"Só uma pedra sobre a boca"
/Só uma pedra sobre a boca
é sustento para esta fome:
devolverei ao silêncio a sua
mais sórdida cadência.
De João Moita, Uma Pedra Sobre a Boca, Guerra e Paz, 2019
«Por intermédio das palavras que flutuam à nossa volta, alcançamos o pensamento»
Friedrich Nietzsche
Só uma pedra sobre a boca
é sustento para esta fome:
devolverei ao silêncio a sua
mais sórdida cadência.
De João Moita, Uma Pedra Sobre a Boca, Guerra e Paz, 2019
João Moita nasceu em Alpiarça em 1984. Publicou O Vento Soprado como Sangue [Cosmorama Edições, 2009], Miasmas [Cosmorama Edições, 2010], Fome [Enfermaria 6, 2015 (1.ª ed.) e 2017 (2.ª ed. revista e aumentada)] e Uma Pedra sobre a Boca [Guerra e Paz Editores, 2019]. Traduziu, entre outros, Antonio Gamoneda, Saint-John Perse, Arthur Rimbaud e Pierre Louÿs.
Sebastião Belfort Cerqueira nasceu em 1987, em Lisboa, e levaram-no para Azeitão. Hoje vive em Setúbal. Doutorou-se em Teoria da Literatura. Publicou os livros de poesia O Pequeno Mal (Edições Sempre-em-pé, 2011), EL SEGUNDO (edição de autor, 2015) e RSO&SBC (com Ramiro S. Osório, Douda Correria, 2018). Foi organizador e apresentador do ciclo de conferências Poesia no Museu, no Museu Nacional da Música. Foi considerado uma das "vozes dissonantes da novíssima poesia portuguesa" pelo Público, em 2018. Foi estivador. É tradutor. É vendedor de bolas de berlim.
O seu livro novo chama-se Monda e continua a partir do princípio de que a poesia não tem de ser pálida e infeliz.
Henri Fantin Latour - Un Coin de Table, 1872 (Verlaine e Rimbaud, pormenor)
Paul Verlaine
Tradução de João Moita
A Villiers de l’Isle-Adam.
Num palácio, seda e ouro, em Ecbátana,
Belos demónios, adolescentes satãs,
Ao som de uma música maometana
Aos Sete Pecados os sentidos entregam.
É a festa dos Sete Pecados: que bela é!
Os Desejos fulgiam em fogos brutais;
Os Apetites, solícitos pajens assediados,
Passeavam róseos vinhos em cristais.
Danças em ritmos epitalâmios
Morriam suavemente em longos gemidos
E belos coros de homens e de mulheres
Sucediam-se como vagas palpitando,
E o encanto que de tudo isto emanava
Era tão poderoso e deslumbrante
Que em torno o campo se enchia de rosas
E a noite se parecia com um diamante.
Ora o mais belo dentre estes anjos perversos
Tinha dezasseis anos sob a coroa de flores.
De braços cruzados sobre franjas e colarinhos,
Cisma, de chamas e lágrimas transbordante.
Em vão a festa à sua volta recrudescia,
Em vão os satãs, seus irmãos e suas irmãs,
Para o arrancarem aos cuidados que o afligem,
O animavam com carícias aliciantes.
A todas as blandícias ia resistindo,
E à sua rica fronte de jóias abrasada,
O desgosto juntava uma borboleta negra:
Oh imortal e terrível desespero!
Dizia-lhes: «Oh, por favor, deixem-me em paz!»
Depois, a todos beijando ternamente,
Deles se esquivava com um gesto ágil,
Deixando-lhes pedaços de roupa nas mãos.
Não o vedes na torre mais celestial
Do alto palácio de tocha em punho?
Eis que a brande como à manopla o herói:
De baixo dir-se-ia que é a alba que desponta.
Que é que ele diz na sua voz profunda e terna
Que se une ao claro crepitar do fogo
E que de ouvi-lo fica a lua extasiada?
«Oh! Será por mim que Deus será criado!
«Demasiado sofremos, anjos e homens,
«Nesta disputa entre o Pior e o Melhor.
«Subjuguemos, tão miseráveis que somos,
«Os nossos impulsos ao mais simples dos votos.
«Ó vós, ó nós, ó os tristes pecadores,
«Ó os ledos Santos! Porquê esta cisma obstinada?
«Porque não fizemos, como hábeis artistas,
«Dos nossos trabalhos uma única virtude?
«Basta destas lutas demasiado iguais!
«Necessário será que enfim se juntem os
«Sete Pecados às Três Virtudes Teologais!
«Basta destes combates vis e brutais!
«E em resposta a Jesus que julgou proceder bem
«Mantendo o equilíbrio deste duelo,
«Por mim o inferno, em cujo covil estamos,
«É sacrificado ao Amor universal!»
Cai a tocha da sua mão aberta,
E elevando-se, o incêndio brame,
Enorme querela de águias vermelhas
Na esteira negra do fumo e do vento.
Funde o ouro e flui, e o mármore estoira;
É um braseiro todo esplendor e todo ardor;
A seda aos estremeções, como o algodão,
Voa em flocos toda ardor e toda esplendor.
E compreendendo cantavam nas chamas
Os moribundos satãs, como que resignados!
E belos coros de homens e de mulheres
Subiam entre o tufão dos ígneos rumores.
E ele, cruzados os braços altivos,
Os olhos no céu lambido pelas chamas,
Diz baixinho uma espécie de oração
Que vai morrer na alegria do canto.
Diz baixinho uma espécie de oração,
Os olhos no céu lambido pelas chamas…
Quando retumba um horrível trovão,
E lá se vai a alegria do canto.
Não fora autorizado o sacrifício:
Decerto alguém mais forte e mais justo
Adivinhara sem esforço a maldade
E o artifício de um orgulho que se ilude.
Do palácio das cem torres não restam vestígios,
Nada sobrou deste espantoso desastre,
Para que graças ao mais horrendo prodígio
Isto não passasse de um sonho vão e desfeito…
E vem a noite, a noite azul de estrelas mil;
Uma planície evangélica estende-se
Severa e doce, e, vagos como véus,
Os ramos das árvores adejam como asas.
Frios regatos correm sobre um leito de pedra;
Os amáveis mochos nadam vagamente no ar
Todo perfumado de prece e de mistério;
Por vezes da água eleva-se um clarão.
Sobe ao longe a forma débil as colinas
Como um amor ainda indefinido,
E o nevoeiro que se ergue das ravinas
Parece apontado a algum fito comum.
E tudo isto como um coração e uma alma,
E como um verbo, e de um amor virginal,
Adora, abre-se num êxtase e reclama
O Deus clemente que nos guardará do mal.
Paul Verlaine, Jadis et Naguère, 1884.
CRIMEN AMORIS
À Villiers de l’Isle-Adam.
Dans un palais, soie et or, dans Ecbatane,
De beaux démons, des satans adolescents,
Au son d’une musique mahométane
Font litière aux Sept Péchés de leurs cinq sens.
C’est la fête aux Sept Péchés : ô qu’elle est belle!
Tous les Désirs rayonnaient en feux brutaux;
Les Appétits, pages prompts que l’on harcèle,
Promenaient des vins roses dans des cristaux.
Des danses sur des rythmes d’épithalames
Bien doucement se pâmaient en longs sanglots
Et de beaux chœurs de voix d’hommes et de femmes
Se déroulaient, palpitaient comme des flots,
Et la bonté qui s’en allait de ces choses
Était puissante et charmante tellement
Que la campagne autour se fleurit de roses
Et que la nuit paraissait en diamant.
Or le plus beau d’entre tous ces mauvais anges
Avait seize ans sous sa couronne de fleurs.
Les bras croisés sur les colliers et les franges,
Il rêve, l’œil plein de flammes et de pleurs.
En vain la fête autour se faisait plus folle,
En vain les satans, ses frères et ses sœurs,
Pour l’arracher au souci qui le désole,
L’encourageaient d’appels de bras caresseurs.
Il résistait à toutes câlineries,
Et le chagrin mettait un papillon noir
À son cher front tout brûlant d’orfèvreries :
Ô l’immortel et terrible désespoir!
Il leur disait : « Ô vous, laissez-moi tranquille!
Puis, les ayant baisés tous bien tendrement,
Il s’évada d’avec eux d’un geste agile,
Leur laissant aux mains des pans de vêtement.
Le voyez-vous sur la tour la plus céleste
Du haut palais avec une torche au poing?
Il la brandit comme un héros fait d’un ceste:
D’en bas on croit que c’est une aube qui point.
Qu’est-ce qu’il dit de sa voix profonde et tendre
Qui se marie au claquement clair du feu
Et que la lune est extatique d’entendre?
« Oh ! je serai celui-là qui créera Dieu!
« Nous avons tous trop souffert, anges et hommes,
« De ce conflit entre le Pire et le Mieux.
« Humilions, misérables que nous sommes,
« Tous nos élans dans le plus simple des vœux,
« Ô vous tous, ô nous tous, ô les pécheurs tristes,
« Ô les gais Saints ! Pourquoi ce schisme têtu?
« Que n’avons-nous fait, en habiles artistes,
« De nos travaux la seule et même vertu!
« Assez et trop de ces luttes trop égales!
« Il va falloir qu’enfin se rejoignent les
« Sept Péchés aux Trois Vertus Théologales!
« Assez et trop de ces combats durs et laids!
« Et pour réponse à Jésus qui crut bien faire
« En maintenant l’équilibre de ce duel,
« Par moi l’enfer dont c’est ici le repaire
« Se sacrifie à l’Amour universel!»
La torche tombe de sa main éployée,
Et l’incendie alors hurla s’élevant,
Querelle énorme d’aigles rouges noyée
Au remous noir de la fumée et du vent.
L’or fond et coule à flots et le marbre éclate;
C’est un brasier tout splendeur et tout ardeur;
La soie en courts frissons comme de l’ouate
Vole à flocons tout ardeur et tout splendeur.
Et les satans mourants chantaient dans les flammes
Ayant compris, comme s’ils étaient résignés!
Et de beaux chœurs de voix d’hommes et de femmes
Montaient parmi l’ouragan des bruits ignés.
Et lui, les bras croisés d’une sorte fière,
Les yeux au ciel où le feu monte en léchant,
Il fit tout bas une espèce de prière
Qui va mourir dans l’allégresse du chant.
Il dit tout bas une espèce de prière,
Les yeux au ciel où le feu monte en léchant…
Quand retentit un affreux coup de tonnerre,
Et c’est la fin de l’allégresse et du chant.
On n’avait pas agréé le sacrifice:
Quelqu’un de fort et de juste assurément
Sans peine avait su démêler la malice
Et l’artifice en un orgueil qui se ment.
Et du palais aux cent tours aucun vestige,
Rien ne resta dans ce désastre inouï,
Afin que par le plus effrayant prodige
Ceci ne fût qu’un vain rêve évanoui…
Et c’est la nuit, la nuit bleue aux mille étoiles;
Une campagne évangélique s’étend
Sévère et douce, et, vagues comme des voiles,
Les branches d’arbres ont l’air d’ailes s’agitant.
De froids ruisseaux courent sur un lit de pierre;
Les doux hiboux nagent vaguement dans l’air
Tout embaumé de mystère et de prière ;
Parfois un flot qui saute lance un éclair.
La forme molle au loin monte des collines
Comme un amour encore mal défini,
Et le brouillard qui s’essore des ravines
Semble un effort vers quelque but réuni.
Et tout cela comme un cœur et comme une âme,
Et comme un verbe, et d’un amour virginal,
Adore, s’ouvre en une extase et réclame
Le Dieu clément qui nous gardera du mal.
Simone Weil escreveu um dia que o problema filosófico número um é o da fome no mundo. Claramente, esta sua afirmação pede para ser lida de forma literal: preocupava-a, de facto, a fome concreta que ameaça a vida de milhões e milhões de seres humanos em tantas paragens. A sua declaração era, assim, um manifesto político. Mas perscrutando o seu pensamento, percebemos depressa que esta fome, no centro do seu programa filosófico, não se resume à necessidade de pão: respeita também à vital carência de verdade e de sentido que Simone Weil identificava no mundo.
Transpondo a posição de Weil - e nem serão precisas especiais acrobacias, acreditem -, podemos dizer que a fome constitui o problema número um da poesia. Sim, a fome. E é isso que João Moita com este livro, bólide lançada em chamas contra os céus baixos da poesia portuguesa contemporânea, vem reivindicar. Mas que fome é esta? É uma fome que devora há milênios a poesia, mesmo quando parece uma questão fora de moda, declarada ilegal ou ultrapassada: a fome de Deus. A poética de João Moita expõe a penúria, a falha, a lacuna, a abstinência, a renúncia, a fratura, a fraqueza, o vazio, o despojamento, o silêncio – expõe, no fundo, a fome em múltiplas imagens e possibilidades. Faz da fome a sua narrativa, a sua travessia temporal, a viagem pelas (i)móveis geografias de uma vida. E fá-lo como confissão de si, mesmo se num tom contido e apofático, mantendo sabiamente o verso nesse estremecimento que o torna um quase pudor ou um quase impudor. Há uma comovente delicadeza neste travelling metafísico pelas entranhas. Mas não nos enganemos: a qualquer momento as mãos deflagram. A “minuciosa caligrafia” irrompe como “negra combustão”. E junto da garganta de Isaac (e junto da nossa) é, de novo, colocada a faca daquilo que luta connosco e não tem resposta.
Por esta via paradoxal, a poética de João Moita modaliza a fome como locus theologicus, visto que ela é o vínculo mais forte que nos une a Deus. Quanto mais duvidamos dele, mais o celebramos. Quanto maior for a consciência da distância ou da privação, maior será o encontro. E é esta incerta certeza que aqui se constrói como (im)possível oração: “quando vieres,/a minha fraqueza será sinal/para o teu reconhecimento”.
A intensíssima peregrinatio de João Moita recordou-me “O artista da fome”, o conto escrito por Kafka em 1922. O ponto de partida é a história de um artista que se apresenta como jejuador profissional, como outros se mostram como pintores ou bailarinos. O público pagava para vê-lo jejuar em direto e confirmar a sua magreza. O artista da fome tinha um agente que organizava o seu jejum como espetáculo, e que só lhe permitia jejuar durante quarenta dias, para a coisa não perder o pé. Era com muita relutância que o artista da fome interrompia o seu jejum, pois apetecia-lhe sempre continuar. Com o tempo, porém, este tipo de espetáculo passou de moda e o artista da fome, não podendo trabalhar em outra coisa, foi para um circo, onde ficou colocado num lugar fora do picadeiro, perto dos estábulos e das jaulas. No intervalo do espetáculo, as pessoas iam ver os animais selvagens e, eventualmente, olhavam para o artista da fome. Aos poucos, o artista da fome foi ficando esquecido e nem mesmo a tabuleta que registava os dias de jejum era atualizada pelos funcionários do circo. Certo dia, um inspetor, pensando que aquele espaço continha apenas um monte de palha apodrecida, ordenou que limpassem a jaula. Ora, debaixo da palha, descobriram o artista da fome. O instrutor julgou que se tratasse de um louco demente. Mas o artista da fome aproximou-se e revelou-lhe ao ouvido o seu segredo: “Preciso jejuar, não posso evitá-lo, por não ter encontrado no mundo o alimento que me agrada. Se o tivesse encontrado, pode acreditar, ter-me-ia empanturrado como todos os outros”.
Hoje, infelizmente, não é raro que a poesia seja mais uma comensal do grande e múltiplo e feérico festim do consumo. João Moita, em radical contracorrente, vem dizer que a poesia é fome.
Poucas vezes mais farei esta viagem. A erva cresce com o trigo, as flores despontam, as árvores segregam resina e dão sombra à terra ressequida. Os campos estão lavrados, o gado pasta ordeiramente, o rio segue amordaçado. Há pássaros invisíveis no horizonte e outros escondidos em ramos longínquos. Feras ocultas em recantos sombrios, a lentidão da seiva sob a descarnação do sol. O pó repousa nas covas abandonadas pelo vento ou soergue-se desamparado no topo das colinas, onde o tojo se inclina para os precipícios. Na povoação, desmoronam-se as pedras sob a cal, o sustento dos homens. Há frutos que se arredondam segundo geometrias bárbaras, apurando o gosto. E os insectos com a sua azáfama insone, divididos entre beleza e deslumbramento. E a areia dos caminhos, mais batida que o dorso de um cavalo, é a crina desta paisagem. Em breve deixarei de passar por aqui. Olho a íntima maturação dos campos e a solenidade dos estábulos. Vejo que tudo esteve sempre preparado.
Livros, filmes, ideias.