Traduzir poesia

Regresso ao problema da tradução, o tradutor é sempre um traidor, mas o mundo das letras não consegue viver sem ele (há cerca de 20 000 línguas e as que não são traduzidas desaparecerão ao mesmo tempo que o mundo possível que formularam). Nem sequer parcialmente, ninguém ousa acabar com essa tarefa que, nas palavras de Paul Ricœur, será sempre mal realizada, uma tradução é sempre uma «má tradução». (2021: 4) De igual modo, George Steiner assegura-nos que «nenhuma tradução é inteiramente comensurável com o original, uma vez que mesmo na mais perfeita tradução há sempre essas linhas quebradiças que afectam o contacto entre a instância da origem e a da receção.» (2002: 247) Este pensador (sobre–pensador) acrescenta: «Mais falsa é a tradução “grande” ou “de nível superior” que interpõe a sua fulguração obscura e o seu virtuosismo entre nós próprios e o original.» (Idem: 248) O tradutor deve apagar-se.

Contudo, sem traduções, tese que Ricœur e Steiner partilham, o espírito humano sofreria uma crescente inércia intelectual, caindo-se numa fragmentação ensimesmada de mundos presos na repetição mimética de uma matriz discursiva dominante. Talvez as línguas não sejam internamente avessas à inovação, mas também é fácil constatar que uma cultura sem traduções nos seus modos de existir tende mais para a repetição do que para a diferença. Quando se traduz vai-se muito para lá da substituição das palavras da língua de partida por palavras, equivalentes (quando as há), da língua de chegada. Quando se traduz, traduzem-se também, porventura sobretudo, visões do mundo. E precisamos de várias para sermos cosmopolitas.

Há, naturalmente, disparidades entre traduzir um livro técnico, traduzir filosofia, traduzir ficção ou traduzir poesia (ponho, conscientemente, a poesia fora da ficção). Na filosofia, por exemplo, a que mais pratico, numa diacronia que me permite notar a instabilidade dos métodos (às vezes chamo-lhe arte) que fui usando, traduzir conceitos-chave é tanto mais arriscado quanto temos (e somos) uma língua muito pouco conceptualizada. Contudo, se a palavra que usamos para traduzir o conceito (palavra dominante, que fabrica por si só sentido) ganhar uma densidade de significado que a autodetermine e eleve o seu grau explicativo, a tradução está ganha (claro, depois de limpar as gralhas e as formulações demasiado presas ao original, sobretudo quando se traduz de uma língua românica).

O problema maior, e mais delicado, porque reside na forte incomensurabilidade semântica e sintática e vive na economia sensível da nuance, habita na tradução poética (contudo, «Onde, porém, estiver o perigo, cresce / O salvífico também.» — Hölderlin, Patmos). Aqui, é simultaneamente mais difícil apagar o tradutor e respeitar as soluções (por vezes são meras apostas, que no melhor dos casos se transformam em necessidades) que passam a Stimmung (espírito, ânimo…, o pré-discurso que baliza o discurso) original para o novo poema (uma transferência por osmose). Acresce que o poder heurístico da poesia é diretamente proporcional à formulação exata do seu discurso, isto redobra a dificuldade de traduzir. «Exato» não significa um exato abstrato, mas um que quer ser preciso quase até à loucura num certo contexto (o sentido da palavra contido no seu uso, Wittgenstein, o reino da verdade–relâmpago, cheio de mitologias evanescentes), às vezes minúsculo, e raramente microcosmático (quem se atreve, pois, a traduzir poesia pelo dicionário?). É por isso que me permito citar novamente Steiner: «Os tradutores são homens que tacteiam, procurando-se, no interior de uma bruma geral.» (Idem: 91)

Ricœur concorda comigo, ou eu com ele (mais eu com ele), quando escreve: «A poesia [oferece], com efeito, a máxima dificuldade da união inseparável do sentido e da sonoridade, do significante e do significado.» (Idem: 5) Na poesia, além da distância, já referida, entre semânticas e sintaxes, as frases não assentam no mesmo solo cultural ou há intertextualidades mais ou menos escondidas (isto partilha-o com as outras áreas da tradução) e, num grau superlativo, os ecossistemas subjetivos do poeta e do tradutor são, pela hipertrofia da singularidade do primeiro (feita de uma extrema e arriscada imigração interior), de constelações que podem ter muito pouco em comum (um bom poeta encontraria a palavra ou o sintagma certo para esta distância quase absoluta). Mas há mais. Compreendemos todos a força do não-dito, ora a economia discursiva poética é pródiga no silêncio e no silenciamento, ninguém quer palavras a mais, pontuação a mais, declinações a mais. De uma ou de outra forma, toda a poesia ama a frugalidade (indigência, para alguns) do Haiku, os poetas são podadores linguísticos obsessivos. Falar sobre as máximas fulgurações e evanescências com o mínio de palavras. Como traduzir, então, o não-dito, o do poeta e o da cultura?

Assim, se o conselho de Ricœur sobre abandonar o «sonho de uma tradução perfeita» está, presumo, bem justificado no que acabei de dizer, isso não significa, ainda com o mesmo autor, que abandonemos o «desejo de traduzir» (para ele, mais forte do que os constrangimentos e a utilidade da tarefa). Que é também um desejo de «hospitalidade linguística», de trazer o autor até ao leitor e levar este àquele. De os acomodar sem anular totalmente a hostilidade, o confronto irredutível entre o primeiro (que nunca é primordial) ato de criação e o segundo ato de criação (a recriação da tradução), um agon que eleva.

Em suma (gostamos deste dispositivo retórico), talvez seja isto que leva Umberto Eco, em Dire quasi la stessa cosa (Dizer Quase a Mesma Coisa), à ideia de negociação, como se faz, aliás, no uso quotidiano da língua. Ou, regressando a Ricœur, a procurar, numa aparente modéstia, uma «equivalência sem identidade». Que passa, antes de tudo, por um leitor da tradução sentir quase o mesmo entusiasmo do do original. E nisto a musicalidade é muito importante, pelo menos tanto quanto a composição, alógica, alegórica do sentido. É que não há poema (exagero), por mais franciscano que seja, que não queira embriagar-nos, conduzir-nos à porta de uma união mística.  

ECO, Umberto, Dire quasi la stessa cosa. Esperienze di traduzione. Milan: Bompiani, 2003.
STEINER, George, Depois de Babel. Aspectos da Linguagem e Tradução, trad. port. Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’Água, 2002 [1975/92/98].
RICŒUR, Paul, Sur la traduction. Paris : Les Belles Lettres, 2021 [2004].

2 poemas de Que Coisa é um Alguidar? de J. Carlos Teixeira

METADES DE UMA LARANJA

para a Mafalda Sofia Gomes

I

Quando Maria se perdeu no deserto
não sei se seriam
cálices ou ondas
que lhe desciam pelos seios
enviuvados.

II

O tumor da tempestade
arrastou o túmulo da tua cria,
levando consigo o calor sombrio
dos rebanhos em negação.

III

Escreveram nas paredes
que os pombos tombaram.

IV

O teu filho morreu
e no fundo dos montes
ouvem-se os gritos das mulheres
ecoando nas bocas dos peixes.

V

Esses olhos nunca mais
voltarão a cair aos seus pés
como mantos pousados aos ombros
das montanhas.

VI

Ventre da manhã,
os tambores já não tocam
nesta cidade.

ACOLITAR

Um terço do meu corpo
poderia cobrir uma boca
como pão e vinho

não seria ensinamento,
seria romance
aprender o catecismo
de pé descalço

acenderam a candeia:
            debaixo da tua batina
            caberia uma romaria.

J. Carlos Teixeira, Que Coisa é um Alguidar?, Editora Exclamação, 2024

à maneira de m.c.r.

trago na mochila
o jornal da semana passada
e doem-me os olhos
das intermináveis horas
das luzes artificiais do convés 

atravessei barcos e portos
vi os pássaros voarem contra o vento
desistirem não desistirem
até se perderem de vista
antes de aportar em égina
em hidra, em spetses
antes de adormecer de cansaço
em quartos em casas de amigos 

os homens estão aprisionados
dentro dos seus corpos
dentro das veias dos seus corpos
estão cansados, feridos
são ferozes, solitários
não sabem conversar
pararam de correr
há muito que não sonham
com tentar fugir
com um prazer cego de discordar
isento de uma necessidade homicida  

trago as mãos cheias de pequenos cortes
que ainda não começaram a cicatrizar
a novos golpes de sol e mar
passaram pelas cordas
estão laceradas por dentro e por fora
sangram, infectam
tacteiam os interruptores
de aguçadas luzes artificiais
que suspendem aquela muito longa noite
onde algum inquieto sonho seria conselheiro
de coisas que ainda não descansaram
sobre o meu colo 

espero atentíssima
e demoro-me diante das vitrines
para ver camisas de linho
azuis, brancas, às riscas azuis e brancas
atadas em espera da resolução de um corpo
são mercadoria e no entanto sua é também
a estranha dignidade
das variações da cor do mar
a perfeita memória do verão
na paixão de algum apaixonado artífice
surreal e agora quase impossível
na luz estagnada do inverno
uma visão deslocada
de pura velocidade
feita para traficar no idioma dos milagres 

estou ainda naquela cidade onde já não estou
estarei talvez já naquela cidade onde estarei 

entretanto os homens correm
fumam estão doentes
são sordidamente impacientes
com a tristeza de clientes
a quem foram dadas demasiadas escolhas
ou demasiado poucas escolhas 

chegam esquecidos do assombro
demasiado alto dos orgasmos
balbuciando vagas coisas
sobre confusas metáforas
sobre a electricidade nas fábricas
as palavras não os resolvem
servem para que tropecem
para que se afundem
mais na própria queda 

de manhã, atrasada, quase demasiado tarde
sentada atrás de ti vejo o teu corpo inquieto
que se move na cadeira
sigo-o com o olhar
move-se devagar, inclina-se, espraia-se
soergue-se e eu penso nas praias
nos corpos flutuando à superfície do mar
num dia de sol no sal sobre a pele
e ele ocorre-me querido como o ar 

vejo-o em todas as idades de uma vida
sem data, sem lugar, sem gramática

antes dos nomes próprios
a tua voz começa a encher a sala
e reconheço como é natural reconhecer-te
de repente, na vontade de dançar  

Lisboa, 7 de Dezembro de 2023

Oxford, 12 de Dezembro de 2023

A República do Silêncio, Jean-Paul Sartre

Depois da libertação da França no pós-Guerra, a 9 de setembro de 1944, Sartre escreve um manifesto sobre a liberdade num diário criado em 1941, Lettres françaises, que viria a ser um instrumento importante do Partido Comunista Francês. Sartre publicara o seu enorme e brilhante L’Être et le néant (O Ser e o Nada - Ensaio de Ontologia Fenomenológica) em 1943, no qual se confrontou, e nos confrontou, com a condição humana despida de qualquer comiseração humanista, uma descrição fria e precisa sobre a nossa condenação à liberdade (apesar das situações), a má-fé que usamos para evitarmos a responsabilidade insuportável que isso transporta, o inferno estar nos outros (com uma formulação diferente), o homem ser uma paixão inútil, uma dialética sem síntese entre o em si e o para si, uma autenticidade feita de fingimento… (podem ler o prefácio que escrevi para a segunda tradução em português, aqui).

Um ano depois, já não se trata de pensar a nossa condenação à liberdade (necessidade esvaziada de quase todo o valor, um amor fati sem o sobre-homem nietzschiano), mas de descobrir a liberdade mais pura onde julgávamos ser impossível encontrá-la, ou, no máximo, apanhar dela aí apenas alguns frágeis farrapos. Segue-se a minha tradução de «La République du Silence».

«Nunca fomos tão livres como durante a ocupação alemã. Tínhamos perdido todos os nossos direitos, em primeiro lugar o direito à palavra; éramos insultados na cara todos os dias e tínhamos de nos calar; éramos deportados em massa, como operários, como judeus, como prisioneiros políticos; por todo o lado, nas paredes, nos jornais, no ecrã, víamos a face imunda que os nossos opressores nos queriam dar de nós próprios: por causa de tudo isto, éramos livres. Como o veneno nazi se infiltrava até aos nossos pensamentos, cada pensamento justo era uma conquista; como uma polícia todo-poderosa procurava constranger-nos ao silêncio, cada palavra tornava-se tão preciosa como uma declaração de princípio; como éramos perseguidos, cada um dos nossos gestos tinha o peso de um compromisso [engagement].

As circunstâncias muitas vezes atrozes da nossa luta permitiram-nos finalmente viver, sem farol e sem vela, essa situação dilacerante, insuportável a que se chama condição humana. O exílio, o cativeiro, a morte sobretudo, que são habilmente mascarados nos momentos felizes, eram para nós os objetos perpétuos das nossas preocupações, aprendemos que não são acidentes evitáveis, nem mesmo ameaças constantes mas exteriores: tivemos de os ver como a nossa sorte, o nosso destino, a fonte profunda da nossa realidade de seres humanos; a cada segundo vivíamos na sua plenitude o significado desta pequena frase banal: «Todos os homens são mortais». E a escolha que cada um fazia de si era autêntica porque era feita na presença da morte, porque poderia sempre ter-se exprimido sob a forma: «Antes a morte do que...». E não falo aqui da elite que foram os verdadeiros resistentes, mas de todos os franceses que, a todas as horas do dia e da noite, durante quatro anos, disseram não. A própria crueldade do inimigo levou-nos aos limites da nossa condição ao constranger-nos a colocar a nós próprios as questões que evitamos em paz: todos aqueles de nós — e que francês não esteve uma vez ou outra neste caso? — que conheciam alguns pormenores interessantes sobre a Resistência, perguntavam-se angustiadamente: «Se me torturarem, resistirei?»

Assim, levantava-se a própria questão da liberdade e estávamos à beira do conhecimento mais profundo que o homem pode ter de si. Porque o segredo de um homem não é o seu complexo de Édipo ou de inferioridade, é o próprio limite da sua liberdade, o seu poder de resistir aos suplícios e à morte. Para aqueles que tiveram uma atividade clandestina, as circunstâncias da sua luta traziam uma experiência nova: não combatiam em pleno dia, como os soldados; perseguidos na solidão, presos na solidão, resistiram aos suplícios no abandono, na miséria mais completa: sozinhos e nus diante de carrascos bem barbeados, bem alimentados e bem vestidos, que gozavam com a sua carne miserável e cuja consciência satisfeita e poder social desmedido lhes davam toda a aparência de terem razão. No entanto, no fundo desta solidão, eram os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que eles defendiam; bastava uma palavra para provocar dez, cem detenções. Esta responsabilidade total na solidão total não será o próprio desvelamento da nossa liberdade?

Esta negligência, esta solidão, este risco enorme era igual para todos, dirigentes e homens; para aqueles que levavam mensagens cujo conteúdo desconheciam, como para aqueles que decidiam sobre toda a Resistência, havia uma única pena: a prisão, a deportação, a morte. Não há exército no mundo no qual haja uma tal igualdade de riscos para o soldado e para o generalíssimo. E é por isso que a Resistência foi uma verdadeira democracia: para o soldado e para o chefe, o mesmo perigo, a mesma responsabilidade, a mesma liberdade absoluta na disciplina.

Assim, na sombra e no sangue, constitui-se a mais forte das Repúblicas. Cada um dos seus cidadãos sabia que devia isso a todos e que só podia contar consigo próprio; cada um deles cumpriu, na mais completa negligência, o seu papel histórico. Cada um deles comprometeu-se, contra os opressores, a ser ele próprio, irremediavelmente e, ao escolher-se a si próprio na sua liberdade, escolheu a liberdade de todos. Esta república sem instituições, sem exército, sem polícia, teve de ser conquistada e afirmada por cada francês em cada momento contra o nazismo.

Eis-nos agora à beira de outra república: podemos esperar que ela conserve, em plena luz do dia, as virtudes austeras da República do Silêncio e da Noite

Três poemas de Polaroide de Miguel Marques

Segunda

Desenlaço espelhos cobertos,
emudecidos sem mais, com um cantor esquecido
em gaiola opaca, sem alimento nem água,
em puro silêncio,
escutando o teu nome à solta.

Mas sou capaz de olhar um espelho
e dizer-lhe na cara: esse não sou eu,
refaz o teu ofício simples.

Baço, como nevoeiro, e o seu manto de veludo
arrastado bem cedo
pela manhã, lugar onde há quem plante estátuas
de crianças nuas a crescer lentas num jardim.

Até um rio nasce e cresce para morrer
num distante fim de linha.

O seu arbusto de água corrente quando,
desavindo, espanto-me com o delta desenhado.
Margens movediças o sobem, limitando
lençóis de água onde se lava roupa, junto ao
bordado dos açudes, e povoadas por mulheres
magníficas.

Chegam a parir pequenas estátuas de mármore
roxo
– afligem-se quando não berram,
não respiram –,
e, assim, vão plantando estátuas nuas
pela manhã iluminada.

Mais tarde, as estátuas imaginam as suas próprias
vestes esvoaçantes,
e a formiga trepa-as,
dos pés à cabeça,
o basalto emplumado repousa
nos seus ombros delicados,
lembrando pássaros.

Se a cabeça viaja, crava unhas nos cabelos
entrançados devagar,
nas vestes imaginadas a rasgarem-se
no sopro breve de cada
nova manhã.

O círculo de crianças numa brincadeira de menires
soberbos.

Quarta

Toda a casa é trancada pelo Sol abrasador
enquanto escondo,
na cabeça repleta,
minúsculas células de lanternas vivas a clarear-me
o pensamento.

Os meus mortos sentam-se comigo à mesa, as
chávenas mornas
nas suas mãos brancas.

Mãe, eu ainda tremo.

Não hesites assim tanto, minha mão, quando
escreves.

Escuto as memórias que pairam como
helicópteros ruidosos em
agonia ascendente.

Felizmente, tenho apenas uma boca, demasiadas
vozes me tomariam de assalto, em sobressalto,
enquanto pássaros de luto sobrevoariam
o telhado deserto.

Uma boca húmida
onde mantenho lascas de carvão
em brasa, caverna de vapor aquecido
sem chaminé erguida.

Digo que as lágrimas dos meus mortos são
estrelas nos seus rostos marmóreos,
e qualquer estrela
é uma lâmpada por apagar, esquecida
quando de vez se tranca
a casa vazia.

E não é que o exemplo dos mortos
conduz os vivos?

Basta ver quem lidera o pelotão de cada
funeral.

Décima sexta

Hasteada a bandeira de fumo branco
a drapejar na brisa, ténue,
como o fio vibrante da teia de uma
pequena aranha.

Ou cordões de água que desenham as alças
do teu vestido imaginado.

Ou ainda, lírico cabelo desatando linhas
compridas de versos, onde
as aranhas aprenderiam
a tocar harpa
se as suas presas, de tão assustadas,
não lhes desafinassem as teias.

Nas memórias visíveis
que são as polaroides, uma floresta
de mãos abertas
com as suas unhas pintadas de verde,
dedos nus que se entrelaçam profundamente.

Se a primeira árvore da floresta
lança raízes à estrada,
a última leva os ramos à cabeça
em desespero.

Uma moeda de ouro rola
pelo declive das copas
do arvoredo,
tenta encontrar a ranhura certa,
dando início a mais um jogo noturno.

E bem no centro da imagem
desbotada, de lábios vivos,
a mulher que fuma
num desassossego,
erguida a bandeira de fumo branco
que drapeja no hálito quente
do vento.

Arde que arde na bandeira furiosa.