2 Poemas de Georg Trakl

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Tradução: J. Carlos Teixeira

Delírio

A neve negra que escorre pelos telhados;
Um dedo vermelho mergulha na tua testa,
No quarto despido afundam-se nevadas azuis -
Os espelhos mortos dos amantes.
Em pesados pedaços se desfaz a cabeça e contempla
As sombras espelhadas na nevada azul,
O sorriso frio de uma prostituta morta.
No perfume do cravo chora o vento da noite.

in Gedichte, 1912-1914, aus dem Nachlass [Poemas, 1912-1914, publicados postumamente]

§§§

Num velho álbum de família

Voltas sempre, melancolia,
Ó brandura da alma solitária.
Um dia de ouro acaba de arder.

Humildemente se verga à dor o homem paciente
Entoando melodia e suave loucura.
Vê! já escurece.

A noite volta e um mortal lamenta
E com ele um outro sofre.

Estremecendo sob estrelas outonais
Curva-se ano a ano a cabeça - cada vez mais fundo.

in Gedichte, 1913 [Poemas, 1913]


Delirium

Der schwarze Schnee, der von den Dächern rinnt;
Ein roter Finger taucht in deine Stirne
Ins kahle Zimmer sinken blaue Firne,
Die Liebender erstorbene Spiegel sind.
In schwere Stücke bricht das Haupt und sinnt
Den Schatten nach im Spiegel blauer Firne,
Dem kalten Lächeln einer toten Dirne.
In Nelkendüften weint der Abendwind.

§§§

In ein altes Stammbuch

Immer wieder kehrst du Melancholie,
O Sanftmut der einsamen Seele.
Zu Ende glüht ein goldener Tag.

Demutsvoll beugt sich dem Schmerz der Geduldige
Tönend von Wohllaut und weichem Wahnsinn.
Siehe! es dämmert schon.

Wieder kehrt die Nacht und klagt ein Sterbliches
Und es leidet ein anderes mit.

Schaudernd unter herbstlichen Sternen
Neigt sich jährlich tiefer das Haupt.

Écfrase

 

                                 I

 

Andamos todos a falar da cadeira de Van Gogh
Das pernas carnudas das Três Graças
Das tetas da Madame de Pompadour
Do cantar mecânico de Klee
Do Banho Turco 

Andamos todos a falar do mesmo
em coro
repetindo até à exaustão
a nossa Original escolha 

Fazer o escudo   a urna    a luz
falar
exige muito mais que um mero
olho
mera boca
mera mão

 

                                   II

 

Queriam um longo poema sobre
a essência de uma cadeira ou
preferiam ouvir os macacos da
Frida Kahlo aqui e ali?
Não quero nada disso! 

Vivo em permanente turbulência e
usando tijolos duros rudes banais
acabados de sair da última fábrica
quentes e prestes a esfriar construo
o meu triste palácio de desventura  

Nas (des)montagens de Danh Vō
uso a massa de Frank Auerbach
as diagonais de Martin Barré
a mão de Philip Guston e a fibra
de vidro de Eva Hesse Pinto aqui
e alí com a trincha de Michael
Krebber e decoro o pátio com
 a Rosa Fixa de Isa Genzken 

Bem sei não disse nada
Apontei (é tão feio apontar)
obras que me ultrapassam
e sobre as quais nada sei dizer 

Eu quero viver no silêncio
dessa turbulência
nesses sismos interiores (só meus)
e passado décadas
dizer três linhas 

Seja o meu comentário ou
pequeno verso
ar fresco
na ala da repetição 

 

                                   III

 

Que a cadeira de palha
não seja um mero objeto
raspado em relance por uma retina
Quero-a ocupada
eternamente
pelo corpo vivo de quem a pintou 

Quero-a sob o seu corpo
de Homem Vivo
sentado em descanso do seu sofrimento 

Eternamente sentado sem nunca
conhecer a morte 

 

                              IV

 

Nunca tenho companhia
é metade de um título de um
quadro de Michael Krebber
dois leopardos
filhote e mãe 

Chovia naquela noite
cubos intensos de gelo
na escura tela da savana 

Regresso sempre aos leopardos
Leões e chitas sempre que
Não tenho companhia
para maravilhar-me
com paupérrimas pinceladas 

paupérrimas pinceladas
para paupérrimos poemas
feitos do mesmo mínimo gesto
arrastado em essência
Pequenos Torronis 

procuro apenas mover
milimetricamente
a roda

Charles Bukowski, "Dostoiévski"

 

 

Bukowski, anos 70

Bukowski, anos 70

Tradução: João Coles

 

Dostoiévski

contra a parede, o pelotão de fuzilamento pronto.
depois suspenderam-lhe a pena.
suponhamos que tinham fuzilado Dostoiévski.
antes de ter escrito tudo o que escreveu.
suponho que não tivesse tido
importância,
não directamente.
há biliões de pessoas que
nunca o leram e que nunca
o lerão.
mas desde jovem que eu sei que foi ele
que me fez aguentar as fábricas,
ir além das putas,
ergueu-me alto pela noite fora
e pousou-me
num lugar
melhor.
mesmo enquanto estava no bar
bebendo com os outros
derrelictos,
alegrava-me por terem suspendido a pena
a Dostoiévski,
suspendeu a minha,
permitiu-me olhar directamente para as
caras râncidas
do meu mundo,
a morte apontando o dedo.
mantive-me firme,
um bêbedo imaculado
partilhando a escuridão fedorenta
com os meus
irmãos.
 

in Bone Palace Ballet


Dostoevsky

against the wall, the firing squad ready.
then he got a reprieve.
suppose they had shot Dostoevsky.
before he wrote all that.
I suppose it wouldn't have
mattered,
not directly.
there are billions of people who have
never read him and never
will.
but as a young man I know that he
got me through the factories,
past the whores,
lifted me high through the night
and put me down
in a better
place.
even while in the bar
drinking with the other
derelicts,
I was glad they gave Dostoevsky a
reprieve,
it gave me one,
allowed me to look directly at those
rancid faces
in my world,
death pointing its finger.
I held fast,
an immaculate drunk
sharing the stinking dark with
my
brothers.

Roletenburgo

Amanhã mesmo – oh, se fosse possível partir amanhã mesmo! Renascer, ressuscitar.
Dostoievski, O Jogador

as fontes pulsam
como se tivesses levado
uma pancada na cabeça
e um zumbido anuncia
um novo estado
de hiper-realidade
regressas a um mundo árido
óbvio
vês
três jogadas à frente
sordidez e vergonha
ainda assim
persistes
em anotar os números
fazer os cálculos
convertendo
em livro-razão do teu vício
o caderninho
onde anos antes
à margem dos detritos
da mais grandiosa
guerra intergaláctica
sonhaste que um dia
um pequeno coração
poderia cantar

London : swing

Vivendo em Westminster- havia quantos anos? - mais de vinte- sente-se, até no meio do tráfego, ou quando se desperta à noite (Clarisse bem o sabia) um silêncio particular, certa solenidade; uma indescritível pausa; aquela suspensão (ou seria do seu coração, que diziam afectado pela influenza?) antes que batesse o Big Ben. Agora! Já vibrava. Primeiro, um aviso, musical; depois a hora, irrevogável.

- Virginia Woolf, Mrs. Dalloway

(Livros do Brasil, s.d. – trad. Mário Quintana)