Paris à noite revisitado

Ainda ontem tudo era estranho
hoje já me habituei ao barulho das ambulâncias
e às patrulhas da polícia 

viver na grande multitude
também pode ser isto
as coisas irem desaparecendo
com os dias  

acasacados apagamos em cada corpo
uma multitude de vozes e à noite vamos
ao teatro ver as vidas
que o olhar na cidade
teme ou recusa captar 

já não estão aqui os três ou quatro emigrantes
dormindo sobre a grelha do metro
debaixo da ponte de Stanlingrad
onde por vezes ainda nos espia o ténue brilho vigilante
do foco de luz da torre eiffel (ai fel) ou das iluminações
do grand palais (grã pá lê) 

segundo as redes sociais a polícia dispersou o pequeno acampamento
com gás pimenta
especiaria que os portugueses trouxeram da índia

Soneto falso

Acordei com uma forma ambígua
entre o duche a escolha da roupa
e o espelho do guarda roupa
o prazer de não saber quem sou 

ao abotoar-me sei que estou na cena iii
do meu ato a palavra contém todos
os géneros mas os gritos ecoam ao retardador 

penso nos polícias (ganhando pouco mais
que o salário mínimo) em pasolini
e em quem trabalha como pode um corpo
esvaziar-se de vida às mãos dos outros
sem quase nada por tão pouco

Ainda o frio

Não tenho estrutura lírica
para as casas frias de lisboa
quando os dias de inverno
pesam nas aves e elas caem
nas águas geladas do tejo  

Quentes só as imagens
no meu próprio corpo
sabor meu que nunca provei 

Donde virá este frio imenso
dizem que do ártico eu penso
que é o bafo saindo da boca
de seres tão gastos tão perdidos
colina acima colina abaixo

Tremo logo existo

Fazia tanto frio
naquele começo
de dois mil e vinte e um 

início que é quase uma memória
vista da varanda deste
presente onde estamos
sem saber suspensos 

ou sabemos
ou o mundo avança 

no carro mudas
de mudança 

o prazer esquecido
de haver rima
e nomes de no carro
se percorrer a estrada
de haver coisas no mundo
para além do humano 

o verde dos montes
o céu vasto azul
a vertigem
os enxames
os bandos
as alcateias 

o início do ano um peixe
voando nas águas
cristalinas junto ao pé
tão perto e já tão longe
brilhante dorso multicolor
unindo-se invisível
de novo ao cardume
ou em ato fundador