Volta à ligadura

Atrapalha-me o passo quando penso regressar. Digo baixinho palavras supostas, convenço-me de que dois gloriosos dias bastam para me atrever a olhar em frente. Sinto cansaço e digo adeus às casas baixas, àquelas varandas onde se afirmam ingénuos e percorro em desequilíbrio estas ruas uma última vez. Para trás fica gente bonita, sabes. Gente cuidada e lágrimas tantas. A aldeia vai ficando para trás e o meu coração soluça ao tentar acompanhar o ritmo apressado da locomotiva. Isto não devia ser assim: todas as viagens de despedida deviam ser acrescidas de um tempo extra. Duas horas mais dez minutos em ritmo lento, à força de querer olhar uma vez mais para trás. Aconchego-me no banco desconfortável e observo a manhã seca. Ali está a minha mãe. Alcanço-a com a minha mão, “estás tão perto”. Imagino a minha cara encostada ao vidro, construo frases de dezasseis palavras, entretenho-me. Havia um tempo em que a minha operação linguística bastava para me render aos novos hábitos citadinos. Mas hoje não. Hoje sou analfabeta, levo rebanhos numerosos, divago em montes alicerçados. Voltei. Mas é sempre por tão pouco tempo. Chego à cidade e ainda sou pastora. Talvez por isso as pessoas me olhem com sermão. Nada digo, avanço os pés apertados habituados à rotina do campo. Há ligaduras invisíveis sobre o meu corpo. Receio as mentiras que se adivinham, os dias passados no silêncio do centro, o dialecto correcto que afugenta sorrisos alheios. Ah, cheguei. Sem saber onde.