Objectos Últimos

Comovem-me os pacotinhos de sumo barato nas mesas-de-cabeceira dos hospitais,
Os desenhos e rabiscos de garotos de dois ou quatro anos que não se lembrarão do avô,
O sumo dias e dias intocado, a fome dos últimos momentos pouca, a sede enganada gota a gota,
Comovem-me os relógios de pulso, últimos companheiros não fosse a falha nas pilhas
Ou de quem lhe dá corda, enfiados no fundo das gavetas contra vontade,
Porque estavam a incomodar uma veia, escondendo assim a hora da partida,
Os anos, décadas antes, presidentes já falecidos, à noite da boca descai-se um mãe,
Tudo para enganar a última visita, quase sempre rodeados de outras solidões,
Gemidos alheios que quase um eco, comovem-me as caixas de bombons
Que ficam por ali, abertas, cheias, ao lado da placa que já não consegue nem um sorriso,
Comovem-me os objectos pequenos, os últimos da vida, porque no fim
Tudo sabe a tão pouco para nada, a vida acaba e o pacotinho de sumo intocado.


30.03.2018

Turku

 


 

Cold War de Pawel Pawlikowski, 2018

Joanna Kulig e Tomasz Kot em Cold War de Pawel Pawlikowski

Joanna Kulig e Tomasz Kot em Cold War de Pawel Pawlikowski

Cold War é o mais recente filme de Pawel Pawlikowksi, realizador polaco, que cresceu no exílio em Inglaterra e na Alemanha, Creative Fellow em Oxford Brookes entre 2004 e 2007. Regressado à Polónia pouco depois da morte da esposa em 2006, Pawlikowski acabou por se reeinventar um pouco como realizador depois deste trauma. A mãe do cineasta era bailarina e o pai médico, Pawlikowski tem ascendência judaica do lado paterno – uma avó que morreu no Holocausto. O início da sua carreira inclui uma série de documentários com qualidades vagamente surreais, filmes sobre errância e viagens e gente em trânsito. É possível que o modo como os fantasmas da história se cruzam no percurso do próprio Pawlikowski, a avó perecida em Auschwitz, o exílio da Polónia comunista, e a sua prática enquanto realizador de documentários expliquem alguma coisa acerca do modo como a história e o percurso das personagens nos seus filmes se desenrolam. Ida olha de perto as feridas deixadas em aberto pelo Holocausto na Polónia, ao mesmo tempo que é um estudo sobre o percurso de uma jovem mulher educada para se fechar do mundo. O modo como Ida se cruza com um músico de jazz na sua busca pelas suas próprias origens continuará para sempre a existir no meu bloco de notas como uma das melhores metáforas acerca do modo como o mundo tem as suas formas de nos encontrar e de nos agarrar por um braço e nos fazer girar, mesmo se no fim quisermos resolver que o que resulta para nós é fecharmo-nos num convento. Ida é o primeiro filme polaco a alguma vez ter vencido o Oscar para melhor filme estrangeiro.

Pawilokwski dedica Cold War aos pais, que o realizador descreve como “the most interesting dramatic characters I’ve ever come across … both strong, wonderful people, but as a couple a never-ending disaster”. Talvez porque Pawlikowski esteja interessado em conversar tanto com os fantasmas do cinema como com os da história, Ida e Cold War são filmados a preto e branco. Pawlikowski, cuja formação inicial é em filosofia e literatura alemã, está interessado em questões de identidade em momentos de crise. Pode-se dizer que Ida e Cold War são filmes acerca das formas como as pessoas descobrem quem são em momentos de profunda disrupção: histórical, emocional, política, geográfica, cultural... E o que elas são, tanto nos sugere qualquer um dos dois filmes, é algo mais profundo, íntimo, violento, belo e amável do que aquilo que a pressão de movimentos colectivos, que agem contra a memória e contra a individualidade, pode fazer para os normalizar, diluir ou censurar através de rituais e rotinas opressivas. Neste sentido, estes dois filmes de Pawlikowski são sobre a integridade humana. Cold War é uma história de amor abrupta, entre um pianista e uma cantora que se conhecem quando o pianista, Wiktor, é encarregado de instituir um colégio de música e artes performativas na Polónia, para conservar as artes folclóricas do país. O professor passa a intelectual perseguido e no exílio, em Berlim e Paris, e a aluna, Zula, segue-o e abandona-o e torna a procurá-lo. Num dos primeiros diálogos entre as duas personagens Wiktor alude ao rumor de que Zula teria assassinado o próprio pai e pergunta-lhe porquê. Ela responde algo como: “uma noite ele confundiu-me com a minha mãe, eu esfaqueei-o para o recordar da diferença, mas não te preocupes: não o matei.” Noutra cena, Wiktor regressa ao apartamento em Paris depois de se encontrar com Zula, depois da primeira separação entre eles. A namorada da altura pergunta-lhe se ele tinha ido gastar dinheiro com prostitutas. Ele responde que não, que não tinha dinheiro para isso, que tinha ido encontrar-se antes com o amor da sua vida. Cold War dramatiza na trajectória de Wiktor e Zula a questão da dissolução de identidade que é, mais do que a de um intelectual no exílio, de alguém, qualquer um, que tem de viver fora do seu país. Um encontro com um burocrata na embaixada da Polónia em França resume o dilema e o terror deste estatuto em poucas linhas, quando o burocrata se vira para a câmara e diz, à personagem de Wiktor, algo como, o senhor não é polaco nem francês.

As críticas chamam a Cold War um filme épico, mas Cold War é um filme épico numa escala muito contida, a magnitude da sua escala épica tem a ver com o fundo histórico, que é capturado em pequenos detalhes, que é a de ser um retrato da vida privada de dois artistas que pela sua profissão estão mais expostos a um olhar público e a serem vigiados pelo poder num regime opressivo. Na sua essência, no entanto, Cold War é antes de mais o retrato de dois amantes que tentam a todo o custo encontrar uma forma de permanecer juntos, e nem a opressão da Polónia comunista nem a satisfação que pode advir de se ser um artista vagamente bem sucedido e em paz no exílio parecem poder obliterar esse absoluto, sob pena de as personagens deixarem de ser quem são, de a vida deixar de valer a pena. De alguma forma, podemos tentar dizer muitas vezes a nós próprios que prudência e uma moderação indiferente nos podem deixar viver satisfactoriamente em qualquer cenário. A integridade, no entanto, a nossa acerca das coisas e pessoas que amamos, no fundo as coisas e as pessoas que mexem connosco e geram as marcas que moldam as histórias das nossas vidas, é um pouco mais difícil: exige a paixão cega das nossas convicções. A beleza dos filmes de Pawlikowski tem qualquer coisa que ver com isto. É por isso que esperamos com ansiedade os próximos.  

Enfermaria 6: nova vida

Em Junho, a Enfermaria resolveu alterar o seu formato de submissões abertas. Tomámos esta decisão, numa reunião impecavelmente louca, porque nos pareceu que fazia mais sentido ter um núcleo restricto de colaboradores regulares e alguns autores convidados todos os meses, de modo a trazer alguma diversidade aos conteúdos do blogue e, ao mesmo tempo, sem contradições graves, tentar manter uma linha editorial coerente.

A todos os autores que colaboraram com a Enfermaria até aqui, a nossa gratidão, e serão sempre parte da Enfermaria.

A lista de autores que escreverão na Enfermaria é a seguinte:

 

Convidados em Setembro

Colaboradores regulares

Brasil, um dos teus grandes poetas morreu

Brasil, um dos teus grandes poetas morreu

“O Wlademir morreu esta tarde” foi o que o amigo Thadeu me disse há horas atrás. Wlademir Dias-Pino (Rio de Janeiro, 1927), um dos poetas e artistas visuais brasileiros mais interessantes do século XX e o fundador do Poema/processo, morreu esta tarde. A par de outras ideias, como a indigenista Universidade da Selva, Dias-Pino deixa por acabar a mais ambiciosa, a da Enciclopédia Visual, uma obra-arquivo composta por mais de 100 mil imagens.

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Charles Baudelaire, "Embriagai-vos" (Enivrez-vous)

Tradução: João Coles

 

"À votre guise", fotografia: joão Coles

"À votre guise", fotografia: joão Coles

Embriagai-vos

Deveis estar sempre embriagados. Aqui reside tudo. É a única questão. Para não sentir o horrível fardo do Tempo que vos esmaga os ombros e vos verga para a terra, é imperativo embriagar-se sem descanso.

Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, a vosso gosto. Mas embriagai-vos.

E se por acaso, sobre os degraus de um palácio, sobre a relva verde de uma vala, na morna solidão  do vosso quarto, acordardes de embriaguez diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que roda, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio vos responderão: “É hora de vos embriagardes! Para que não sejais escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos; embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, a vosso gosto. 

  

In Le Spleen de Paris


Enivrez-vous

Il faut être toujours ivre. Tout est là. C’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.

Mais de quoi? De vin, de poésie, ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.

Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront: “Il est l’heure de s’enivrer! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous; enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.