciava alguns de seus quadros com rascunhos em verso, sugerindo, num curto circuito, que a paisagem que sempre tentamos mirar, já nos devora quando conseguimos abocanhá-la em alguma parte. Nunca somos um vigilante pleno, mas participamos do ativamente do entorno. Com uma predisposição descolonizadora, que parta do texto, é que a noção de mapa é construída:  

Beware of the body
& the mind. 
Avoid a polar
situation. 
Think of the
edge of the city & 
the traffic there. 2 

Johns pintara o quadro “Map” sobre um mapa dos EUA, que um amigo seu lhe dera. É elaborado sobre o mapa-tela com diversos erros não controlados, mas que são inerentes ao projeto e ato de pintura, de forma que “não há acidentes”. A técnica artística se dá em tensão com o espaço que lhe escapa, no qual borrar os limites está constantemente em jogo.  

Jasper_Johns's_'Map',_1961.jpg

Nesse desmapeamento poético, os referentes se perdem em movimentos indeterminados, tráfego entre corpo-mente-cidade, como as anotações-poemas de projeto sugerem.  

Lugar do poema este, podemos pensar, que se tece em “ritmo orgânico”, movimentos que vão se borrando num país sem uma cor de origem, cujos Estados se sobrepõem um sobre o outro de forma a se interligarem por suas diferenças (em certa medida, cores em contraste se encontrando). 

Tal como formula, agora, Herberto Helder em Photomaton & Vox: “este intento: o da relação, segundo uma forma básica, entre a intensidade pessoal e a intensidade do mundo.” Assim também num breve conto desse autor, sobre uma escultura que aciona uma “arte relacional” – como os Bichos de Lygia Clark ou Parangolés de Oiticica:  

(as transmutações)  

Escultura: objecto.  

Objectos para a criação de espaço. Espelhos para a criação de imagens. Pessoas para a criação de silêncio.  

Objectos para a criação de espelhos para a criação de pessoas para a criação de espaço para a criação de imagens para a criação de silêncio.  

Objectos para a criação de silêncio.  

Em câmera lenta

A paisagem, o mapa e os deslocamentos de espaço, têm sido temática de intensa reelaboração na poesia brasileira de hoje que, por sua vez, propõe novas olhares e relações afetivas com o entorno. Da forma como vejo, tal perspectiva paisagística é um ponto de partida possível para a leitura do trabalho de alguns poetas contemporâneos – e, portanto, da cisão de um sentido mais tradicional do “poético” da poesia.  

“– o que você está tendo é um problema de realidade” – ele diagnostica quando ela abre os olhos “e tudo fica tremido se fast forward”. Ela chega no mesmo terminal, e semanas depois a cena se repete, num movimento em loop. Do lado de dentro, ela fecha os olhos e a paisagem-mundo passa como um “mapa feito à mão”.  

É a cidade e seus diagnósticos em Marília Garcia, no poema “pelos grandes bulevares”, de Câmera lenta, livro mais recente da autora. Câmera lenta é um cinematógrafo em que entramos, um lugar escuro em que as palavras ecoam sem um corpo definido, mas sempre em movimento. O livro fala sobre imagens em movimento, das suas velocidades, e também sobre a apropriação dessas imagens, nas transições entre o “lado de dentro e o lado de fora”.  

“o cinema é 24 vezes / a verdade por segundo”. Verdade que pode ser desmontada se diminuirmos a velocidade, entrarmos em câmera lenta:  

“este segundo poderia ser 24 vezes a cara dela quando fecha os olhos e vê.”  

O que ela vê? É aí que os poemas começam a atuar no cinema: paisagens em aberto, com seus loops e closes, que o telespectador deve preencher e “usar a um modo”. Como nas cenas de In the mood for love, que prolongam os passos e breves momentos solitário das protagonistas; ou nos fragmentos de corpo que escapam à imagem una da pessoa – também aqui encontramos o lugar entre o dentro e o fora, landscape/inscape. “Para nós, é essa falha – princípio de desfalecimento do sistema construído pelo falso campo-contra-campo ou pelos equívocos efeitos de ‘raccord’ nas cenas do prédio de apartamentos – que estrutura o filme e constitui, a exemplo da pintura de paisagem oriental, o princípio do vazio (o ‘segredo’) que mobiliza o jogo das formas e o seu oscilante acerto de conjunto” – como diz Fernando Guerreiro, sobre o filme citado.  

Os “vazios” da paisagem de que apropriamos, continuam ecoando em pequenas “falhas” das cenas na Câmera lenta.  

Em “tem país na paisagem? (versão compacta)”, tirar fotos do mesmo ponto da cidade remete a um habitar o espaço que sempre escapa; tentativa contínua de uma experiência que almeja captar o que acontece nos momentos presentes, com suas sobras e os excessos. Abarcar o que acontece entre.  

sempre tinha tentado  
pular as etapas da vida  
e apagar o entre.  
como atravessar os meses neste lugar  
e ver o que acontece?  
a fotografia divide o futuro  
e passado – seria possível ver o que  
está no meio?  

Mapas constantemente redesenhados. Essa poética desmonta, em zoom, em câmera lenta, em silêncios, as linhas fronteiriças entre o passado e o futuro – uma “volta ao real” que se constrói em instantes presentes de enunciação, tensionados com a tentativa-e-erro de vozes de outros momentos, agora imprevisíveis. No poema que abre o livro:  

assim,  
esta voz que fala aqui  
é a  
voz de uma marília de um mês atrás  
é a minha voz falando a partir do passado,  
é a minha voz,  
mas sem controle.  

Nesse sentido, Ana Cristina Cesar também abre uma cisão com poema moderno no Brasil. Inaugura – com suas cartas, diários, anotações, projetos de ficções, escrituras à mão dirigidas a si mesma, ao remetente/leitor, a ninguém – um lugar a partir do qual poderíamos pensar a poesia contemporânea, depois da “primeira folha aberta” e da perguta-título: “A poesia pode me esperar?” A leitura, uma questão de tempo de enunciação, pede uma outra relação com o texto e com a escrita.  Em Ana C: 

Não, a poesia não pode esperar.  
O brigue toca as terras geladas do extremo sul.  
Escapo no automóvel aos guinchos.  
Hoje – você sabe disso? Sabe de hoje? Sabe que quando
digo hoje, falo precisamente deste extremo ríspido,  
deste ponto que parece último possível?  

Então, quando penso na literatura que considero experimental (termo um tanto vago), vejo que ela só faz sentido quando, no ato da enunciação, possibilita articular um modo outro de habitar o presente, por sua abertura não totalmente decodificável – mas com outro ritmo e modo de enunciação. Um descontrole da ordem dada, das autorias de “quem diz”. Na paisagem presente de que participamos, é necessário uma abertura da escuta:  

e eu fiquei pensando  
se estaria muito seco nesse dia ou não  
e pensei que talvez a gente pudesse  
fazer silêncio  
e deixar a escuta aberta  
para ouvir.  

Ao Ar Livre

Essa experimentação do itinerário e do literário – experiência das cidades agora como palavra em aberto, carta, rascunho, mapa desenhado – é formulada insistentemente num “teste limite” das relações entre texto, corpo, paisagem e sociedade, ao longo da poesia e prosa de Maurício Salles Vasconcelos.  

Numa escrita em trânsito livre, a descolonização dos símbolos se coloca como um desaprender dos sentidos demarcados: “Encontrei no fim da conversa um chamado de voz por engano, dizendo possuir um precioso pacote de endereços, que eu fosse até o ponto de sua perda”. 

Como em Maggie Nelson – “maniacal bouts of writing, learning to adress no one” – em Ar Livre (2017), recente livro de Maurício (com o qual eu tento um diálogo em celular.quitinete.rua), as formas de habitar o espaço, ao longo desta virada de século (atravessando os anos de 1999 até 2015) são materializadas em inusitadas formulações do que poderíamos entender por liberdade.  

Num “ritmo/rasura”, os “desaprenderes” se dão em pequenas metapoesias que seus versos snorizam. O autor volta à imagem do cão vira-lata para construir espaços intersticiais dentro do sistema global e colonial. Uma atenção a outras formas de vida. Do habitar o presente. Em “Cão (zero)”:  

Atravessa poentes e, sem saber,  
Pontes de uma sombra demarcada,  
De tão ondulado o cão (estará  
Sempre, bem aqui, em companhia  
Dos anos, dentro dos outros,  
No coletivo que o engloba)  

O social mostra-se no texto pelos rastros e restos das megalópoles (populações, praias, apartamentos). Tudo isso ganha materialidade na escrita, atravessada por diversos ecos, acontecimentos fractais, mapas interconectados.  

No “Andar sobre o que resta de praia” o que se capta é  

“(um leve rumor por trás,  

por dentro, talvez o sol,  
talvez o acidente que se azinhavra  

em nome do atlântico, um simples revoltoretorno)  

carioca proliferante piolho universal em mar aberto  
alastrado óleo
onde se antevê a alucinação dos lugares  
sob o menor movimento  

A alucinação dos lugares é uma exigência por outras formas de olhar e sentir o texto e as “populações”, que não devem estar presas ao mundo literário como sistema independente (por isso, em certa medida, seus livros podem incomodar leitores habituados à literatura como gênero essencialmente autorreferencial); mas sim, em dialogismo pleno com manifestações no presente. Uma escrita em abertura que consegue materializar diversos pontos de conexão. E são escritos “metapoéticos” à medida em que deixam mostras de seu procedimento e reformulam modos de fazer poesia.  

Numa escuta ao ar livre – nos acontecimentos geracionais, entre lugares públicos e habitações comuns, homenagem a artistas recentemente mortos, manifestações populares, hippies, budas, taxistas, vozes da telefonia e da rua –, estão os modos específicos do autor construir sua poética. Na forma textual com que vai compondo ao vivo. Em sintonia com o presente, o registro de tradições e pequenos acontecimentos que retornam e se assimilam no ato da leitura, compõem um inesperado mapa interligado da virada de século, ressoando como novas potencialidades poéticas deste tempo. Qual uma feliz letra de rock:  

“Parque temático” 

Queremos estar – logos insone –  
Ser homens feitos, nomear o que
Não se vê – a origem e a  
Correnteza exangue, à solta –  

Dentro de um panorama, ou então,  
Um parque, um cessar-fogo  
A qualquer hora, pelas tantas   fontanas  

Sob o contínuo rumor do fim da vida.  

Aproxime-se e me aborde

Não na dualidade arte-vida, mas numa linguagem que movimente afetos de um real ainda a se construir, ou do regresso a um corpo-memória que deve ser acordado, estamos em consonância com boa parte da poética de Ricardo Domeneck.  

Nos enjambements em a cadela sem Logos (2007), a posição do sujeito lírico torna-se subitamente estranha diante da disposição dos corpos nas cidades. Em monólogos que se confundem com outros sujeitos enunciadores, entre aproximações e distanciamentos com o leitor, sujeito lírico e as personagens referenciadas (todos em um diálogo indeterminado), criam-se deslocamentos de voz, que vão desmembrando as políticas de cor, imigração, gênero, trabalho, em todo o contexto que se articula a prática literária, escrita e oral no âmbito público. A confusão de vozes acarreta um sentido performativo aos poemas, que se escrevem na tensão entre enunciado e enunciação, de forma que o modo, o corpo e o lugar com que se pronuncia um texto estão sempre em jogo.  

a língua não  
é autônoma mas reage  
à saliva à dor de  
cabeça à boca  
alheia no meio  
da sentença  
percebe o  
esgotamento do assunto  
e vira o  
rosto para evitar  
os olhos do  
interlocutor 

Como magistralmente explorado por Tiago Guilherme Pinheiro, em a cadela sem Logos  “não há nada que indique que tal trajeto seja percorrido por um mesmo sujeito, que cada sentença esteja sendo proferida por um único indivíduo.” Desse modo, num deslocamento da voz, simultaneamente se escancaram as formas de vida política na nossa “democracia”, e abrem-se narrativas que nos fazem perceber, em sua enunciação (na participação do leitor) outras formas de sentir o mundo/ler o texto.  

Em analogia, também parece haver um deslocamento de paisagens muito presente na poesia de Domeneck. Em “Composição como contexto”, último texto de a cadela… e espécie de posfácio  sobre o procedimento de escrita do autor (em que confluem influências literárias com acontecimentos em sua vida e contexto histórico), lemos passagens em que reforça-se que o entorno sempre participa no “interior” do sujeito – fato presente desde a imagem do poeta-anfíbio do primeiro livro do autor.  

“Se está chovendo enquanto caminho por uma rua da antiga Berlim Oriental e penso este início, quanto o caminho, a velocidade dos passos e o vento frio no rosto influenciam o ritmo desta oração?”  

“A multiplicidade do contexto não impede o indivíduo, gera-o”  

“Se já não se sabe o quanto o sujeito mistura-se ao objeto, se sou eu a paisagem contemplada, se amanhã ou vinte anos depois, se o limite não é parte do mundo como a fronteira não pertence ao país, como tratar a COISA de forma DIRETA se a direção do objeto é a mesma do sujeito, movendo-se continuamente entre semântica e sintaxe?”  

E, citando John Cage, Domeneck escreve: “Atento ao ambiente como/ o ambiente ignora a/ minha vontade”.  

Com isso, lembro, no giro de uma década (2007-2017), do poema “Aproxime-se e me aborde”, escrito esse ano pelo autor – e faço esta breve (e mui passional) nota sobre esses versos recentes, em que o mundo (sociedade e natureza) começa numa viagem ao corpo. Nas suas dobras, no contato com a pele outra, habitando as fronteiras tênues que separam indivíduos de uma espécie. Há uma força geológica que desloca as pessoas em livre associação – como se não fosse para estarmos aqui, nosso encontro com acidente, nossa espécie, esse breve desvio de uma dança concêntrica a que participamos.  

Lavas, crateras, oceanos, continentes, evoluções – deslocares acordados pelos órgãos, pelas suas fissuras, erupções e fendas que nos fazem sentir – nos fazem expandir – os limites do corpo. Processos de cisão e abertura, pensamentos e continentes que se desdobram conjuntamente. Quando toca a outra pele, essa fronteira em risco de extinção, os estímulos mútuos voltam-se em pleno wishful “changing”. 

Uma volta a um afeto (uma escuta do corpo) que integra sem hierarquia a pessoa e o entorno, paisagem móvel de monções, correntes de ar a entrar com o habitar humano, o ar que bombeia os pulmões e faz trocar material, fluidos, sopros e movimentar palavras entre-nós, em rearranjos de formas de vida, palavras-ações em dinamismo com o globo. 

Nada como culpar o movimento da terra e sua inclinação torta, o deslocar de paisagens, continentes, cidades e acidentes, os thousand natural shocks that flesh is heir to de Shakespeare, entre o ser e não ser – por justamente você não estar aqui. Etc.  

“Aproxime-se e me aborde” 

Até mesmo os continentes afastam-se, 
colidem, formam cordilheiras e oceanos, 
detêm correntes de ar, mobilizam monções, 
separam membros da mesma espécie
que se adaptam, mutações de azar e sorte.   
Por que não seria assim conosco, tão mais
bruscos em nossos joelhos e cotovelos, 
tão mais destrutivos em nossas erupções
pelas fendas deste corpo no qual a pele
dobra-se úmida, anunciando as crateras?   
Em nós também contam apenas as quinas
e buracos. Montanhas, fiordes, precipícios. 
Felizes as bactérias inquilinas de nossa pele, 
como cegos que apalpassem um elefante, 
só parte do planeta doente em que vivem.  
E já nem sei se maldito ou bendito esse mar
de lava sobre o qual dançam nossos pés, 
as erosões e tremores que expõem fósseis
onde buscamos pelo elo perdido da espécie, 
aclare a desgraça de cambalearmos bípedes.  
Eu culpo o eixo torto da Terra, as estações
incansáveis, essa rotina do brota-e-murcha, 
a neve, seu despenca-e-derrete, eito e horto
da boca que troveja quando queria ensolarar, 
une ríspida os dentes e morde ao mal lamber. 


Referências

Sobre Hernán Cortez e a conquista pelas “letras”: Mago Glantz. La desnudez como naufragio. Borrones y borradores.  

Sobre Jasper Johns: Marjorie Perloff. “Watchman, Spy, and Dead Man: Johns, O’Hara, Cage and the “Aesthetic of Indifference”. <http://marjorieperloff.com/essays/watchman-spy/>  

Sobre In the mood for love: Fernando Guerreiro. Imagens Roubadas. <https://enfermaria6.squarespace.com/fernando-guerreiro-noites-na-enfermaria> 

Sobre a cadela sem Logos e a voz: Tiago Guilherme Pinheiro. “Espectros sonoros: voz, corpo e democracia em Ricardo Domeneck”. <http://dx.doi.org/10.1590/2316-4018529>

Notas de leitura sobre Lyn Hejinian; pequena antologia de fragmentos

419YG9NKCKL.jpg

Voltei esses dias aos dois livros autobiográficos da autora norte-americana Lyn Hejinian – My Life (1980) e My Life in the Nineties (2003) – (o primeiro tem uma edição brasileira, com tradução e prefácio de Maurício Salles Vasconcelos.)  

Lendo de forma detida a serie do my life (e não aos poucos e nos deslocamentos do transporte público, mas numa única tarde parada de domingo), acredito que a lição mais assimilável da série é essa: a vida de uma pessoa, sua biografia, ganha a forma que quisermos dar, de acordo com nosso empenho e atenção ao enunciá-la; mas a vida de uma pessoa, sua biografia, está presa a inevitáveis acontecimentos (happenings, raiz comum de happiness, como ensaia Marjorie Perloff) que escapam da nossa autodeterminação, moldando na sorte e acaso quem somos.  

A prosa de Lyn Hejinian, sequência de movimentos narrados que simulam/criam sua biografia, situa-se bem no meio desses dois fatores, trazendo à tona aquilo que deveríamos cotidianamente experienciar: certos paradoxos que borram limites, entre cores, classes e fronteiras – "where there are borders there is barbarism", com a autora.  

A poética de my life, nos dois livros, compõe-se em pequenos capítulos/fragmentos, com títulos que sugerem as experiências a serem narradas, e que se repetem em loops ao longo da obra, em diferentes momentos, dando ritmo à nossa leitura sempre como acúmulo de “vida” no instante presente.  

Do primeiro “capítulo” do My Life (1980), “Uma pausa, uma rosa, / alguma coisa no papel”, lemos talvez as primeiras imagens que a autora tem de sua vida:  

“Um momento amarelo, exatamente como quatro anos depois, quando meu pai regressou da guerra, momento de saudá-lo, tal como estava, lá em baixo nas escadas, mais jovem, mais magro do que quando partiu, púrpura era a cor embora os momentos não sejam mais coloridos assim. Em algum lugar, nos fundos, os cômodos dividem um padrão de rosas pequenas. Bonito é o que faz bonito”; rememoração que se articula no processo de escrita que deve criá-la no momento presente, mas que já estava em criação/desconstrução ao longo dos vários anos da vida – “As melhores coisas foram arrebanhadas em uma caneta”; “Uma 'história oral' no papel”. 

A vida de Hejinian no livro, em certa medida, não escapa de ser apenas mais um registro de sua “vigilância perpétua”, que entra dentro do movimento contínuo de memória e criação. “Dinâmica da contiguidade”, como nota Maurício Salles Vasconcelos: “As recorrências ao passado, o registro do instante e as especulações sobre o futuro, acontecendo no mesmo ato, sem hierarquização” (do prefácio “Minha vida: o jogo do livro”). 

Há em cada “capítulo” da vida da narradora, uma percepção distinta e nova, colhida das lembranças. Porém, num jogo de palavrear (como diria Fernando Pessoa/Bernardo Soares), cada capítulo sempre resgata as “sentenças-chave” que foram escritas anteriormente, ao passo que sempre cria novas “sentenças-chave”, remetendo à escrita porvir. Assim, condensando uma poética proustiana, cíclica, cheia de dispositivos que são verdadeiras surpresas à leitura, a autora dá forma e chama a atenção a aspectos da nossa percepção do tempo que não estabelece uma separação clara do passado no presente e na projeção futura, sugerida pelo calendário cristão, mas um sentir-se que continuamente resgata o passado e incorpora-o no jogo de escrita:   

Sobre o tempo, “A analogia óbvia é com a música”: 

“Digamos que toda possibilidade espera. Na música raga, o tempo é acrescido ao compasso e se expande. Uma sede profunda, sutilmente cheirando corações de alcachofra, semelhante ao adormecimento da infância.” 

“but to an other extremis, the present. She is 5, she is 25, she is 50 – the voluntariness of knowing that the life is mine must remain strong.” 

Leitores de sua obra (como aponta Maurício S. V., citando Marjorie Perloff e Lisa Samuels) veem em my life uma convergência entre arte, que pressupõe uma tecnica de criação, e biografia, associada aos fatos contextuais. Por isso sua escrita não se alinha com as expressões ditas autoficcionais, que jogam com referentes do biográfico numa dinâmica ficcional. Ao lermos sua prosa, nunca nos perguntamos se sua vida está ficcionalizada, ou se sua prosa imita o real; mas vemos que continuamente o processo de representação se desnuda e hesita no ato-escrita. 

“Não é um mundo pequeno, mas há muitos modos de dividí-lo em pequenas partes.” 

“I ask my self, 'What's in a poem.' These are places where the action never stops. The outside of the world – but this itself is that. Looking after, being ready before. Tendrils I said, but my sister heard ten girls: ten girls in the ferns.” 

Da mesma família poética de Ana C., para os ouvidos brasileiros, e de Maria Gabriela Llansol, para os portugueses, articulada de forma fragmentada e móvel, num contexto em que enunciar tornou-se tão predicável e assimilável dentro de um mundo dado, a my life de Hejinian sugere um exercício de pensar a construção da pessoa nos jogos tênues de linguagem entre o social, o que os outros fazem do eu, e os espaços indetermináveis de criação espontânea desse mesmo corpo ativo. “A word to guard continents of fruits and organs.” 

Pra mim, tem sido sempre muito inspirador ler Lyn Hejinian; a cada linha uma surpresa da linguagem, e ainda como se fosse exatamente isso o que você esperava ler, de novo o florir de árvores – “É ainda algo surpreendente quando desponta o verde.” Deixo a seguir algumas outras das mais belas passagens de my life, que mostram como em pequenos e sutis frases, esses livros tratam (quase de modo enciclopédico embora não-informacional ou denotativo) das inesperadas e valorosas reflexões sobre a vida em comum e sobre a arte. 

516SFMGvGNL._SX339_BO1,204,203,200_.jpg

 

Da verdade das coisas e as palavras; pontos de vista: 

“Insetos alaranjados e cinzentos se acasalaram, mas estavam colocados em direções opostas, numa agitação para nada. O que significa simplesmente que a imaginação é mais inquieta do que o corpo. Porém, palavras, já. Pode haver risadas sem que haja comparações. A língua cicia em seu hilário pânico. Se, por exemplo, você diz, 'eu sempre prefiro ficar comigo', e depois, numa tarde, você quer telefonar para um amigo, talvez você sinta estar traindo seus princípios.” 

Da distância e movimento das coisas: 

“The Atlantic expands (America departing from Europe) the same distance each year that out
fingernails grow. Drifting science, the weather sounds. It involves in time meditation and out of time narration.” 

“A turbulent dispersion of ink in water drawn by fountains to the inside of my world.”   

Do pensamento como indeterminação: 

“Sendo impossível completar o pensamento, a ideia de infinito ou de eternidade despertou uma espécie de desejo, o lado sexual do pensamento” 

Mais diretamente sobre política – sempre no meio de onde menos se espera: 

“One must eliminate fear in order to create a space for living an ethical life. Subjectivity at night must survive hours during which it encounters nothing
that is conscious of it and has nothing to judge but itself.” 

Do devir e da interrupção do vazio; síncope "movimento-parada": 

“We know 'tomorrow we will be here', and 'every person has its double' to demand more logics
from life. Reason looks for two and arranges it from there. And it wasn't so much hopelessness as a sense of lessening obligation that made me think I too could die, dead before, dead after, but alive now as I say so.” 


 

Sobre a autora e tradução de alguns poemas na modo de usar. 

Edição brasileira por Maurício S. Vasconcelos: https://www.livrariacultura.com.br/p/livros/literatura-internacional/minha-vida-15059427 

Marjorie Perloff sobre Hejinian: http://marjorieperloff.com/essays/hejinian-happy-world/ 

Mais excertos de My Lifehttp://epc.buffalo.edu/authors/hejinian/mylife/ 

Radio silence: notas sobre rádios

            “Rádio é um recurso tecnológico de telecomunicações utilizado para propiciar comunicação bidirecional por intermédio da transcepção de dados e informações previamente codificadas em sinal eletromagnético que se propaga através do espaço do mundo físico material e imaterial.” (Grifo nosso). Não sei o que a Wikipédia quis significar com “imaterial”, mas entendo essa sua vontade “amplificar” o alcance e as possibilidades do rádio, como se ele estivesse além da nossa individualidade e autorrealização.

            De minha parte, apenas quis lembrar-me dele. “O rádio. Lembrar-se do rádio, penso, ou escrevo em post-its (fiz isso apenas uma vez), ou penso quando desligo o carro e quero continuar ouvindo a estação mas preciso entrar em casa e lembrar de ligar na mesma estação. Simplesmente lembrar de deixar o rádio ligado. Uma forma singular de ocupar o espaço, também penso (só agora, que escrevo). Mas hoje estamos no shuffle.” (Anotações do diário)

Me refiro ao rádio pois é minha máquina predileta, basicamente por sua transmissão de frequências. Os vinis, hoje são caros e ocupam demasiado espaço, e, para quem tem rinite, é um problema a mais quando já existem os livros; enquanto que os CD’s, eu prefiro, mas os da minha coleção são de bandas obsoletas e infames, ou que, no mínimo, você, em pleno século 21, não mostraria para os convidados, muito menos para crush’s.

Há a máquina notebook, eu sei, que te conecta com possibilidades de combinações infinitas de matéria, inclusive com todo tipo de programa de rádio-transmissão. Digo a matéria, e não a simulação desta, ou meras imagens do real que se projetam numa mesma tela sempre feita da mesma coisa, ou seja, tela cuja substância não muda ao longo de um bom tempo, como a velha CPU que tenho, em cima da mesa-depósito, na quina do corredor de casa (mesa que papai ganhou (com design modernista e que ninguém nunca conseguiu montar com firmeza) de seu antigo trabalho, como forma de pagamento, pois a firma faliu; mas a CPU continua lá, pronta para ser ligada com todos os arquivos que eu deixei para trás, fotos editadas com sutis rabiscos do mouse feito pelo paint, ou só desenhos feitos com o paint, cartas breves de pedido de namoro também editadas com o paint, com corações efeito graffitte, um romance baseado no filme Guerra dos mundos, cujo título era Universos em guerra, e que o Pedro, meu vizinho, ajudou a escrever, se bem que depois de dez minutos sentado ao meu lado de frente para aquela máquina velha (pois já existia o Xp, e o meu era o 94, mas não seja por isso), o Pedro disse que precisava ir para casa e levantou-se, perguntou se o portão estava aberto, e foi sozinho fazer seu compromisso, mas me ajudou nos primeiros parágrafos; depois, eu imprimi a história na mesma tarde e fui para a casa de Pedro onde o encontrei deitado no sofá assistindo o melhor filme que já vimos juntos, era da Disney e devia ter mais de duas horas, trama complexa de um grupo que queria se libertar do mal autocrático exercido por outro, eram crianças num acampamento, ou crianças escravas, ou ladras; nunca vou me lembrar do título, mas os personagens e a fotografia remetiam a uma atmosfera desértica e onírica, como sonhar Fellini em colorido, não em p&b; tudo excessivamente amerelo-ouro. Mas a matéria em si ganha a medida do notebook, como dimensão biológica da experiência, e fica contida num buraco cujo fundo não há, se prolifera em abismos dentro de outros que retornam, sem absoluta hierarquia, por nossos próprios movimentos sobre teclas e mouses e as respostas da tela do notebook (tendenciosamente no mesmo ciclo vicioso por analogias mega-inteligentes, para as nossas preferências, etc.)

Apenas uma tendência. Mas que às vezes nos faz espantar quando nos deparamos (raramente ou com esforço) com espaços elaborados em uma matéria que não existia dentro desse ciclo, com verdadeiras ruínas, não raras vezes tentadas como “obras de arte”, e as habitamos por alguns instantes, instantes repletos de morte, e que imediatamente jogamos fora, dum lugar que carece de discurso, de escolha ou analogia, cuja podridão desloca os ensejos que tanto investimos a cada mínimo espaço de tempo conectados (no banheiro, na fila do mercado, no pronto socorro, no pré- e pós-sexo, nas escadas do prédio, no café, no engarramento); desloca-os todos para o movimento mais ousado e transgressor. Que é perspicaz e quieto, por sua desmedida substância.

O rádio cumpre, de forma abreviada e portátil, essa temporalidade indiferente e fora de alcance. Por seu corpo hoje inútil e sua vida própria, principalmente durante a noite.

Há disso nos romances, por exemplo; e é algo bonito, que nos toca particularmente na modernidade líquida, ou seja lá o que isso for. Trata-se da “perda” de tempo que investimos na leitura, na excessividade textual que pode levar a diversas imperfeições do enredo, detalhes e memórias absolutamente descartáveis, deslocadas do foco, um prolongamento do corpo de quem escreve que escapa no texto. Falo do romance (poderia falar em “gastar tempo” se dissolvendo em versos, nos enjambements) pois é o gênero mais valorizado hoje, dentre outras razões, por sua característica da “perfeição”, da possibilidade de narrar uma história com um tamanho ideal que dê conta daquilo de que enuncia: que seja compreensível e bem resolvida. E sua beleza particular é precisamente oposta a essa noção de “obra”; é a de um espaço cuja possibilidade de inventividade de matéria é inesgotável.

Outro exemplo de uma situação-ruína, extraio justamente de dois romances: radicalizando essa “textualidade” inútil, num gesto primitivo e infantil, os personagens pegam um livro e o estendem no varal; o livro fica aberto e com a maior área de contato possível, acelerando as reações químicas do vento, da chuva, do sol e do cocô de pássaros, sintetizando, num experimento visível, algo do tempo geológico. (São duas cenas parecidas, presentes em 2666, de Roberto Bolaño, e em Nocilla Epeirence, de Augustín Fernández Mallo, que disse não ter lido o romance de Bolaño antes de ter escrito Nocilla, ocorrendo o fenômeno de “plágio por antecipação”, como diz Borges.)

No dia-a-dia, não precisamos deteriorar os livros. O rádio é uma máquina fácil de ser acoplada ao ambiente e pode ficar de segundo plano, enquanto se escreve ou se lê um livro, por exemplo. É uma questão de escuta, em ambos os casos. Mas no caso do rádio, não precisamos nem estar “ouvindo rádio”.

Pois me lembrei dele, que ficava ali atrás na estante, a maior parte do tempo à toa, ruidoso enquanto me dedicava a algo mais importante, até que ele parou de funcionar. Agora, vejo-o ali ainda, com seu corpo alheio, indiferente. E então, todo o silêncio que percebo, emana exclusivamente dele, das suas caixas de som que não funcionam, aí penso que o título da música “Radio silence” faz sentido.

“Radio silence”, canção melosa do britânico James Blake. Eu justificaria dizendo que suas músicas são ritmadas fora do padrão da indústria (padrão das estações de rádio?!), verso-refrão-verso-refrão-solo, pois elas cismam em não cair no refrão, se prolongando, como em Erik Satie. Mas não tem nada a ver; as analogias são fúteis mesmo.

11/06/2017

Canção citada.

Hoje é dia 31 de julho

Céus. Nada mais que um vácuo apesar da individual conjuntura – não desvenda-se nada além de uma camada de seda branca que cobre todas as relações e o espaço entre minhas mãos e as palavras brotando; uma música, poderíamos chamar. Que por entre os poros ecoa. Um sussurro na sala. Será que uma certa escritora também se preocupa em contar histórias, como eu? Se algum dia, o que é improvável, ela disse consigo mesma que estaria disposta a perder o tempo e entrar numa gandaia ficcional? Ele vai às ruas, acende um cigarro acreditando em espíritos, toma um ônibus para o litoral, acredita na revolução and so on. Ou alguém perdido no outro lado do continente que nem se sabe se está vivo, mas de repente recebe essa mensagem de voz, tarde, de qualquer modo perguntando o que você está fazendo, sem nenhuma pretenção ou intenção-de. Mas tarde de mais, pensam os últimos pregadores de praças públicas, pois que tipos de frutos seriam possíveis hoje derivados de sermões? O fim só pode estar quase. 

Recebi a resposta de um amigo que fazia anos, falando de uma maconha disponível. Não sei quando chegou a minha mensagem, já é julho, e muito menos quando foi enviada, pois pode ter havido um delay de algumas semanas – que por sua vez trouxeram um delay de quase meio ano considerando o tempo de uma pessoa que fuma e lê Maiakóvski. Pensei que era engano, a mensagem, e talvez realmente o fora, pois ele viu na possível caixa de entrada o meu nome, separando para em algum instante de sua vida responder qualquer coisa, mas a outra pessoa da qual ele gostaria de ver e ficar conversando-de-fato e talvez namorar depois, era outra pessoa. Uma linguagem calma de suas dedadas no teclado compatíveis com quem sempre foi. A sua casa tinha muitos vidros, enquanto a minha, apenas concreto e breves janelas – cozinha, lavanderia, sala, quarto, quarto. Ele como que teve um espanto. 

Não havia nexo meu corpo aparecer depois de corridos anos. Mas eis-me ali, fumando até semana passada depois de terminar a tradução de cinco contratos normativos de uma multinacional voltada para soluções do mercado. No futuro estarão terminados, é o que penso enquanto fumo e ouço Satie e escrevo no morro; os detalhes ao meu entorno tornam o enredo impossível. Estava sem camiseta concertando algum utensílio quebrado, rodava um disco de minimal e parecia um machão quando cheguei – ele de costas e de cócoras, quando se virou teve o espanto calmo de quem fuma. As perguntas básicas da vida. O instinto silencioso da retina na outra, cortada pelo fósforo riscando incendiado até a ponta do tabaco preso nos seus lábios. Que embaraço aquele corpo por trás da fumaça – flashes da vida mesquinha se nos passaram em vãos da memória. Eu chegaria em casa e talvez colocaria todas as fotos, cadernos e roupas num cesto de latão pegando fogo. 

Já se queimou toda a erva restante em oposição ao calendário, –  escrevi no diário quando acabou o verde – dia trinta e um – aluguel e tradução – resistiremos a mais essa, seres inúteis. 

Eu necessitei de uma pergunta, algum afago linguístico entre nosso campo de atração – os poucos centímetros por onde se nos abria uma utopia, uma mínima piada que compartilhávamos. 

Me ofereceu um cigarro e fumamos gastando palavras no sofá preto. De que revoluções precisávamos?


Flash de sangue engolfada pela boca

E penso que há blocos sonoros e táteis onde essas criaturas-eventos ocorrem. 

Ali era o escuro da sala de cinema vasta pela sua solidão p&b. A música que fazem ecoar lá dentro me desloca para aqueles movimentos sonhados: a abertura de camadas sedimentadas pelos discursos dominantes, desfacelando-se, correndo pelo rio a paisagem interior; aqui eu te conheço, Manaus. Brota-se um mundo, habita-o na língua alheia – o botânico alemão, o xamã caxinauá, os padres espanhóis, os portugueses com suas manias excessivas. O mundo é uma fera indizível, se diz numa canção.

Nada; nem as mensagens piscando nos bolsos, ou as ligações perdidas de alguma urgência inútil e familiar, e-mail de noticiário catastrófico ou demissões, me tiram das imagens que estão rodando, sempre. Entre o filme e nossos silêncios me intriguei com o corpo na outra extremidade da mesma fileira. Traços que se recortavam líquidos, com o lançar imprevisível das luzes da tela. Cabelos curtos, olhos como dois reflexos de estrelas-no-rio. Uma presença suave e fictícia, sentada no tempo tênue. Demorei muito naquele imaginar. Minha delicadeza ali, o verbo amoroso entre nós-silêncio, nos deixaríamos partir, que vida errada levávamos nessas avenidas e ruas de São Paulo; será que ela perceberia, a minha delicadeza? Um estrondo nas luzes da câmara de ecos – o herói multilado. Levou um soco na boca, bem no meio desta chuva da rainforest.

Depois que as luzes se acenderam a delicadeza seda flutuante se levantou, o corpo me olhou por instantes e sorriu; éramos só nós dois na sala, estivéssemos a frente da cidade, soubéssemos segredos; e depois foi logo em direção à saída, daí para o calor das ruas. 

Nos nossos passos me percebeu, pensei em segurar seu pulso, entrelaçar-lhe os dedos, mas seria ridículo, apenas disse "vamos nos mandar pra Manaus". A minha delicadeza riu.